O POPULAR NO DOCUMENTARISMO
BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO


I. ESTRUTURAS NARRATIVAS

Este artigo discute os documentários Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles e Kátia Lund, 1999), Santo forte (Eduardo Coutinho, 1999) e O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000). São filmes recentes que tematizam com acuidade a questão do popular.

Inicialmente, será efetuada a descrição da estrutura narrativa de cada documentário e a comparação entre elas. A seguir, desenvolver-se-á a análise de pontos estéticos e ideológicos relevantes visando estabelecer semelhanças ou diferenças e buscando principalmente clarificar a perspectiva geral de cada um dos filmes.

Notícias de uma guerra particular centra-se no conflito nas favelas cariocas entre a polícia e o tráfico de drogas. A própria lógica da narrativa está totalmente atrelada à questão do conflito, conforme se poderá observar (1).

O documentário inicia-se com imagens da queima de drogas apreendidas e a informação, fornecida pela locução, de que a partir dos anos 80 a violência aumentou muito devido ao crescimento do tráfico. Sobre tomadas aéreas de morros, ficamos sabendo do período de realização das filmagens - entre 1997 e 1998 -, da quantidade enorme de pessoas trabalhando no tráfico e do fato da repressão policial concentra-se nas favelas.

Teremos então o encadeamento dos depoimentos das partes envolvidas: o policial, o traficante e o morador da favela. Cada qual coloca a sua perspectiva diante do problema: assim o capitão Pimentel entende que participa de uma "guerra"; já Adriano afirma estar no tráfico para ter dinheiro e poder viver; Dona Hilda e Dona Janete dão conta das extremas dificuldades para sobreviver com os baixos salários que recebem e das vantagens e desvantagens do tráfico, agora a polícia tem mais cuidado ao entrar no morro porém os criminosos são extremamente violentos.

Em seguida há um histórico do tráfico a partir do depoimento do escritor Paulo Lins. Segundo ele, sempre morreu gente assassinada na favela, mas a mídia só começou a se interessar pela questão da violência quando ela extrapolou este ambiente.

Para explicitar o conflito estão montadas entrevistas de policiais falando em guerra, imagens de ações nas favelas e de treinamentos, e, a seguir, traficantes falando sobre o confronto com a polícia e imagens deles fortemente armados no morro. Surge o depoimento do então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Hélio Luz. Para ele, o jovem favelado tem no tráfico uma forma de afirmação social e um emprego.

Seguem várias entrevistas com rapazes no morro ou internos num instituto de regeneração confirmando as asserções anteriores. Volta-se para Hélio Luz que declara ser a polícia brasileira um órgão de repressão cuja finalidade é manter a sociedade injusta.

Após toda uma parte dedicada aos armamentos pesados utilizados pelos dois lados em conflito - com destaque para os planos impressionantes da câmera passeando pelo depósito de armas apreendidas (2) - e outra à prisão e subseqüente substituição de alguns dos principais líderes criminosos, o documentário encaminha-se para o seu, ao mesmo tempo, assustador e triste final.

Tal clima é conseguido, primeiramente, pela inserção de uma reportagem televisiva na qual se apresenta a tentativa de fuga debaixo de fogo cerrado de alguns traficantes, em seguida esta imagem é repetida ralentizada. Junte-se a isto, a caracterização da situação geral como um beco sem saída, a partir do depoimento do capitão Pimentel que diz não haver solução e passando por imagens de uma instituição de regeneração de menores lotada. Temos então a montagem em paralelo do enterro de um policial com o enterro de um traficante, entremeando o paralelismo há o capitão Pimentel afirmando que o único segmento do Estado a subir o morro é a polícia e declarando-se cansado do confronto. Por fim, há a imagem de um túmulo que é sobreposta lentamente pelos nomes de pessoas mortas até o completo escurecimento da tela.

O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas inicia-se com uma imagem que não se liga diretamente ao assunto do filme, trata-se de um aleijado arrastando-se pelas ruas do Recife num enquadramento fechado (3).

Depois disto o filme articula-se de forma mais convencional. Alexandre Garnizé, baterista da banda de hip hop "Faces do subúrbio", apresenta-se e conta dos assaltos e ameaças sofridos na região em que vive. O baterista introduz no filme Helinho, trata-se de um amigo seu também vítima de marginais e que começou a matá-los. Helinho, jovem mais ou menos da mesma idade de Garnizé, fala dos assassinatos cometidos, chama a atenção do espectador a frieza com a qual as mortes são narradas. Helinho encontra-se preso.
Garnizé explica que as pessoas matam por ficarem revoltadas em possuir pouco dinheiro e ainda serem roubadas e maltratadas. Rapazes mascarados dizem querer "limpar" a cidade dos ladrões e definem as "almas sebosas" como aqueles indivíduos inúteis. A mãe de Helinho, sempre mostrada em planos extremamente fechados, diz que o filho matava as "almas sebosas" e ela era contra.

Helinho explica que o seu apelido é Pequeno Príncipe, para a mãe ele é querido pelas pessoas. Surge então uma Brasília velha com equipamento de som pelas ruas de Camaragibe, cidade dormitório perto do Recife onde residia Helinho, apelando para a população assinar uma petição em favor da libertação do rapaz. O delegado João Veiga Filho, cuja linguagem é extremamente empolada, condena a petição.

Após a opinião do advogado criminalista Eduardo Trindade, para quem a falta de acesso à informação leva à falta de acesso à justiça, temos Garnizé afirmando que deseja transmitir para os outros as dificuldades pelas quais passou, intercalado com esta fala há planos de crianças numa escola e no final Garnizé tocando atabaque. No estúdio de uma rádio, o apresentador denuncia de forma sensacionalista policiais que abusaram da autoridade. Parte-se então para o momento central do filme: almoço no terraço de uma casa em Camaragibe no qual estão presentes componentes do Faces do Subúrbio e do Racionais MC's, eles falam sobre o rap, a África, a violência e então Mano Brown aponta para a favela e diz o nome de bairros pobres paulistanos, isto dará vez a um plano aéreo longo com música dos Racionais MC's na banda sonora.
Garnizé apresenta as diversões daquela região - música e futebol -, Helinho comenta da importância do dia de visitas, a mãe de Helinho também fala sobre o dia de visitas. Por fim, temos um show dos Racionais MC's, seqüência em que se destaca a revista dos seguranças nos jovens e o discurso de Mano Brown sobre a opressão contra o povo.

O bloco narrativo seguinte começa com planos do presídio onde Helinho está e a sua afirmação: "o inferno é aqui". Os rapazes mascarados descrevem "ações" perpetradas por eles contra as "almas sebosas". A câmera passeia pelo corpo de Garnizé e há tatuagens de Malcolm X, Martin Luther King e Che Guevara, ele explica que tatuou as imagens devido à importância destas pessoas nas lutas políticas. Garnizé toca atabaque e a câmera movimenta-se buscando traduzir o ritmo da música.

Planos de cemitério e de enterro iniciam o último bloco do filme. Helinho é trancado na cela, na banda sonora a voz da sua mãe pede perdão pelos crimes e justifica-os através das más companhias com as quais o rapaz se envolveu. Procissão com grande número de pessoas, destacam-se vários crentes pagando promessas. Helinho diz que a sua situação é difícil (4). Os mascarados saem de quadro, cada qual para um canto.

Santo forte começa com um prólogo que apresenta o tema do filme, trata-se do depoimento de André sobre as possessões de sua esposa por uma pomba-gira e da posterior limpeza pela intervenção, também espiritual, de uma preta velha. Um recurso utilizado pela montagem é a inserção da imagem da estatueta da pomba-gira ou da preta velha quando André fala destas entidades. Isto ocorre algumas vezes ao longo do filme em relação às diversas entidades mencionadas.

Letreiro informa ser o dia 5 de outubro de 1997, imagens da missa realizada pelo papa João Paulo II no Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro. Daí se passa para os planos aéreos de um morro, mas com o som da multidão presente na missa rezando. Eduardo Coutinho e sua equipe andam pelas ruelas do morro. Vera explica morar ali, na Vila Parque da Cidade, e sua função é a de porta de entrada para a equipe de filmagem.

Acompanhamos várias situações de pessoas daquela comunidade assistindo à missa pela televisão e cada uma fala das suas duas ou três religiões - em geral umbanda e catolicismo.

Sobreposto à imagem da equipe subindo o mesmo morro há o letreiro informando a data, dezembro de 1997. A partir de então, o filme se estrutura quase exclusivamente sobre depoimentos longos de pessoas contando suas experiências religiosas.

O primeiro depoimento é o de Vera que se criou no espiritismo, de onde saiu após romper com o noivo. Freqüentou outras igrejas, dentre as quais a Universal, mas também deixou de freqüentá-la após o marido abandoná-la. Segundo ela, os céticos não podem entender a experiência religiosa.

Dona Thereza é certamente a figura mais forte do filme, tanto pela riqueza da sua experiência espiritual como ainda pela forma como ela narra sua própria vida. No quintal de casa, esta senhora conta o que são as guias, a criação de filhos e netos com extrema dificuldade econômica, a decepção com o marido - "uma praga" -, as suas outras encarnações como rainha, as conversas com entidades, etc.

No depoimento de Carla, moça negra cuja história espiritual é bastante conturbada, há imagens da entrevistada fora da comunidade. No caso, temos a moça dançando numa boate onde trabalha fazendo strip-tease.

Seguem-se os depoimentos de André, Lídia, Braulino e Quinha. Todos já tiveram mais de uma religião e ambas as mulheres falam das dificuldades no casamento, sendo que a segunda criou os filhos praticamente sozinha. Lídia e Braulino aparecem recebendo o pagamento pelos depoimentos prestados. Merece destaque na parte relativa a André a inserção de um plano médio do quarto dele e da esposa vazio e em silêncio, como a representar a presença de espíritos ou entidades que não podem ser vistas pelos descrentes.

Enquanto Dona Thereza prepara café na cozinha, Eduardo Coutinho conversa com a filha dela, Elisabeth, que se declara "atéia". O próprio diretor sublinha que a moça é a primeira pessoa naquela comunidade a não ter crença religiosa. No entanto, Elisabeth conta já ter presenciado a mãe possuída. No quintal, Dona Thereza volta a falar das suas experiências, afirmando a existência dos espíritos em todos os lugares, inclusive ali, temos então um corte para um plano do quintal sem figuras humanas e em silêncio.

Alex, jovem negro, vê imagens do batizado de sua filha na umbanda. O rapaz explica que a sua filha foi também batizada no catolicismo. Após isto Dona Nira, mãe de Alex, elogia o trabalho da igreja Universal. O rapaz afirma já ter tratado problemas de saúde na Universal levado pela mãe, e o resultado foi positivo. Dejair, irmão de Dona Nira, estabelece uma espécie de hierarquia das crenças religiosas e fala da importância da África.

Taninha, identificado como pai de Carla, tem dezoito filhos mas apenas um foi criado por ele, aquele parido pela sua esposa. Com passagem pelo Pinel, brigas violentas e uma expressão amargurada, diz nada possuir, mas ser adepto do catolicismo e da umbanda, neste momento há um insert da imagem de Exu. Taninha também aparece recebendo dinheiro pelo depoimento. Ele é o único a não ser entrevistado em casa, mas num lugar com muitas árvores e aparentemente ermo.

Novos depoimentos na véspera do Natal, mais curtos quando comparados aos anteriores, de Dona Thereza - ela também aparece indo trabalhar na casa dos patrões -, Braulino, Carla e André. Todos se declaram felizes com suas vidas apesar de alguns problemas, apenas Dona Thereza problematiza as coisas pelo tom melancólico da sua fala. Ela preparou a ceia da família mas não participa da comemoração, prefere ficar isolada. A câmera passeia pelo quarto de Dona Thereza saindo da bandeira do glorioso Botafogo, passando por duas crianças dormindo e terminando por enquadrar o altar onde ela deixa oferendas para os santos. Como reforço temos um detalhe mais aproximado do canto do quarto dedicado às entidades religiosas. Nestes dois últimos planos há uma música pop que vaza de outro cômodo da casa.*

É possível notar pela descrição realizada acima que as estruturas de Notícias de uma guerra particular e O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas guardam semelhanças.

Ambos têm um depoente que serve como catalisador da estrutura e cuja opinião pessoal também espelha a perspectiva dos realizadores do documentário. No primeiro caso temos o delegado Hélio Luz e no segundo o baterista Alexandre Garnizé. Em O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas o papel do catalisador está bastante claro já que ele apresenta o outro indivíduo importante da narrativa - Helinho -, se constitui como a opção interessante em resposta à violência - através da sua arte e da sua conscientização política -, apresenta Camaragibe para os espectadores e serve de elemento de ligação com Mano Brown no momento mais forte do filme. O caso de Hélio Luz possui maior sutileza, pois além do seu primeiro depoimento ocorrer no segundo terço da projeção e ter menos participação em termos totais do que outros entrevistados, há também uma ausência de contraste tão forte como no caso Garnizé / Helinho. Mas o fato das suas colocações possuírem uma perspectiva mais abrangente do que a dos outros depoentes, servindo inequivocamente para iluminar os motivos do confronto exposto, permite-nos vê-lo no papel de catalisador do filme. Poderíamos dizer que Garnizé funciona como uma viga a sustentar a narrativa, ou seja, ela se articula sobre o catalisador; já Hélio Luz funciona como um ponto que ilumina retrospectivamente e/ou futuramente as questões colocadas, ou seja, a narrativa se articula em torno dele.

Santo forte difere radicalmente em termo estruturais, pois mesmo havendo uma figura muito forte como Dona Thereza, não há um depoente cujo papel narrativo seja preponderante em relação aos outros. O filme realiza, no nível narrativo, aquilo que ele mesmo anuncia ao mostrar a imagem aérea do Parque Vila da Cidade com o som da multidão presente no Aterro do Flamengo rezando: uma polifonia na qual todos terão vez para se manifestar de forma comunal. Daí a preferência de Eduardo Coutinho por uma narrativa cujo miolo se compõe através da justaposição de depoimentos. Não existe, como nos dois documentários anteriores, amarração em termos de temas ou tipos sociais, mas tão somente seguimos um após outro depoente falando sobre suas experiências religiosas.


II. PERSPECTIVAS FORMAIS E IDEOLÓGICAS

A temática envolvendo a organização habitacional das camadas populares urbanas é bastante tradicional nas artes brasileiras. Na literatura ensejou todo um arco que vai, pelo menos, desde Memórias de um sargento de milícias (Manuel Antônio de Almeida), de 1853, e continuou em autores tão diferentes entre si como Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Jorge Amado e Paulo Lins, entre outros. Na música popular, as pesquisadoras Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense Marcier anotam já em 1928 um samba de Sinhô intitulado "A Favela vai abaixo" e demonstram a persistência do tema até os dias atuais (5).

O caso do cinema não é diferente. Talvez o primeiro tratamento do assunto tenha sido levado a efeito em Favela dos meus amores (Humberto Mauro, 1935), embora a falta de pesquisas acuradas e o desaparecimento quase completo da produção anterior aos anos 30 impeçam que esta afirmação seja categórica. Desde esta época, não faltam filmes com referências as favelas, morros e cortiços, e cujas orientações ideológicas se pautam em geral pelo populismo romântico. Com Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955), obra deflagradora do moderno cinema brasileiro, temos o amadurecimento na abordagem do tema a partir de uma postura eminentemente realista e que terá continuidade em Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), Cinco vezes favela (Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Marcos Farias e Miguel Borges, 1962) e A grande cidade (Carlos Diegues, 1965).

No caso do documentário um filme fundamental é Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), que aborda a vida dos migrantes nordestinos em São Paulo. Numa das seqüências marcantes há um paralelismo entre os depoimentos do operário qualificado e do operário não-qualificado, ambos estão em suas casas e a narrativa explora particularmente o barraco onde o segundo mora. Outro dado de interesse para este texto é o tratamento dispensado à religião, vista como uma forma de alienação à qual os migrantes apelam após enfrentar toda sorte de problemas.

Nada mais diferente da visão que trinta e quatro anos depois nos dará Eduardo Coutinho em Santo forte, visão esta possível após uma série de críticas ao cineasta-intelectual demiurgo dos interesses populares (6).

Conforme o próprio diretor afirma:

"A minha hipótese é a de que o documentário não forçosamente informa e muito menos educa. O documentário tem que deixar as coisas abertas para que o público pense. E, portanto, eu não estou à procura da verdade, eu estou à procura do imaginário das pessoas." (7)

Santo forte possui depoimentos bem menos editados quando comparados aos de Notícias de uma guerra particular e O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas. Esta característica, aliada à estrutura narrativa, possibilita ao espectador compreender melhor como o indivíduo se coloca diante do(s) problema(s) levantado(s) pelo filme.

No mesmo sentido também é que a atuação dos entrevistados (8), a construção da ambientação, os enquadramentos e a iluminação em Santo forte são radicalmente diferentes dos outros dois filmes.

Vejamos: Eduardo Coutinho entrevista quase todas as pessoas sentadas nas suas casas seja no interior delas, na porta ou no quintal; as casas são pobres mas estão de tal forma arrumadas, enquadradas e iluminadas que não causam estranheza no espectador de classe média - como sempre o público alvo -; finalmente há o predomínio do plano de meia-figura e do plano próximo com a câmera na mesma altura do entrevistado. Há alguns momentos em que isto se quebra, tais como a missa, os planos de ambientes sem pessoas e com silêncio, o plano do quarto de Dona Thereza com as crianças dormindo e os detalhes de entidades, mas me parece inteiramente de acordo com a proposta estética construída. Somente em dois momentos o filme parece dar vazão ao tradicional estranhamento diante do outro de classe: Carla dançando no show e Dona Thereza indo para a casa dos seus patrões.

Já os filmes de João Moreira Salles & Kátia Lund e Paulo Caldas & Marcelo Luna não têm o mesmo parti pris, daí decorrendo toda uma forma documentarista diferente.

No primeiro caso há até o velho recurso da locução visando explicitar de modo inequívoco para o espectador o problema levantado pelo filme: trata-se de uma conflagração violenta e de grandes proporções entre os representantes do Estado e os do tráfico, no meio da guerra está a população pobre. A partir daí, será posta em marcha a demonstração por meio de entrevistas com indivíduos que participam do problema e asseveram a existência dele. Um segundo nível de entrevistados têm a função de explicar os problemas. Há toda uma diferença de tratamento entre os três tipos de vozes, ou seja, a locução, os participantes e os explicadores.

A locução é a mais tradicional possível tanto em termos do tipo de voz utilizada no documentário - masculina e grave -, quanto do tipo de texto com linguagem culta e cuja função é dar informações que não devem ser colocadas em dúvida pelo espectador. Os participantes falam quase sempre apenas do ponto de vista pessoal ou no máximo do lado a que pertencem, suas expressões lingüísticas destacam-se pelo excesso de erros, gírias e termos técnicos, e eles estão "vestidos" a caráter a fim de serem melhor identificados, ou seja, o policial militar está fardado e armado, o traficante está mascarado ou com o rosto borrado por um efeito de computação gráfica, os pobres usam bermuda e camiseta, etc. Já os explicadores, cujo principal é Hélio Luz mas não o único pois nesta função está também o escritor Paulo Lins e um ex-traficante, têm uma linguagem correta e sem excessos, são enquadrados em planos mais fechados - de forma que sua indumentária deixa de ser importante - e seu discurso possui um teor generalizante - falam menos da experiência pessoal e mais das entidades "tráfico", "polícia", "morro" e "Estado". O fato de Hélio Luz exercer um cargo na chefia da polícia ou de Paulo Lins residir na favela Cidade de Deus indica que eles potencialmente poderiam cumprir a função de participantes, mas isto não se referenda no filme, assim, por exemplo, não vemos Hélio Luz vestido com o colete da Polícia Civil ou numa diligência nem Paulo Lins numa rua da citada favela. Eles são como que "descontextualizados", muito embora um letreiro informe a função do delegado e seja de conhecimento geral aspectos da vida de Paulo Lins.

Uma ausência chama atenção em Notícias de uma guerra particular: a classe média. Na verdade não se trata de uma ausência absoluta: Paulo Lins lembra que o conflito existe há muito tempo mas só agora quando ele se dá no asfalto a imprensa importa-se, para Hélio Luz se a polícia funcionar todos terão de respeitar a lei inclusive em Ipanema e Adriano afirma que seus clientes não são os pobres pois estes têm pouco dinheiro. Porém, apenas são frestas no filme, os temas da classe média acuada, das reações em diferentes níveis a sensação de descontrole da violência, das relações entre classe média e tráfico não são nunca desenvolvidos, parece que o problema não a envolve. Tal ausência surge como reflexo de dois eixos ideológicos conjugados: 1) A recusa, apontada por diversos ensaístas (9), da classe média brasileira reconhecer-se como parte dos problemas nacionais. 2) A "epistefilia", conforme a qualificou Bill Nichols, que leva o espectador de documentários a não se comprometer com os assuntos abordados e sim com os próprios documentários, pois assim podemos seguir olhando o mundo sem nos expormos a nenhum perigo real (10).

O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas opera através da oposição entre as opções de Garnizé - arte e consciência política - e Helinho - a violência. Se em termos estruturais, conforme observei, há um claro destaque para o primeiro, já em termos de enquadramento, construção da ambientação ou tipo de fala a diferença de tratamento não se faz sentir tanto. Isto decorre do fato dos realizadores buscarem dar voz ao matador, certamente uma figura bastante antipática para a maior parte do público-alvo do filme, a classe média intelectualizada. Existe pelo menos um explicador, o advogado criminalista, mas ele tem função secundária na narrativa.

Alguns espectadores entendem que o filme possui uma postura ambígua por não condenar claramente Helinho ou a atitude dos seus defensores. Não concordo com esta posição, pois o destaque de Garnizé na estrutura narrativa, os belos planos dele tocando atabaque, as imagens significativas do seu corpo tatuado com as efígies, além da ligação com Mano Brown - figura de proa no movimento de conscientização dos negros brasileiros - são bastante indicativos da preferência pelo músico.

O que ocorre, e aliás nenhum dos filmes analisados aqui escapa a esta questão, é outro problema. Diante da desconfiança para com a locução e de uma montagem excessivamente expositiva, mais característicos dos documentários brasileiros dos anos 60, os realizadores querem dar margem à interpretação dos espectadores. Aí se cria uma situação na qual, por exemplo, caso o espectador tenha posições esquerdistas que entendem a religião como o ópio do povo ele tenderá a ver no filme de Eduardo Coutinho a prova desta tese pois afinal todos sofrem muito e têm profunda religiosidade; outro espectador envolvido com o tráfico de drogas e morador dos morros verá confirmada a sua concepção sobre a importância da atividade para a comunidade; e um espectador favorável à lei-do-cão defenderá a ação de Helinho.

Obviamente nenhuma das posições expostas acima é referendada pelos respectivos filmes, mas a ausência de uma diretriz expositiva mais clara permite este nível de interpretação de acordo com as simpatias e/ou crenças prévias do espectador, que "esquece" ou "desqualifica" as argumentações discordantes. Como afirma Eduardo Coutinho: "O difícil é trazer as razões do outro, sem lhe dar razão." (11)

A solução para tal problema não é o retrocesso às formas mais antigas de documentário, ainda hoje dominantes em especial nas produções voltadas para canais como Discovery Channel. A questão permanece em aberto: como dialogar para além da classe média intelectualizada? Um dos caminhos passa pela transformação das classes populares de objeto dos filmes em público alvo, o que é difícil devido à falta de exibição deste tipo de produto em canais abertos ou de uma divulgação ampla pelo home video. Se isto ocorrer será possível não apenas o estabelecimento do diálogo, tornando mais complexa a discussão em torno dos filmes e a concepção deles, mas ainda que aumente exponencialmente a produção audiovisual realizada por pessoas da favela, do morro, do cortiço, etc. O movimento Dogma Feijoada, apesar da ingenuidade do manifesto, caminha nesta direção ao propor uma produção orgânica com relação à questão do negro.


III. IMAGENS QUE PERSISTEM

Os três documentários discutidos apresentam vertiginosos planos aéreos sobre grandes extensões geográficas de favelas. Significativamente, já em Rio, 40 graus existe este tipo de imagem logo na seqüência de abertura, onde após vistas aéreas de pontos turísticos temos o morro, tudo embalado pela melodia do samba "A voz do morro" de Zé Kéti (12). A força matricial desta seqüência para o cinema brasileiro reverbera desde então. Lúcia Nagib já chamou a atenção para o fato da produção atual "citar, homenagear e mesmo copiar Glauber Rocha e o Cinema Novo" (13), não causa estranheza, pois, as relações estabelecidas com o filme que viria a influenciar este movimento.

Numa etapa primária de significação, os documentários utilizam planos aéreos de favelas para informar ao espectador de maneira direta e impressionante a respeito da enorme massa de pobreza nas cidades brasileiras. Além disso, jogam com a sedução estética exercida por este tipo de imagem, quase abstrata na sua conformação dependendo do enquadramento adotado, objetivando atrair o espectador e torná-lo cúmplice da perspectiva elaborada pelo filme. Não deixam de existir aí laivos românticos no sentido: a favela é um problema social, mas é bela como manifestação popular.

Mais profundamente, entretanto, o significado dos planos aéreos é diferenciado de um filme para outro.
Logo no início de Notícias de uma guerra particular há dois planos aéreos de favela montados contiguamente e com a velocidade da movimentação de câmera parecida acarretando uma certa continuidade de um para outro, gerando no espectador a impressão de pobreza e conflito infinitos. O tom grave da voz do locutor e o ruído de helicóptero amplificam o tom geral sombrio que se quer transmitir. Não há contraste morro / asfalto, os planos se concentram unicamente no primeiro ambiente, o que é mais uma demonstração, agora no nível imagético, da perspectiva ideológica do filme de isolar a classe média do conflito.

Santo forte, seguindo mais de perto a trilha aberta por Rio, 40 graus, explora o contraste imagético morro / asfalto. Tal contraste, apesar da intensa utilização nos últimos quarenta e cinco anos, continua sendo impactante na denúncia do abismo social brasileiro. Assim como em Notícias de uma guerra particular, há dois planos aéreos colocados logo no início e em ambos os filmes eles servem de introdução: falaremos a seguir das pessoas que habitam este lugar. O primeiro plano é mais aberto e enquadra edifícios de classe média, a favela e a floresta; o segundo, circular quanto à movimentação da câmera, mostra apenas a favela.

O som, conforme já me referi anteriormente, é o de pessoas rezando no Aterro do Flamengo durante a missa do papa. Isto confere um sentido de polifonia quanto aos procedimentos da narrativa e de profunda religiosidade quanto à comunidade que vai ser mostrada. A aproximação é delicada e busca esvaziar o medo-pânico típico do espectador de classe média desacostumado com aquele ambiente.

O plano aéreo de maior força está em O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas. Aqui temos um plano de longa duração localizado mais ou menos no meio da narrativa, o som é composto tão somente por uma pungente música dos Racionais MC's em que se destacam os nomes de lugares pobres de São Paulo.

Mas, para a total compreensão do seu significado, é necessário lembrar que imediatamente antes tivemos um almoço entre os rappers paulistas e os pernambucanos na laje de uma casa na favela em Camaragibe, em determinado momento Mano Brown aponta para o horizonte e vai declinando o nome de favelas ou subúrbios paulistanos. O filme representa, possivelmente pela primeira vez no cinema brasileiro, a atuação articulada do movimento hip-hop, cuja importância é inegável em relação aos avanços da consciência racial e social dos jovens (14). Não por acaso ele tem provocado a reação positiva de espectadores da periferia em sessões a que tive a oportunidade de acompanhar. Curioso notar, em Baile perfumado alguns dos momentos mais fortes são aqueles de planos aéreos com a música de Chico Science (15).


IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em análise recente, Ismail Xavier afirma que a tão celebrada "diversidade" da produção cinematográfica brasileira contemporânea na realidade traduz de maneira geral uma "falta de interesse pelo debate que possa confrontar alternativas estéticas e adensar os projetos" (16). A asserção parece-me bastante válida, mas talvez a grande exceção neste quadro negativo seja o documentário.

Através da discussão aqui levantada pudemos esboçar a variedade e riqueza do gênero na atualidade. Se Notícias de uma guerra particular destaca-se pela força expositiva, das imagens cruentas e da construção de uma situação verdadeiramente infernal; já O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas tem seu ponto forte na percepção e representação cinematográfica do movimento hip-hop - movimento social cuja novidade das proposições pode ser comparada hoje apenas com o Movimento Sem Terra (MST) -; finalmente Santo forte demonstra que a palavra é tão vital para o audiovisual quanto a imagem e se coloca como uma opção estética para a velha "folclorização" do popular (17).

E estes filmes não são os únicos de interesse. Nos anos 90, apenas a título de exemplo, poderíamos citar como obras de destaque: Conterrâneos velhos de guerra (Vladimir Carvalho, 1990), Memória (Roberto Henkin, 1990), Hip-hop SP (Francisco César Filho, 1990), Rota ABC (Francisco César Filho, 1991), A voz do morto (Sérgio Zeigler e Vitor Ângelo, 1993), Vala comum (João Godoy, 1994), Socorro Nobre (Walter Salles, 1995), Mariga (Paolo Gregori, 1995), Nelson Sargento (Estevão Pantoja, 1997), À meia-noite com Glauber (Ivan Cardoso, 1997), Vitrais (Cecília Araújo, 1999) e Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 1999). Além disso, a ebulição em torno do documentário pode ser aferida pelo surgimento de algumas fontes de financiamento mais ou menos regulares - entre outras, Instituto Cultural Itaú, Ministério da Cultura, Riofilme, GNT -, de cursos dedicados ao tema - como o realizado em São Paulo no segundo semestre de 2000 no Centro Universitário Maria Antônia -, de eventos - Festival do Filme do Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, Mostra Internacional do Filme Etnográfico (RJ) e o É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários (RJ/SP) - e teses de pós-graduação. De resto, é necessário lembrar que o documentário passa hoje por todo um processo de renovação tanto no nível da produção - através de diretores como Errol Morris, Michael Moore ou Trinh T. Minh-ha - quanto da teorização - através de ensaístas como Bill Nichols, Michael Renov ou Brian Winston.

Entretanto, para tornar o quadro brasileiro mais realista é necessário questionar dois pontos, um no nível da circulação e outro no nível ideológico. Se a difusão da produção nacional já é ruim, a do documentário então quase inexiste se restringindo na maior parte das vezes aos festivais de cinema e aos canais de TV paga, o que inviabiliza qualquer diálogo amplo com o público e especificamente com os segmentos pobres, limitadas ao eterno papel de objeto dos filmes. Do ponto de vista ideológico chama atenção a ausência quase absoluta no documentário brasileiro atual de temas que envolvam diretamente a classe média com um padrão mínimo de abrangência e reflexão crítica, fica no ar quais as causas deste vazio (18).


1 Emprego neste texto o termo "narrativa", em relação ao documentário, sem nenhum preconceito. Conforme nos lembra Bill Nichols: "A narrativa como mecanismo para contar histórias parece muito diferente do documentário como mecanismo para abordar questões cotidianas não imaginárias. Mas nem todas as narrativas são ficções. A exposição pode incorporar elementos consideráveis da narrativa, como demonstra com toda a clareza a escritura histórica." Ver: NICHOLS, Bill. La representación de la realidad. Barcelona: Paidós, 1997. p. 34-35.
2 Estas imagens foram utilizadas também em O primeiro dia (Walter Salles e Daniela Thomas, 1998).
3 Coincidentemente em Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1996) um personagem secundário fundamental para a trama é aleijado e se locomove através das mãos.
4 Hélio José Muniz Filho, o Helinho, estava condenado a 100 anos de prisão e era acusado de 65 assassinatos. Ele foi morto aos 24 anos no presídio. Ver: Personagem de filme é morto em Recife. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 jan. 2001.
5 OLIVEIRA, Jane Souto de e MARCIER, Maria Hortense. A palavra é: favela. In: ZALUAR, Alba e ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 61.
6 Trabalhos fundamentais neste sentido são: BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
7 Fé na lucidez - Entrevista com Eduardo Coutinho. Sinopse, São Paulo, v. I, n. 3, dez. 1999.
8 A referência à atuação não é descabida se lembrarmos que os entrevistados sempre representam a si próprios. Ver: SANTEIRO, Sérgio. Conceito de dramaturgia natural. Filme Cultura, Rio de Janeiro, n. 30, ago. 1978.
9 Especificamente sobre a relação alienada da classe média com o cinema brasileiro ver: GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. In: Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Embrafilme, 1980. p. 87.
10 NICHOLS, Bill. Op. cit., p. 234.
11 Fé na lucidez - Entrevista com Eduardo Coutinho. Op. cit.
12 Uma boa interpretação da seqüência de abertura de Rio, 40 graus pode ser encontrada em: FABRIS, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: Um olhar neo-realista? São Paulo: Edusp/Fapesp, 1994. p. 91-94.
13 NAGIB, Lúcia. O novo cinema sob o espectro do Cinema Novo. In: SOCINE (Org.). Estudos de cinema: Socine II e III. São Paulo: Annablume, 2000. 116.
14 Certamente este não é o primeiro filme a tematizar o hip-hop, bastando mencionar aqui o interessante Hip -hop SP (Francisco César Filho, 1990). A novidade de O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas diz respeito ao tratamento de claro viés político dado ao hip-hop, ausente ou apenas secundário em outras realizações.
15 A expressividade destas imagens de Baile perfumado e sua relação com outros filmes brasileiros contemporâneos e passados foi analisada em NAGIB, Lúcia. Op. cit., p. 124.
16 O cinema brasileiro dos anos 90 - Entrevista com Ismail Xavier. Praga, São Paulo, n. 9, jun. 2000.
17 Exemplar desta "folclorização" a que me referi é o documentário Fé (Ricardo Dias, 1999), certamente cheio de boas intenções mas cujos resultados são discutíveis ao dar total prioridade para o inusitado e o exótico das religiões abordadas.
18 Após o término da redação deste artigo foi publicada uma declaração de João Moreira Salles sobre a necessidade de o documentário brasileiro discutir a classe média, o que é certamente um dado muito positivo para a superação do problema apontado aqui. Ver: +3 Questões sobre documentário - Entrevista com Amir Labaki e João Moreira Salles. Folha de S. Paulo, São Paulo, 4 mar. 2001.


* Arthur Autran é doutorando no Depto. de Multimeios do Instituto de Artes - Unicamp