Liberd-Aruande*



por Marília Franco
*O filme Aruanda está disponível em vídeo pela coleção Brasilianas da FUNARTE  


"Uma coisa são sempre duas: A coisa mesma e a imagem dela"
(Drummond)


"Linduarte Noronha e Rucker Vieira entram na imagem viva, na montagem descontínua,
no filme incompleto. Aruanda assim inaugura o documentário brasileiro nesta fase
de renascimento que atravessamos... Sentimos o valor intelectual dos cineastas, que são
homens vindos da cultura cinematográfica para o cinema, e não vindos do rádio,
do teatro, da literatura. Ou senão vindos do povo mesmo, com a visão de
artistas primitivos, criadores anônimos longe da civilização metropolitana..."

(Glauber Rocha - Revisão crítica do cinema brasileiro).


1968 - Conheço Aruanda.
Desvendamento, Revelação.
Aruanda e a imagem dele.
Uma lembrança constante, reiterada.
Fragmentos de cenas revelados pela memória.
Foto-memórias.
Som-memórias.
Os pífanos ficaram em meus ouvidos.
A melancolia traçada no som do filme deixou
seu gosto.
Gosto-memória.

1982 - Revejo Aruanda. A coisa mesma.
Anoto, Penso.
Leio a imagem dele em outras memórias.

... "O documentário não se limita a mostrar flagrantes de uma vida atrasada, mas pretende apresentar o mecanismo dessa vida". Mas, "Noronha ultrapassa poeticamente a exposição de um mecanismo econômico. Ele tem a intuição do deserto: a terra seca é a personagem principal da fita"...
..."Embora preocupado em realizar um trabalho de cunho sociológico e antropológico antes de mais nada, Noronha fez também um filme poético em torno de uma libertação, a fuga dos escravos e a criação de Palmares, acontecimento que seria várias vezes retomado", na cultura brasileira, "como símbolo discutível, de liberdade". (Jean Claude Bernardet - Brasil em tempo de cinema).

1982 - O foco. Olho-memória.
Sobrepor a coisa mesma, as imagens dela e conferir o foco. Aruanda me parece maior, mais nítido que as imagens dele.

Glauber explicita o papel inaugural do filme e o trecho exclusivo que Jean-Claude lhe dedica em seu livro atestam sua importância, reconhecida no momento mesmo em que foi divulgado.
Refazendo hoje, pela leitura, a trajetória do Cinema Novo, relendo seus postulados, suas dúvidas e certezas, inventariando certos termos e temas, vejo em Aruanda uma dupla função deflagradora:

- no nível temático - a busca da libertação e o exercício da liberdade.

- no nível da linguagem - o subdesenvolvimento técnico não impedindo o alcance pleno da poesia e, mesmo, ampliando-lhe a dimensão.

Só vejo sentido em rever o passado quando seja para esclarecer uma ansiedade presente e melhor informar os caminhos do futuro. Do Cinema Novo ficaram, martelando nas memórias, certos temas-choque.

"idéia na cabeça, câmera na mão".

O repisar fora do contexto distanciou a coisa mesma da imagem dela. E o que era conclusão brilhante de um raciocínio tornou-se uma bandeira ideológica balançando ao sabor de ventos muitas vezes contrários às idéias que a teceram.

Aruanda, Rio 40°, Humberto Mauro. Ancestrais genealogias. A própria origem do termo Cinema Novo carrega em si a contradição. Aquele que nomeou o movimento foi seu maior inimigo. Ely Azeredo.
Rebento promissor, filho rebelde, fruto da inédita união de consciência e ação no seio da classe cinematográfica, faz da pluralidade de tendências e paixões a seiva do seu desenvolvimento. Mastiga o que lhe cai no prato - neo-realismo, "nouvelle-vague", política autoral francesa, "Cahiers du Cinéma", chanchada,

Vera Cruz, Eisenstein.
Lauto repasto a alimentar ávidas criatividades, adolescentes rebeldias. Saudáveis irresponsabilidade culturais que desconhecem o sagrado e intocável. A face da cultura brasileira não estava perdida em nenhum espelho alienígena.

Chiclete com banana
Fondue com feijoada
Tacacá e macarronada

O franzino cinema subdesenvolvido deglute gordas e saudáveis teorias no prato de louça ordinária de nossos parcos recursos técnicos.
Shazam! A Câmera na mão, voa.
O olhar de Raio X radiografa e expõe a entranha da pobreza sem solução.

Como a fome pode ser poética?
Estética? Da fome?!!!
Aruanda é a contradição.
Contido e apaixonado.
Distancia e toma partido.
Marginal - porque cinema, porque paraibano.

A marginalidade denunciada de seus personagens torna-o a metáfora de si mesmo.

Aruanda. Ele mesmo - o filme - A imagem dele - o cinema.
Aruanda é a metáfora prévia dos rumos do Cinema Novo.

Sair do estúdio, largar a câmera pesada, misturar ludicamente regras, estilos, postulados. Duvidar e afirmar. A realidade é o tema.

Por que um documentário começa com a reconstituição de um fato histórico? Quase metade do filme é a caminhada de Zé Bento e a família pelas áridas plagas nordestinas. Nada mudou de lá até aqui nesse cenário. O sol continua forte, o vento levando a farinha, os galhos ressecados, o menino barrigudo e nu. Reconstituição? Presente o passado.

"Zé Bento resolveu partir com a família à procura da terra onde pudesse viver. Fugir da servidão. Da antiga escravatura". (Texto do filme)

- Oh! mana deixa eu ir.
- Oh! mana eu vou só...

A busca da libertação é penosa.
Todos os percursos, no filme, são acompanhados de uma música lenta, triste.
... Oh! mana, deixa eu ir.

O exercício da liberdade.
O som do atabaque é vigoroso.
O som do pífano é atrevido, agitado
É a mão cavando a terra.

O pé socando o barro.
A rústica parede de galhos trançados recheados de barro.
A casa,
Tosca, precária.
O algodão.
Mirrado, minguado.
A seca.

A água, pouca pra fazer brotar o algodão, é suficiente pra misturar no pó e fazer o barro. E a mão da mulher, feita de barro do barro do homem, redime o pecado original da pobreza e molda o jarro-pão, a tigela-farinha, o vaso-fumo, a panela-jabá.

Oh, mana deixa eu ir pra feira vender a cerâmica. E daquelas peças simples, primitivas, a população do povoado inaugurado por Zé Bento, tira seu sustento.

"As estiagens prolongadas, o analfabetismo, a fome, o isolamento obriga-os a uma vida primitiva. A um sistema econômico improdutivo. Formam o inevitável círculo vicioso. Da pedra calcinada à feira livre e desta ao convívio isolado e pobre da região, ao trabalho da cerâmica. Talhado é um extrato social à parte do país. Existe fisiograficamente. Inexiste no âmbito das instituições".

Esse é o texto que conclui o filme.

Num país subdesenvolvido e dependente o exercício possível da liberdade - de morar, de produzir - é a marginalidade.

Num debate entre Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, sobre as origens do Cinema Novo, publicado no n.º 1 da Revista Civilização Brasileira, Nelson vai resumir assim a liberdade exercida pelo diretor/autor, no Cinema Novo:

"Na verdade o diretor brasileiro é o homem que inventa o produtor, inventa os autores, inventa a história, e vai ser também o distribuidor, o publicista de seu próprio filme, em toda a trajetória, é que ele conquista sua liberdade como realizador".

Glauber Rocha define com precisão a dor dessa liberdade:

"No cinema, o autor não pode produzir porque sua criação depende dos meios técnicos - ele necessita de uma máquina que transforme suas idéias em expressão. Esta máquina lhe é negada; o autor na renúncia mística, despe-se e se lança à conquista dos meios e do filme - ele cria com a fome e com o sangue e raramente não é vencido - mas o que escapa, o que vive desta luta é o que resta de eterno para o cinema - como "L'Atalante" ou "Roma, cidade aberta" (A Revolução do Cinema Novo).

Ou "Rio, 40 graus", "Deus e o diabo na terra do sol", "Aruanda". Tesouros quase perdidos no anonimato de uma cultura sem sobrenome.

Cinema Novo - filmes que fizeram o delírio de poucos, a incomodidade de alguns, até serem resgatados da mesquinha incompreensão pelo aplauso da Europa. Nossa pátria-mãe - cultural acarinha compreensiva a cabeça do filho rebelde. Nutre suas flácidas pelancas culturais com a energia saudável do adolescente em busca da identidade. Saboreia o gosto novo de seu próprio cardápio enriquecido com as especiarias do Terceiro Mundo.

Aruanda, em Rio e São Paulo, é primitivo, puro. Bebe-se-o com cerveja nos bares da "inteligentzia". Precursor doméstico do destino internacional de seus herdeiros.

Síntese do grande banquete de entredevorações dialéticas das culturas centrais e periféricas de um mesmo sistema.

Aruanda - obra síntese do anseio e da situação do cineasta brasileiro. Anseio de liberdade, situação de subdesenvolvimento. Marginalidade.

Aruanda hoje já não deflagra, mas retrata.

Ainda a busca da liberdade. Ainda o subdesenvolvimento. Ainda a marginalidade do cineasta, do cinema, da cultura.

Aruanda é uma perplexidade.

Como o recorte desse ínfimo pedaço de terra seca, perpetuado numa película vencida pode perpassar vinte anos sem perder o viço e o vigor?

Na modéstia de sua poesia Linduarte Noronha alcançou o universal. Na aplicação discreta de seus conhecimentos cinematográficos, na sua antropologia amorosa, recusou a acusação, o panfleto, a solução. Isso não pertence às funções do cinema-poema. O retrato. Puro e simples. Quem melhor para falar de si que a coisa mesma?

1982 - O conhecimento
Hoje conheço Aruanda. Revi. Anotei. Pensei. Li.
Escrevi sobre ele. O filme.
Aruanda e a imagem dele.
Aruanda e a imagem dela. A liberdade.

Não podia falar dela sem libertar-me. Dos cânones de um trabalho acadêmico. Do número de páginas, do raciocínio lógico frio. Começo, meio, fim. Tese. Antítese, síntese?!
As citações vieram naturalmente. A gestação deste texto foi longa. O parto suave, prazeroso.
Aruanda/liberdade penetrou-me e me modificou. Deixar seu tema fluir pelos espaços da minha cabeça organizou a inquietação deixada pelo curso e ampliou o alcance de suas discussões.
Agora a identidade, a dependência, a antropofagia, o particular e o universal, a contradição, são idéias que encontraram seu lugar na minha cabeça.
O cerimonial mítico da devoração de Aruanda deu-me novas energias intelectuais. Todo o curso fez parte do rito.

Aruanda ainda é deflagrador.
Este texto é testemunho disso.
Eu nunca tinha sido poeta antes.


(*) Este texto foi apresentado como trabalho do curso de pós-graduação "O Conceito de subdesenvolvimento na interpretação do processo cultural", ministrado pelos Profº Dr. José Teixeira Coelho Neto e Prof. Jean-Claude Bernardet.