Realismo Documentário, Teoria da Amostragem e Semiótica Peirceana: os signos audiovisuais eletrônicos
(analógicos ou digitais) como índices da realidade.


 
Resumo:

            Neste trabalho é reafirmado o Realismo Documentário, através de uma análise dos fenômenos físicos de transdução em sistemas audiovisuais analógicos ou digitais, sob a luz da Teoria da Amostragem no âmbito da Teoria da Informação de Shannon e Weaver. Transdução é um processo de transformação de um tipo de energia em outro tipo, ou mesmo de transcodificação de uma informação. Para o Realismo Documentário deve ser considerado um equívoco a afirmação de que os signos audiovisuais eletrônicos, em função de suas características técnicas estariam promovendo uma ruptura de sua ligação com a realidade, ou seja, que não poderiam mais ser considerados índices da realidade.

 

Desenvolvimento:

            Como continuidade da pesquisa conduzida desde a elaboração da tese “Documentário, Realidade e Semiose” (Godoy-de-Souza – 1999), para o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, onde se aprofundaram as condições epistemológicas, para a defesa de um Novo Realismo Documentário, é necessário trazer à luz alguns aspectos da pesquisa que ainda não foram apresentados à comunidade científica.

Em comunicações anteriores, no 8º Compós, através do artigo “Paradigma para Fundamentação de uma Teoria Realista do Documentário”; no IV SOCINE e  no XXIV INTERCOM, através do artigo “Marey e a visibilidade do invisível”, foram apresentados aspectos da Teoria do Umwelt de Jacob von Uexküll (Uexküll - 1992) e da Teoria da Realidade de Charles Sanders Peirce (Vieira – 1994; Ibri – 1992 e 1994) como suportes teóricos para a reafirmação do Realismo Documentário, e crítica ao nominalismo de certos autores que duvidam da capacidade de representação da realidade pelo Documentário.

O Documentário deve ser afirmado em sua função de Signo Indiciático, como elo de ligação entre a realidade e o Universo Subjetivo, o Umwelt. Por Umwelt, tal como proposto por Jacob von Uexküll, deve ser compreendido uma representação da Realidade desenvolvida na mente de qualquer espécie animal, inclusive do Homo sapiens sapiens. O Umwelt é uma espécie de “bolha cenográfica”, um mapa da realidade, que é carregado pelos animais como uma forma de referência coerente com os objetos e fenômenos existentes no mundo real. Portanto aquilo que a humanidade ingenuamente toma por realidade trata-se apenas de uma representação mental.

A Teoria da Realidade de Charles Sanders Peirce aponta para uma complexificação do conceito de realidade, na medida em que propõe uma Realidade composta por 3 categorias denominadas respectivamente: Primeiridade, Segundidade e Terceiridade. Para esse filósofo a Segundidade é a categoria que melhor se enquadraria em nossa concepção das coisas existentes. É no âmbito da Segundidade que as coisas vem à existência, que as coisas se opõe umas às outras, e  que pela oposição atestam suas existências. A Terceiridade é uma categoria eidética, que ocorre no campo das idéias, da generalidade, onde habitam as leis do universo, originadas pela força do hábito. A própria concepção de universo como expressão de uma mente maior e absoluta, aponta para a complexidade do conceito de Realidade com a qual deve ser tratada a questão do Documentário.

            Neste artigo é proposto um aprofundamento da crítica ao nominalismo latente nas posições de alguns autores tais como: Arlindo Machado, Bill Nichols, Brian Winston e Edmond Couchot (Machado – 1993 e 1997; Winston – 1995 e 1996; Nichols – 1991; Couchot – 1993). Esses autores, em maior ou menor grau, duvidam da indicialidade dos signos eletrônicos audiovisuais. Encontram-se afirmações de que os sistemas eletrônicos analógicos, em função das características físicas de sua imagem, iniciaram um processo de ruptura da crença da revelação do mundo através dos sistemas audiovisuais. Outros insistem que com o surgimento da imagem e sons digitais, e sua infinita capacidade manipulativa, toda a ligação com o real teria desaparecido completamente.

            A título de exemplo, no caso do vídeo analógico, Arlindo Machado afirma que a fugacidade da imagem produzida pela varredura de feixes de eletróns no cinescópio rompe com a representação do real, nas palavras do autor:

 

“A questão da realidade não se coloca, portanto, no universo do vídeo da mesma forma como se coloca em outros sistemas expressivos baseados na imagem técnica. É possível mesmo que essa questão nem se coloque, ou que dela nem se cogite. Ter ou não ter uma referência material no mundo dito objetivo é um dilema destituido de sentido para a imagem eletrônica, pois as figuras que ela exibe jamais resultam intactas, inteiras, imediatamente reconhecíveis como reflexo especular.” (Machado, 1993:52)

 

            No caso da invalidação das imagens digitais como índices do mundo, o argumento usado aponta para o fato da organização numérica dessa imagem não possuir nenhuma referência na realidade. Assim podemos citar, também a título de exemplo, a seguinte afirmação de Bill Nichols, nas palavras do autor:

 

“Técnicas de amostragem digital, através das quais uma imagem é constituida por bits digitais (números), que são objetos de infinita modificação, torna (...) a natureza indicial da fotografia obsoleta. A imagem é transformada em uma série de bits, um padrão de escolhas entre sim/não, registradas dentro da memória de um computador. Uma versão modificada daquele padrão não será em nenhum sentido derivada do “original”: ela se torna, ao invés, um novo original.” (Nichols, 1991 : 268)  

            Esse autor chega a afirmar que seus estudos de representação da realidade estariam limitados às imagens não-digitais ! (Nichols, 1991: 05)

            Há um equívoco fundamental nessas afirmações pois não existe possibilidade de negação da característica indiciática dos signos audiovisuais eletrônicos analógicos ou digitais à partir de suas características físico-tecnológicas. Pelo contrário, uma análise detalhada permite compreender esses signos muito mais pelas suas semelhanças com os tradicionais signos indiciáticos fotográficos (fotoquímicos) do que pelas suas diferenças. Para tanto basta que se considere a definição de Signo Indiciático em C.S.Peirce (Nöth – 1990), e algumas questões técnicas fundamentadas pela Teoria da Amostragem, desenvolvida por Shannon e Nyquist (Wilson – 1983; Mathias & Patterson – 1985; Pohlmann – 1990).

            De acordo com Peirce, um signo é um índice quando ele “está conectado fisicamente com seu objeto”, o que “envolve a existência do objeto como uma entidade individual”. Afirma-se ainda que os termos sinal, índice e sintoma podem ser considerados sinônimos. (Nöth - 1990) Nas palavras de Peirce:  

“Uma fotografia, por exemplo, não somente excita uma imagem, tem uma aparência, mas em virtude de sua conexão óptica com o objeto, é evidência que aquela aparência corresponde à realidade.” (CP 4:447)  

            A Teoria da Amostragem, afirma que é possível recuperar-se totalmente um sinal contínuo a partir de uma coleção de amostras do sinal original, obtidas em um determinado período de tempo. Isto é, os fenômenos que na Realidade apresentam-se como continuidades infinitesimais podem ser recuperados em toda a sua extensão utilizando-se como ponto de partida uma coleção finita de amostras discretas daquela continuidade. Para isso é necessário que as amostras sejam feitas em quantidade suficiente para que a informação contida no sinal original possa ser recuperada posteriormente. Assim, de acordo com a Teoria da Amostragem,  devem existir, no mínimo, duas amostras para cada ciclo de um sinal, para que ele possa ser recuperado posteriormente. É através do método da Amostragem que a Ciência tem feito asserções a respeito da realidade; que as imagens tem sido produzidas nas emulsões fotoquímicas e nos CCDs das câmeras de vídeo; e que também tem sido realizada a transformação dos sinais analógicos em sinais digitais. Além disso, é também através do procedimento da Amostragem que os órgãos do sentido são capazes de organizar coerentemente as informações a respeito do ambiente e contribuir para  a construção do Umwelt.

            No olho humano existem milhões de células sensíveis à luz, denominadas cones e bastonetes, distribuidos sobre a superfície retiniana. Essas células ao receberem luz emitem impulsos nervosos que são transmitidos ao cérebro. Toda a infinidade de luzes incidentes sobre a superfície retiniana é representada através de uma amostra finita de impulsos nervosos enviados ao cérebro. Além disso, o olho não fica parado ao focalizar uma cena, ele se move promovendo uma varredura do espaço, produzindo amostras que serão recompiladas pelo cérebro. É a Teoria da Amostragem no âmbito dos seres vivos.

 

            No caso de um filme fotográfico a imagem é formada através de uma amostragem espacial bidimensional das incidências luminosas sobre o fundo de uma câmara escura, realizada pelos cristais de sais de prata. Cada grão de prata metálica, pós-revelação, representa uma amostra da luz incidente sobre a emulsão fotográfica. Através de uma Curva de Transferência de Modulação (FIGURA 01), tradicionalmente utilizada em fotografia, é possível apreciar a incidência da Teoria da Amostragem. Esse tipo de curva, exprime a capacidade de uma emulsão representar um quadro de barras verticais no qual existe uma diminuição da largura e da distância relativa entre as barras, ou seja, um quadro que possui uma grande variação da freqüência espacial de intensidades de luz, durante uma varredura horizontal desse quadro. Os dados da curva são produzidos por um Microdensitômetro, que é um tipo de fotômetro que ao fornecer ao filme exposto um fino feixe luminoso desenvolve a medição da capacidade de resposta da emulsão para cada variação de intensidade luminosa do quadro que foi fotografado. Trata-se de uma análise da capacidade de resolução espacial bidimensional do filme (Wilson – 1983). Essa curva, representa uma função amostrante, que pode ser expressa pela fórmula senx/x (seno de x, divido por x). De acordo com a Teoria da Amostragem essa função amostrante, na forma senx/x, encontra-se no domínio da freqüência. Portanto é possível concluir-se que a Teoria da Amostragem está presente também no processo representacional do sistema fotográfico do tipo fotoquímico.

 

            No caso do vídeo, o tema da amostragem espacial também ocorre, uma vez que nos dispositivos de cargas acopladas, os CCDs das câmeras eletrônicas, existem centenas de milhares de células fotoelétricas, denominadas de PIXELS, distribuidos sobre a superfície fotossensível do CCD. Porém, mais além dessa função amostrante espacial, haverá também uma transformação das respostas elétricas de cada PIXEL, em uma variação temporal de cargas na corrente elétrica produzida na saída do aparato. Ou seja, aquilo que no filme fotográfico era uma função amostrante apenas do espaço, no caso do CCD, transforma-se também em uma função amostrante temporal. A variação de carga elétrica em cada linha de PIXELS deve ser transformada em uma corrente elétrica cuja freqüência deverá ser capaz de responder à amostragem das intensidades luminosas feitas em cada célula fotoelétrica que compõe o dispositivo. A curva que representa a capacidade de resposta de um CCD a um quadro de barras verticais (FIGURA 02), tem a mesma forma “senx/x” que a Curva de Transferência de Modulação de um filme fotográfico.( Mathias & Patterson – 1985; Thorpe - 1994) Por decorrência lógica isto atesta a incidência da Teoria da Amostragem no processamento da imagem eletrônica.

 

            No caso dos sistemas audiovisuais digitais, a corrente elétrica variável de saída do CCD, ou da Cápsula do Microfone, deverá ser transformada, ou transduzida, em uma corrente elétrica do tipo sim/não, contendo uma seqüência numérica binária que representará amostras temporais dos valores contínuos de amplitude daquela corrente elétrica analógica original (Pohlmann – 1990). O sistema eletrônico de digitalização do sinal analógico, um Conversor Analógico-Digital, é apenas um tipo de transdutor que desempenhará duas funções principais: uma Amostragem propriamente dita e uma Quantização. A Amostragem é feita através de uma freqüência de amostragem, que tem por função definir um certo número de amostras necessárias para se recuperar o sinal analógico. Essa frequência, de acordo com a Teoria da Amostragem, deve ser pelo menos duas vezes maior que a maior freqüência da faixa de frequências do sinal analógico. Os sistemas de áudio digital possuem frequências de amostragem da ordem de 40.000 Hertz (ou 40.000 amostras por segundo), pois a faixa de frequências sonoras audíveis situam-se entre 20 e 20.000 Hertz (ou 20.000 Ciclos por segundo). A Quantização é a determinação dos valores de amplitude de cada amostra, expressos através de números binários. A título de exemplo considere um sistema digitalizador regido por números binários de 8 bits, que são compostos por palavras binárias que contém 8 combinações possíveis de “zeros” e “uns”. Um sistema de  quantização de valores de amplitude baseado em números de 8 bits, poderão representar apenas 256 valores diferentes dentro de uma faixa de valores contínuos contidos entre a máxima e mínima amplitude do sinal analógico. A quantização realiza portanto uma espécie de amostragem no âmbito dos valores de amplitude. Dessa forma, um conversor analógico-digital produz sequências de palavras binárias que representam o sinal analógico fornecido na entrada do sistema. Essa sequência de números binários estará disponível para quaisquer manipulações lógicas, antes de ser reconvertida à sua forma analógica original, para poder ser novamente percebida pelos nossos sensores biológicos. O retorno à forma analógica é obtido graças a um aparato eletrônico, denominado Conversor Digital-Analógico, localizado na saída do sistema e que faz exatemente o inverso que o conversor analógico-digital fez na entrada. Todas essas operações (FIGURA 03) são realizadas através de contatos elétricos, operacionalmente processados por circuitos eletrônicos lógicos regidos pelos Operadores pertencentes à Álgebra de Boole (Pohlmann – 1990).

            Em nenhuma das etapas perde-se o contato físico, o que efetivamente liga o signo ao seu objeto. Além disso configura-se claramente um processo de Semiose, onde o signo pode ser transformado em outro signo, gerando complexos processos de significação. Dessa forma, mesmo o sinal digitalizado a partir de um sinal analógico, permanece conectado de alguma forma a uma entidade individual, um objeto existente no mundo real.

            Para Peirce, existe uma Lógica Objetiva que rege as operações mentais no próprio universo. De acordo com Ivo Assad Ibri, isso é uma concepção:

 

"... segundo a qual o Universo contém um processo lógico que lhe é próprio e que, por esta razão, é Real, ou seja, independente da idiossincrasia do pensamento humano." (Ibri, 1992, pag 119)  

            Dessa forma deve ser considerado portanto, como efeito dessa Lógica Objetiva, que, se há incidência da Teoria da Amostragem no processo fotoquímico de formação de imagens, e esse processo é inegavelmente indiciático; a incidência da Teoria da Amostragem no processo eletrônico analógico e digital, dá o testemunho de sua indicialidade. Isto torna sem efeito as considerações nominalistas dos autores citados ao início deste artigo.

            Como conclusão reafirma-se portanto um Realismo Filosófico como fonte de pensamento que deverá nutrir o raciocínio frente às questões colocadas hoje no âmbito do documentário. Reafirma-se ainda que as questões referentes às possibilidades manipulativas do sinal audiovisual digital, não poderão ser utilizadas como prova cabal da perda de referência com o mundo real. Essas questões, importantes em si mesmas deveriam ser transferidas para uma discusão de ordem Ética, Política ou Ideológica, e nunca mais serem utilizadas como especulação a respeito da negação do estatuto Epistemológico dos Sistemas Audiovisuais.


Bibliografia:

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Professor de Fotografia, Cinema e Video - Departamento de Comunicação e Artes - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Mestre em Artes/Cinema - ECA-USP - São Paulo
Doutor em Comunicação e Semiótica - COS-PUCSP - São Paulo