Alguns documentos de cultura e barbárie
de Adolf Hitler, arquiteto da destruição.


Resumo: O texto recupera a concepção estética e artística do nazismo a partir do documentário "Arquitetura da Destruição", mostrando como as artes foram convocadas pelo arquiteto da destruição - Adolf Hitler - para contribuir com o projeto político alemão dos anos 30. O cinema merece uma atenção especial, por ser o medium largamente usado pela propaganda nazista, sobretudo na preparação para a "solução final" do "problema judaico".



1 HITLER, POLÍTICO FASCISTA, 'ARTISTA MULTIMÍDIA'


Simone Beauvoir resumiu, de forma impagável, um dos dogmas do pensamento de direita: "deve-se preferir a beleza aos homens"(1991:73-4). Esta máxima bem poderia ser atribuída à Adolf Hitler e sua concepção estética do mundo - que projetou embelezar, enquanto um novo homem estava sendo gestado em solo germânico. O Führer de fato admitiria, cândido, pouco antes de dar início à II Guerra Mundial e ao mais bárbaro projeto de extermínio da história humana: "Oh, como gostaria de trabalhar em arte". Desejo acalentado por um artista frustrado, em meio a uma estrutura de poder - o III Reich - repleta de virtuais candidatos fracassados no mundo das Belas Artes. O nazismo como um megalomaníaco e descomunal projeto estético e artístico, fortemente influenciado pela fixação do Führer na Antigüidade clássica, é a tese do documentário Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen (Architektur des Untergangs - Suécia/1989).

O cinema, medium largamente usado pela propaganda nazista, ilumina inusitadas facetas do 'criador' que transferiu para o campo da política e da guerra (bem como da moderna forma do genocídio) seus sonhos abortados de arquiteto, pintor, compositor, cenógrafo, diretor, ator, propagandista e publicitário, além de crítico de arte e mecenas. Hitler, o onipotente artista e curador de uma exposição planetária a céu aberto, a um só tempo expressionista e surreal, na qual se transformou a Europa e o mundo dos anos 30 e 40. Hitler, o homem da ciência, o sanitarista à frente de uma potência industrial e militar: "Sinto-me como o Robert Koch da política. Ele descobriu um micróbio e mudou a medicina. Eu expus o judeu como o micróbio que destrói a sociedade", diria o Führer.

Segundo o documentário, Richard Wagner será uma das três grandes fixações do futuro ditador da Alemanha (não por acaso, as outras duas concentram-se num espaço e num tempo distante - Linz e a Antigüidade). "Só entende o Nacional-Socialismo quem conhece Wagner", resumiria o próprio Führer, que aos 15 anos tivera uma experiência decisiva em sua cidade natal, a pequena Linz: a ópera Rienzi. Profundamente impressionado com a estética wagneriana, Hitler começa a traçar os primeiros planos "para seu futuro e para o futuro da Alemanha". Pois, segundo sua palavras, "foi naquela hora que tudo começou".

As pretensões de Adolf Hitler oscilam da pintura à arquitetura. Aos 18 anos, candidata-se a uma vaga na Academia de Arte de Viena, para a qual é recusado. Mas a encenação da ópera, que tanto fascinava Hitler, será utilizada nos 'comícios de pseudo-arte', nos quais o Führer "era cenógrafo, diretor e ator principal", dispara o locutor de Arquitetura. A plenitude estética destes espetáculos de poder e força será alcançada com o filme/evento Triumph des Willens (1936), encenação perfeita do Congresso de Nuremberg de 1934, sob o comando da cineasta Leni Riefenstahl. A arte fascista, diz Susan Sontag, "glorifica a capitulação, exalta a irracionalidade e torna a morte fascinante" (1986:72-73).

A formação teórica e literária de Adolf Hitler cristaliza-se entre o insólito e o caricato. O Protocolo do Povo Israelita, um documento falso que sugere uma conspiração dos judeus para controlar o mundo teve um grande impacto sobre suas crenças político-ideológicas. Seu autor preferido é Karl May, típico criador de best-sellers infanto-juvenis. Mas o ditador se acreditava um especialista em artes: a capital francesa é poupada da destruição graças aos seus caprichos estéticos. "Paris não é linda?" pergunta, embevecido, ao seu 'arquiteto das ruínas', Albert Speer numa patética tour na madrugada de meados de junho de 1940, pelas ruas da cidade recém tombada. "Pensei muito se devia ou não destruir Paris. Mas quando Berlim estiver pronta, Paris será uma sombra. Então porque destruí-la?" diria ainda à Speer.

A pequena Linz merece um lugar de destaque nestes delírios "estéticos". Sua cidade natal é visualizada como a futura metrópole cultural do mundo, perto da qual Viena pareceria ofuscada. Um funcionário é incumbido de reunir as obras da virtual "Galeria de Arte Alemã": elas começam a ser literalmente caçadas na Europa subjugada; Hitler as escolhe pelo catálogo. Entre os anos 1942-1943, a rapina artística chega a três mil peças, incluindo Da Vinci e Rembrandt.

A partir de 1933 o público alemão passaria a freqüentar o mais célebre evento das artes plásticas sob o III Reich: a série de exposições da Entartete Kunst - Arte Degenerada. A arte assumira "um papel quase policial da discriminação dos judeus" (Nazário, 1996:33). Somente no auge da guerra, Hitler deixará de prestigiar as inaugurações de seus eventos artísticos. A valorização das Belas Artes da nova Alemanha é sempre um incisivo discurso de reforço ao programa nazista. A pintura e a escultura - como o cinema - apoiam, com a mesma disposição, campanhas de higiene nos escritórios e fábricas, como o Bureau de Beleza do Trabalho e programas eliminacionistas.

2 A INSANIDADE NAZISTA NAS TELAS

O cinema também é mobilizado para familiarizar a população com o Programa de Eutanásia (T4). "Confie em seu médico", encoraja o Kulturfilm Desafio do Câncer: Nada menos de 45% da categoria integra o NSDAP. Eles terão participação decisiva nas atividades de extermínio. Já o "documentário" Vítimas do Passado (1937) explora imagens de doentes mentais; culpa os 'imbecis' por ocuparem 'palacetes', enquanto 'pessoas saudáveis' vivem em guetos e apela para o darwinismo: "Nós humanos pecamos contra a lei de seleção natural... Não só aprovamos formas de vida inferiores, como encorajamos sua propagação". O pecado seria redimido: em 1941, cerca de 70 mil doentes mentais foram mortos. Obras 'ficcionais' como Eu acuso (1941) são criadas para a legitimação do assassínio de arianos não integrados à exigência da 'raça pura': o filme romantiza a eutanásia praticada numa portadora de esclerose múltipla, com o apoio de seu marido.

O ano de 1941 também seria decisivo para o encaminhamento da 'Solução Final', abjeção inominável depois da qual, como apontou Adorno, "a morte significa ter medo de qualquer coisa pior que a morte". Ocorre que na quase totalidade das expressões da 'nova arte alemã' e desde os primeiros eventos 'culturais' nazistas, a Shoah ganhava contornos cada vez mais definidos. Ao contrário do cinema concebido por Riefenstahl, com suas cenas grandiosas e ávidas pelo registro da beleza (como em Triunfo da Vontade) clássicos da propaganda anti-semita como O Judeu Süss e O Eterno Judeu (1940) justificavam abertamente o gaseamento em massa.

Mas o andamento inesperado da chamada operação Barbarossa decreta o fim das avassaladoras conquistas alemãs. Goebbels tinha a convicção de que "o bolchevismo cairia como um castelo de cartas", em menos de quatro meses. O "bolchevismo" não apenas resistiu: ele determinará a derrocada do III Reich. Se a visão hitlerista de domínio do mundo cai por terra em 1941, a eliminação dos judeus passará a ser prioritária, uma "missão sagrada". Estava selado o destino de 11 milhões de judeus em toda a Europa. Perder a guerra não significaria o fim do ideal nazista: a queda da Alemanha poderia inspirar futuras gerações. O país se ergueria uma vez mais das ruínas. Esta era a certeza de seu arquiteto - o arquiteto da destruição total.

Para seis milhões de homens, mulheres e crianças - judeus - a destruição total chamou-se Holocausto. Na parede da cela 8 - bloco 11 de Auschwitz, uma das anônimas vítimas reproduziu uma frase de O Inferno de Dante: "Ó vós, que entrais, dizei adeus à esperança". "O Holocausto não foi operado com paixão (...) A violência, a tortura, tornaram-se na modernidade, instrumentos da racionalidade política. A violência é hoje uma técnica" (Novinsky, 1995:17). Pois as técnicas do Programa de Eutanásia se revelariam amadorísticas diante do rigor "científico" e da funcionalidade operacional ostentados pelos campos da morte. Trata-se, de fato, de uma "evolução" macabra, marcada pela combinação letal de racionalidade e tecnologia (e burocracia).

Por volta de 1941, na esteira do avanço das tropas ao leste, os 'Einsatzgruppen', unidades especiais da SS, ocupavam-se com o assassinato de judeus, ciganos e inimigos políticos; todos baleados na cabeça. O ano seguinte marcaria a construção da primeira câmara de gás no leste - um "avanço" vistoso em relação aos terríveis caminhões nos quais as vítimas eram asfixiadas durante o transporte. Em março de 1942, o campo de Belzec recebe as primeiras vítimas. A seguir viriam Sobibor e Treblinka. E uma nova alternativa passa a ser testada em Auschwitz: um inseticida a base de cianeto.

Em 1938, um Kulturfilm sugestivamente intitulado Guerra em Miniatura divulgava 'uma arma' efetiva de 'matar pragas'. Vemos imagens da fabricação, acondicionamento e uma detalhada simulação do uso do produto, "sem risco para as pessoas e equipamentos". Dois anos após a exibição de Guerra em Miniatura, o monóxido de carbono era usado na "eutanásia" de doentes mentais. Três anos depois, o cianeto, ou Zyklon B, inicia uma nova etapa na matança, em Auschwitz. Os médicos continuarão a ter um papel central: selecionar vítimas, supervisionar o uso do Zyklon e checar o óbito das pessoas gaseadas, numa forma organizacional em que estes últimos operavam o equipamento, aliviando aos matadores o horror de sua tarefa diária.

No início de 1943, o exército soviético começa a avançar e a SS recebe uma nova missão: eliminar os traços do assassinato em massa tão arrogantemente justificado. Em janeiro de 1945, as tropas russas chegam a Auschwitz. Registros famosos são feitos no campo da morte. Montanhas de óculos, cabelos, dentes, sapatos, galpões lotados com roupas, latas de gás; pilhas de cadáveres; provas de que o inconcebível de fato ocorrera. O derradeiro fato da II Grande Guerra não deixa de ter um caráter "cinematográfico", segundo Virilio: "No dia 30 de abril, Hitler deixa seu inferno das imagens suicidando-se em sua câmara escura no bunker da Chancelaria de Berlim" (1993:134).

3 DOCUMENTOS FINAIS DO ARQUITETO DA DESTRUIÇÃO

Já a partir de 1942, consciente que a derrota é inevitável, Hitler submergiria em seu fantasioso universo estético privado, enquanto a Alemanha vive o inferno "fílmico" dos bombardeios aliados. No ano seguinte, Goebbels decretaria a guerra total. Entretanto, a insanidade política é superada por sua, digamos, "versão estética". Hitler planeja compensar o jejum de vitórias oferecendo aos alemães uma retrospectiva cinematográfica do passado. Veidt Harlan, diretor de O Judeu Süss deveria reconstituir o êxito naval contra os ingleses em Narvik. Navios de guerra, aviões e pára-quedistas seriam mobilizados para a filmagem, que acabou cancelada. O Führer ordena, então, a realização da "narrativa histórica" Kolberg. Tropas de um exército mal equipado e que recua em todos os fronts são colocadas à disposição do cinema: seis mil cavalos e 200 mil homens tornam-se figurantes desta que foi a última grande obra "cultural" nazista. Em janeiro de 1945, o filme de nove milhões de marcos está finalizado, mas as salas de cinema de Berlim não passam de ruínas.
Uma encenação do Juízo Final foi deflagrada entre o início dos anos 30 e a metade dos anos 40 na Europa nazi-fascista.. Dos ideais de beleza, pureza e eternidade do arquiteto da destruição restaram algumas obras e uma extensão sem fronteiras de ruínas e devastação. Resta a dificuldade de abordar dignamente a questão das vítimas, tais como Primo Levi que, sob o terror de Auschwitz, tinha um humilde sonho: "poder chorar, poder enfrentar o vento como antigamente, de igual para igual, não como vermes ocos sem alma".

A última cena de Arquitetura desvela, numa sala semi-escura, inúmeras telas que estampam os líderes nazistas e seus asseclas. Os quadros foram achados "nos porões dos vencedores", décadas após o fim da II GG. Enquanto a locução repisa a tese de uma força motora "em grande extensão estética" para a definição do nazismo, a câmara enfoca um último retrato: Adolf Hitler, em uma armadura branca medieval, ostenta uma bandeira com a suástica. Provavelmente, estamos diante de sua fantasia adolescente: Rienzi.
Investigar um artista frustrado por trás do ditador não pressupõem desviar o centro de uma questão que permanece política. Da mesma forma, sublinhar o fantástico poder que emanava do Führer não tem a intenção de abstrair a responsabilidade de toda uma nação, sem a qual Hitler, em última instância, não seria 'o tema por excelência do século XX'. Talentosos artistas, de diversas áreas, deram forma, luzes, cores, textos, imagens, sonoridades e rimas aos ideais de uma Beleza inumana, cuja afirmação de existência representou para milhões de judeus um veredicto mortal.

Se as artes foram convocadas para expressar o poderio e as razões de um regime eliminacionista e totalitário, foi a política que, em primeira e última instância, propiciou a insanidade nazista, oriunda de um partido eleito livremente pela sociedade alemã, que lhe outorgou apoio e participação incondicional. O Nacional-Socialismo mostra o alcance incomparável de um projeto total de estetização da vida política, 'encenada' pela Alemanha de Adolf Hitler, supremo líder político e eventual arquiteto da destruição. Cinqüenta milhões de mortos deram testemunho desta versão populista de um regime anti-semita, racista, xenófobo, belicoso e expansionista. Na falácia nazista de vida como arte, a verdadeira arte se despede. Seu desaparecimento perdurou até a destruição final da Alemanha.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, Simone. O Pensamento de Direita, Hoje. Rio de Janeiro Paz e Terrra, 1991.
NAZÁRIO, Luiz. Reflexões Sobre a Estética Nazista. In: Revista Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes, n. 3, ano 90, 1996. p.33-51.
NOVINSKY, Anita. Reflexões sobre o Holocausto. In: Revista Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes, n. 4, v. 89, jul/ago, 1995.
SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LP&M Editores, 1986.
VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. São Paulo : Página Aberta, 1993.


* Adriana Kurtz é Jornalista e Professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing de Porto Alegre. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em "Comunicação e Informação" da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pesquisa sobre a cineasta nazista Leni Riefenstahl.