João Batista de Andrade


Entrevista
realizada em 01 de abril de 2003
por Alexandre Kishimoto, Carla Miucci e Flávio Brito.

Captação de imagens:
André Costa e Matias Lancetti
Captação de Som: Danilo Concílio


Parte I


Formação e influências

"Comecei a fazer cinema em 63, na época eu estudava engenharia na escola Politécnica em SP, e vim do interior fazendo aquele 'pinga-pinga', subindo do interior para uma cidade maior, que é Uberaba, depois Belo Horizonte... Depois vim para cá para fazer o vestibular de engenharia na USP, na Politécnica. Sempre fui uma pessoa muito inquieta e passei por crises terríveis na adolescência, crises existenciais e filosóficas, então quando entrei na escola foi natural que eu procurasse e acabasse me enturmando com o pessoal ligado à cultura, arte, cinema e ao teatro da Politécnica. Tinha um grupo que já estava trabalhando na escola, do Francisco Ramalho Jr., (...) ele tinha uma câmera super 8 e feito um filme em super 8 que chamava "Menina Moça"; o ator era o Antônio Bertasso, querido Antônio Bertasso, que foi morto pela ditadura, pela luta armada.

Isso acho que foi em 63, me aproximei desse pessoal e fizemos um grupo chamado Kuatro com 'K', e porque fizemos isso? Um grupo quatro com 'K'? Porque tanto eu como o Ramalho éramos influenciados tanto pelo neo-realismo, que era um cinema que a gente gostava muito, e também o cinema tcheco e o polonês; o cinema polonês tinha dois cineastas o Wajda e o Kawalerowicz (Jerzy), eu, particularmente, era fã dos dois, e o grupo dele era "Kadr", então nosso grupo chamou-se Kuatro, nós éramos quatro e chamou quatro com 'K', "K - u - a - t - r - o", e a apresentação era igual ao do 'Kadr', que era um teclado de máquina de escrever com barulho "tec-tec-tec".

Então dá para sentir um pouco como era nossa formação como cinéfilo, como amante do cinema e tal... Para mim tudo era muito novo, porque vim do interior, embora fosse uma pessoa muito inquieta, assim, intelectualmente, mas tinha formação muito frágil, então quando entrei na universidade, entrei no 1º ano em 60, eu fiquei agoniado, desesperado para recompor, tirar o atraso, então comprava livros antigos, lia na própria biblioteca ou na própria livraria, nos sebos; roubava livros dos sebos, porque vários estudantes que tinham livros com fundos falsos... Não conhecia Mário de Andrade, não conhecia nada da semana de arte moderna, não conhecia o Graciliano Ramos, não conhecia o Guimarães Rosa, era um atraso assim, coisa de gente que veio do interior mesmo, então eu era agoniado para tirar o atraso e lia muito e tudo me interessava, inclusive o cinema. Mas no cinema, menos a "nouvelle vague" e mais o "neo-realismo" e mais o grupo polonês. A "nouvelle vague", eu particularmente me senti atraído, via gostava tal (...), mas achava uma coisa meio "fru-fru", assim, não me pegava muito não!

Sempre tive tendência de gostar de uma coisa mais pessoa mesmo, um cinema que tivesse uma densidade social, um mergulho no social, tal (...). Por isso gostei muito do cinema polonês do começo dos anos 60, ia muito à Liberdade ver os filmes japoneses, conhecia todos os cineastas japoneses e particularmente os cineastas mais densos, o cinema que tinha uma relação das mais profundas com a sociedade e tal (...)

Juramento de obediência, filmes assim, que eram fortemente políticos, alguns filmes também do Kurosawa (Akira) do começo, mas não só ele, tem vários cineastas, tal (...). O Naguisa Oshima, os primeiros filmes dele, que é uma coisa maravilhosa, ele tem um filme, por exemplo, que é "Noite e névoa sobre o Japão", sobre o momento que o partido comunista do Japão resolve acabar com o Zengapuri, a organização do partido (...), e os homens ficam desesperados, são muito parciais, aquele sofrimento de juventude, aquele sofrimento existencial de adolescente misturado com o sofrimento pelas mudanças políticas e tal (...). O filme, acho que é de 1958/59, feito na mesma época que as primeiras coisas da "nouvelle vague", com aquela câmera em cima da moto, câmera na mão, muito louco, mas uma maravilha; e de uma carga de emoção política assim, jovem, impressionante. Depois ele também fez um filme que marcou muito, que é O Túmulo do Sol (1961), um filme maravilhoso, e eu sei que ele marcou muito o cinema brasileiro, quer dizer, muita gente viu esse filme aqui, inclusive o Glauber (Glauber Rocha), o Alex (Alex Viany), e todo mundo ficou assim extasiado com o filme, porque não era um filme que tinha estes espaços urbanos em planos gerais, com figuras de jovens na favela, em 1º plano; eram filmes com profundidade de campo muito grande, usando muito 1º plano (...). Às vezes primeiríssimo plano, às vezes aparecia metade da cara das pessoas, coisa impressionante. Aquela emoção toda, a carga social e política muito forte e tal (...) foi muito importante na minha formação e para o cinema brasileiro. As pessoas não falam muito dele, mas ele chocou, impactou os cineastas que viram, enfim, ele é um cineasta muito especial.

Na minha formação um filme que foi fundamental também foi o "Bandido Juliano". Para você ter uma idéia, eu devo ter visto esse filme umas vinte vezes, porque eu pegava esse filme, o nosso grupo tinha uma revista de cinema, fazíamos um jornal na politécnica, super esquerdista, que chegamos a distribuir em bancas de jornal, no ano de 63. E a revista que foi muito importante, muita gente que está aí até hoje, que é crítico, muita gente começou a escrever nesta revista, que era o "Caderno da Poli", e além de tudo tinha o Cine clube, que eu mesmo pegava projetor, o filme e exibia no grêmio da medicina, no grêmio da FAU, da Filosofia, na escola de Direito, levava projetor e filme e depois a gente debatia, era um ativismo maluco; além de tudo eu entrei no Partido Comunista, era militante, logo depois eu fui para UEE (União Estadual dos Estudantes), em 63, estava na direção da Juventude Comunista em São Paulo, tal, e com essa atividade maluca, fazia tudo...


Ficção-Documentário

Mas o Bandido Juliano, talvez tenha sido o filme que eu mais exibi, que eu mais gostava, eu sabia de cor o filme, então foi um marco, talvez fosse tudo que a gente queria fazer naquele momento, era um cinema com uma carga social e política muito forte e que partia da realidade, tentava tirar da realidade uma estrutura narrativa, o contato do realizador com a realidade, reformulando aquilo, encenando coisas ou não, filmando documentário e tentando tirar de lá uma forma narrativa. Então essa que é a carga de formação minha com o documentário, eu desde o começo, não sei se também influenciado pelo próprio Bandido Juliano, sempre tive muita dificuldade de diferenciar os gêneros, o que é ficção, o que é documentário, tal (...), e sempre tive uma visão mais aberta a respeito disso, talvez pela minha formação, que de qualquer maneira é uma formação que desde o início mostrou de uma forma clara a minha ligação com as questões um pouco mais pesadas da sociedade e as suas dificuldades, doenças, injustiças e tal; essa coisa que me atraía mais, sempre.

Em cima delas que sempre trabalhei, a ditadura que considerava o inimigo número um, enfim, tinha realmente pesadelo com a ditadura, ela me fez muito mal, ela me pegou neste momento de formação política em 64, porque eu tinha crescido muito rapidamente politicamente, estava na UEE (União Estadual dos Estudantes), já participava do Comando de Mobilização Popular do Brasil, então de vez em quando estava com o Brizola (Leonel Brizola) e com o Almino Afonso, com o Julião, com os líderes sindicais. Eu conhecia todo mundo, e ao mesmo tempo, a minha carreira, minha atividade ligada ao cinema ia crescendo também. Muitos projetos, a gente tentando patrocínio, filmando já um filme sobre o lixo em São Paulo, eu e o Ramalho (Francisco Ramalho Júnior), depois um filme sobre teatro popular nacional, coisas que ficaram inacabadas porque veio 64 e essas coisas desapareceram e nada disso terminou, então o marco do início da minha carreira é essa relação muito forte com a esperança e com a possibilidade de mudança do país, e o socialismo (...) na verdade era isso, a mudança socialista do país e tal. Na verdade entreguei minha vida a isto, naquele momento eu estava totalmente dedicado a isto, praticamente abandonei a escola (...), e era um cinema incipiente e uma integração total com a política, com o processo que a gente via como um processo revolucionário que iria mudar o país e tal, então 64 me pegou e foi uma coisa que me fez muito mal, é uma coisa terrível.

Tenho um livro que se chama Perdido no meio da rua (São Paulo: Editora Global, 1989), e que na verdade são textos publicados por mim em 64, que talvez explique um pouco a minha tendência como cineasta, que com todo esse sofrimento em 64, não escrevia documentariamente, não eram crônicas, não eram relatos sobre o que estava acontecendo, era uma ficção. Eram estórias de ficção terríveis, personagens com sofrimento atroz... Mas era uma ficção. Tanto é que recuperei vários textos desses de 64 e nesse livro reorganizei esses textos em torno de três personagens, um que é muito ligado a mim, o outro que é o André, que é, talvez, inspirado em alguns amigos meus da época, delicado, medroso; e o outro que é o Neiva, o paranóico completo, que via perseguição em todo lugar, que achava que estava sendo perseguido o tempo inteiro na rua, fugia e tal (...) então em torno desses três personagens, era o que fazia, escrevia páginas, livros e cadernos de ficção, tenho até hoje malas de coisas escritas.

Ficção no documentário, agora é a briga da ficção com o documentário (risos) - a gente filma e ninguém vê a gente filmando... Falei que sou prolixo, é que minha cabeça é um pouco assim, essa vivência muito obsessiva, talvez muito apaixonada, muito ligada às coisas, um certo sofrimento pessoal nessa minha relação com a vida, com a sociedade, com as dificuldades todas, precisava analisar de onde vêm esse sofrimento...

Então em 64, sofri muito realmente, como está nesse livro, como vocês podem ver... Fui para Cinemateca, programar o principal cineclube da época, que era a Sociedade dos Amigos da Cinemateca. Era uma época muito rica, tinha muitos debates, mas eu queria fazer cinema e logo consegui a produção de uma idéia que tive e consegui que o grêmio da filosofia e mais o Jornal Amanhã, que era o jornal que estava sendo feito pelo Movimento Universitário Nacional, Raimundo Pereira era o editor e estava com o dinheiro. Pedi que me ajudassem, pagassem e me custeassem a produção, e eles toparam, o grêmio da filosofia e o Jornal Amanhã, e é porque era sobre liberdade de imprensa. Eu vi isso naquela conjuntura, no momento da ditadura, na repressão, e aí parti para fazer o filme...

Antes, vou voltar um pouquinho: saí da escola e não podia voltar porque o pessoal me conhecia, o CCC; tentei voltar um dia e um cara do CCC me disse: "João Batista, continua por aqui?" Aí desapareci um tempo, fiquei meio perdido e foi um amigo de infância que me salvou, na verdade, me viu na rua e me levou para um apartamento de viração, para ele levar as aventuras dele, de mulheres...

Então fiquei morando nesse apartamento um bom tempo... a ligação com o cinema foi voltando, nós começamos a articular, aí eu, o Ramalho e o pessoal mais novo que se aproximou da gente, principalmente Renato Tapajós, que era uma pessoa que ficou mais no cinema depois, era muito ágil, apesar de ser mais novo e de ter começado com a gente, ter aprendido cinema com a gente, ele conseguiu primeiro a produção no grêmio da filosofia de um filme sobre o movimento universitário, é um filme sobre a greve, uma greve que tinha havido na filosofia e tal, chama "Universidade em Crise".

E fiz o filme com ele, como assistente dele; eu realmente tinha mais experiência, mas ele quem organizou, ele que fez o filme, era o diretor e fiquei como assistente dele; depois montamos o filme em casa, naquela moviolazinha doméstica. A primeira montagem foi feita em casa, eu tinha casado com a Assunção e tínhamos um apartamento que virou uma espécie de centro do cinema de São Paulo, do novo cinema de São Paulo, a gente se reunia muito lá, discutia, montava os filmes e via as primeiras montagens com 16mm, numa moviolazinha manual.

Em 66 fui filmar o "Liberdade de imprensa" (1966), que era o primeiro filme que fiz sozinho como diretor. E que é um marco da minha obra toda, porque ali tem a minha inquietação como realizador, toda a minha ansiedade de buscar formas novas e maneiras novas de contar e ao mesmo tempo de como sou dominado, também, por algumas surpresas pessoais, de como acontecem coisas que depois tenho que interpretar e como às vezes meu sentimento é maior que a minha capacidade de explicar. Por exemplo, "Liberdade de Imprensa", um filme de 66, sobre liberdade de imprensa, na verdade queria falar da ditadura, e começa com uma pessoa na periferia de São Paulo, na frente do barraco dele dizendo: "Eu sou fulano de tal, essa é minha casa, tô construindo minha casa há seis anos, essa é minha família, eu sou operário, trabalho no Jornal O Estado de São Paulo, e acho que os EUA deveriam invadir Cuba, porque sou contra o comunismo, tá certo invadir São Domingo..."

Operário absolutamente reacionário, então, de certa forma eu mesmo criei dois enigmas: eu, com todo o sentimento de esquerda, toda a militância de esquerda, porque fiquei fascinado por esse personagem, justamente o operário que a gente falava que ia libertar o mundo, era um reacionário terrível... E ao mesmo tempo, porque começar um filme sobre a liberdade de imprensa e a ditadura, que começava na periferia de São Paulo? Talvez uma das primeiras imagens da periferia de São Paulo tal como se entende hoje. É isso aí, essas casas inacabadas, o cara que faz no fim de semana, aquela paisagem horrível, talvez seja uma das primeiras imagens com esse sentido de periferia, e porquê começar o filme aí? E porque esse personagem? Esse personagem atravessa o filme todo, e com essas opiniões terríveis sobre a política, ao mesmo tempo como surge também no filme a idéia de que a minha presença seja importante no filme. Então, no próprio filme, fui percebendo que a minha presença mudava as coisas e comecei a usar isso no filme. Tem momentos que eu dou livros para as pessoas lerem, filmo as pessoas lendo, depois entrevisto as pessoas...

No filme tinha umas denúncias pesadas nos textos dele, aí eu marquei uma entrevista com ele, fiz a entrevista e "pá", perguntei direto sobre as denúncias, e ele começou a enrolar, porque naquele momento ele já estava querendo sair fora daquilo alí, aí entra a minha voz em cima dele, ele falando e eu falo "mas no seu livro tal, na página tal, o Sr, disse isso" e o filme sai dele e vai para o livro com a minha fala, falando o que eu tinha lido lá. Outro momento mostra que eu, como realizador, estava ali presente; eu não estava a fim de filmar o real, como ele aparecia, então a pessoa fala uma coisa eu falo: "tá, tudo bem". Eu trabalho, de certa forma exerço, exercito um certo conflito pessoal com o que estou filmando também.

Elaboro um certo tipo de conflito, entre o que estou vendo e o que as pessoas estão dizendo, então em outro momento, por exemplo, que é muito marcante, é a filmagem do Carlos Lacerda. Quando filmei em 66 estava sendo preparado a Frente Ampla, eu era absolutamente contra a ditadura; a Frente Ampla era o Juscelino (Presidente Juscelino Kubitschek), o Jango (Presidente João Goulart) e o Lacerda (Carlos Lacerda) também. Então, naquele momento, minha lucidez, minha correção política, aquilo era importante, independentemente de ter o Lacerda ou não, que era o inimigo - quando eu era estudante, tinha ido à várias conferências dele aqui em São Paulo, reunia o grupo e ia lá provocar o Lacerda, porque ele era direita - então brigava e ele gostava, ele escutava a gente e depois fazia um discurso, e ele falava bem pra burro. Então, resolvi fazer uma entrevista com o Lacerda, fui para o Rio de Janeiro, para o apartamento dele no Flamengo e fiz a entrevista, onde ele fala mal da ditadura, depois corta disso e fui para a rua ouvir as pessoas sobre o Lacerda, aí tem os depoimentos populares: "E o Lacerda deve saber muito bem o que está fazendo, porque ele ajudou a fazer a ditadura", e o outro: "É porque o corvo, porque sei lá mais, matou o mendigo"...

Depois o Jean Claude (Bernardet), analisou muito isso, porque você tem a correção política, mas eu não abro mão da minha visão sobre o personagem, essa minha presença no filme é muito marcante durante o filme todo, ela inaugura esse tipo de cinema onde a minha figura é importante. Momento, por exemplo, que a revista Ação Democrática, aquela que era patrocinada pela CIA no Brasil, aparecia nas bancas, e de onde vinha? Então peguei uma revista dessas e escondi nas costas e o filme me mostra a escondendo nas costas, e fui para este operário, que tinha uma banca de jornal - ele trabalhava no Estado, mas depois trabalhava numa Banca de jornal - mandei ligar a câmera e "tum" mostro a revista para ele de sopetão, e pergunto: "Você conhece essa revista?
"Ah, conheço...". "Como é que chega aqui?" "Ah, recebo essa revista do Estado de São Paulo, tal...". E falou de onde vinha essa revista! Quer dizer, esse tipo de participação pessoal, está extremamente marcante no Liberdade de Imprensa...

A imprensa como tema

Liberdade de Imprensa foi um filme marco na minha carreira por duas razões, uma boa, porque tal qual aconteceu com muitos dos meus filmes, o filme foi logo proibido, exibi uma vez em São Paulo, uma vez no Rio de Janeiro e foi apreendido pelo exército em Ibiúna em 68. Antes do filme ser distribuído a UNE (União Nacional dos Estudantes) ia discutir e preparar o plano de distribuição do filme, porque era uma produção da UNE, do Jornal Amanhã, da Filosofia e ele ia entrar em distribuição nacional. Então, o congresso caiu, o filme foi apreendido e ficou proibido, e só foi exibido mais de dez anos depois, o que foi terrível. Imagine o sofrimento que é o não ser visto, entendeu? Você faz uma proposta e o filme não existe, uma coisa que se repetiu com vários filmes meus, com Restos (1975) que foi proibido, com Wilsinho Galiléia (1978), que caiu num nível escancarado de frustração, porque é um filme cheio de projetos, cheio de idéias e de inovações na TV, é proibido, só é visto 24 anos... Como disse a Maria do Rosário Caetano, é o melhor documentário do cinema brasileiro, mas 24 anos depois (conta rindo)... É uma coisa que marcou a minha carreira desde o começo, a censura e a proibição frustraram muito, assim é a realização da minha carreira (...). É que felizmente o tempo passa, depois as pessoas vão redescobrindo estes trabalhos, ainda não redescobriram tudo, porque tenho filme que foi proibido no projeto. Em 82, estava preparando um filme chamado Os demônios cuja história é de um personagem que voltava do exército e sentia que suas idéias estavam superadas no país, tentava dizer isso e o grupo de esquerda dele não deixava; o filme era sobre o conflito, da superação das idéias dentro da própria esquerda; ele ia ser feito em 82 e o projeto foi proibido, não consegui filmar, tem o roteiro e seria uma reflexão a quente sobre o processo político brasileiro, o fim da ditadura e a anistia...

Cinema Marginal

Acho que minha carreira ficou muito marcada pelo Liberdade de Imprensa e pelas dificuldades, pelo fato do filme não existir! O filme estava aí, era uma coisa nova, sem poder circular, enfim, com isso atravesso os anos 60, a primeira década do meu trabalho, com um momento de inflexão, de desespero, e é quando eu fiz dois filmes de ficção: Em Cada Coração um Punhal (1968) e o Gamal.O delírio do sexo (1969), que são filmes de uma fase muito desesperada, mas muito criativa, com absoluto controle criativo e narrativo. São filmes estranhos, filmes fortes, tanto é que ganhei com o Gamal um prêmio na França, de "Diretor Revelação", viajei para o exterior com esse filme, mas esse filme se aproximava muito de uma proposta underground, no Brasil chamado de cinema marginal.

Não gostava muito dessa idéia, não era bem o meu perfil e não achava que esses filmes se encontrassem no movimento marginal, embora no início tenha me enturmado com o pessoal, com o Jairo Ferreira, com o Tonacci (Andrea), o Carlão (Carlos Reichenbach), mas não queria aquilo lá e me afastei. Aliás, o pessoal do cinema marginal fez comigo o que o Stalin fez com a fotografia do Trotsky: me tiraram da fotografia, porque durante o movimento eu era gênio e tal, pô, Gamal era maravilhoso, Em cada coração um punhal fantástico... Depois me afastei, fui um pouco crítico, fui em busca de outros caminhos e o movimento marginal tirou minha fotografia e tirou meu movimento.

Agora falo disso com um certo humor porque eu também não queria, não tinha interesse em participar do movimento, preferi ficar independente e buscar meu caminho, não achava que aquela seria uma corrente adequada para mim... Tenho o maior respeito pelas pessoas que participaram e assumem isso, principalmente o Candeias (Ozualdo Candeias), o Reichenbach, mas enquanto movimento, eu não tive espaço lá dentro, não era o que eu queria na época. Aí retomei, e o engraçado é que eu ganhei um prêmio com o Gamal e viajei para Europa, estava desesperado, tentando retomar o meu caminho lá do Liberdade de Imprensa e ao mesmo tempo tendo uma visão muito crítica do que era a informação e a imagem que se transmitia do Brasil. Naquele momento, no começo dos anos 70, era exatamente a imagem da ditadura, os institucionais da ditadura, 'o País era maravilhoso, não tinha greve, era solidário', e eu agoniado com aquilo, e falava: Pô! Eu preciso voltar para o cinema, preciso ir para rua, preciso filmar, fazer o que comecei a fazer, a minha vocação toda de documentário. Queria filmar as pessoas, as ruas, as pessoas falando, era essa a minha vontade. Aí viajei para Europa e já encontrei muita gente no exílio, muitos amigos exilados, que já estavam começando um processo auto crítico também, com relação à ditadura, à luta armada, tudo né!? E aí voltei para o Brasil, com essa gana de fazer isso, e encontrei o Vlado (Vladimir Herzog, assassinado durante a ditadura militar) que estava me esperando com uma proposta: "olha temos espaço aqui na TV Cultura para fazer jornalismo, um programa de jornal, noticiário, nós queremos que você seja o repórter especial" ai eu disse "não, repórter especial não, sou cineasta, documentarista, então vou fazer cinema lá"; "não, é repórter especial"; "bom, sou cineasta...", era uma discussão sem fim. "Bom, então tá bom, põe o nome que quiser, mas vou fazer cinema, vou fazer filmes lá, meu projeto é esse, quero filmar a rua, quero filmar os lugares, e favela, o bairro, quero mostrar o país real, quero mostrar as pessoas falando... bom". "- Maravilhoso, maravilhoso".

Aí eles me chamaram, muitos me conheciam, tocados pelo Liberdade de Imprensa, cujo projeto eu levei para TV, para fazer o programa "Hora da Notícia", e aí, é o momento maravilhoso da minha carreira, talvez o momento que eu mais me realizei na vida, como cidadão, cineasta, e tal... Eu estava exercitando minha vocação como documentarista, e ao mesmo tempo, exercitando a minha oposição à ditadura, com uma lucidez muito grande naquele momento. Porque nós, tanto o Fernando (Jordão) como o Vlado, tínhamos uma visão que eu acho que era muito lúcida. Primeiro uma visão crítica da luta armada, que não tinha conseguido e nem iria conseguir mais, ela estava praticamente derrotada em 72, e que era preciso que a sociedade despertasse e fizesse um movimento amplo contra a ditadura, coincidindo com o momento em que várias entidades começam trabalhar. Muitos sindicatos começam a ter reuniões clandestinas, formavam grupos advindos da sociedade civil, os amigos de bairro, de mães, grupos de estudo, vários grupos da Igreja.

Então comecei a filmar, e meus filmes logo de cara, pesados, já eram sobre questões sociais, e muitos desses grupos começaram a pedir cópias desses programas, o que era um sintoma de que tudo estava acontecendo naquele momento. As pessoas queriam cópia para quê? Um filme sobre transporte... Queria cópia para discutir transporte. Como aconteceu com Santo Amaro (bairro de Santo Amaro, em São Paulo), o Padre da Igreja de Santo Amaro estava fomentando o movimento da população para discutir o problema do transporte urbano.

E eles pegaram, junto à TV Cultura, cópia de um filme meu sobre o transporte urbano, e o que era essa a idéia que eu tinha, o que eu fiz com a câmera, o que eu fiz com o filme? Eu fui de madrugada para rua, filmei as pessoas pegando ônibus, aquelas filas e os ônibus super lotados, gente pendurada nas portas, a câmera também, mostrava a câmera andando, quase batendo nos postes, quase sendo atropelada por outros carros e por outros ônibus, aquele perigo danado, e câmara no lugar deles. Eu queria era isso, queria revelar o país real, o que era o país que a gente vivia, em oposição a imagem que a ditadura colocava na televisão. Então esse padre pegou a cópia desse filme e ficou meses com ela, ficava exibindo, ficava discutindo, fazia um movimento imenso em Osasco, durante a ditadura, logo no meio dos anos 70, com a população na rua, medindo e calculando quantos ônibus havia, polemizando com os donos das empresas, com a prefeitura e tal.


"Cinema de rua"

Polícia, repressão, tudo... é que essas coisas estavam acontecendo naquele momento, então o "cinema de rua" nasceu disso aí, do interesse da população nesse tipo de cinema, filminhos curtos, de 4,5 ou 6 minutos e que ajudavam a população a discutir os temas que estavam interessando discutir.

Esse nome veio depois, mas chamou assim, com o interesse da população nesse meu trabalho. Esse trabalho acho importante entendê-lo porque é a minha carga documentarista, eu estava num momento de muita realização pessoal, tinha um programa às nove horas da noite que ia para o ar, então enfiava lá dentro o meu trabalho, todo dia, 3,4, 5 minutos, o que eu pensava, ia para redação e pensava: "-O que eu vou fazer hoje?", só pensava em uma coisa: "Era contra a ditadura", a ditadura da imagem, contra a manipulação da imagem, só pensava naquilo 24 horas por dia, dormia com aquilo. Às vezes parecia piada, chegava e não tinha assunto. Falava para o motorista, "vamos para um lugar legal, bem bonito" ai o cara: "Jardim Europa?", "Que Jardim Europa! Vamos para o Jardim Maria Luíza, Vila dos Remédios".

Que era um terror, periferia 'braba', aquela miséria, aquela coisa, que não tinha nada, não tinha água, esgoto, não tinha luz, não tinha escola. Então inventei um negócio que se chamava "Queixas e reclamações". Eu ía para rua, descobria uma rua qualquer movimentada, punha a câmera no tripé, pegava o microfone e ficava assim com o microfone, não falava nada, as pessoas paravam, olhavam, não falavam nada, até que um chegava, pegava o microfone e falava: "Tá filmando, posso falar? É o seguinte, que condução aqui..." ai vinha outro e falava, enfim.

Era a vida que passava lá, essa série fazia muito sucesso, o pessoal gostava demais! O professor Ianni (Otávio), por exemplo, sociólogo, adorava! Eram as pessoas falando, porque não tinha aonde falar, e estava oferecendo para essas pessoas uma chance, um canal de expressar os problemas. E tinha tudo quanto é problema. E quando estava sem assunto fazia muito isso, ia para rua e fazia o "Queixas e Reclamações".

A outra coisa foi o que nós bolamos e fizemos, eu, o Valdo e o Fernando Jordão, era o seguinte: quando vinha uma autoridade, eu ia para rua e pedia para as pessoas fazerem perguntas para a autoridade, e depois levava as perguntas até ela e montava as pessoas perguntando e a autoridade respondendo, uma forma de rasgar aquele véu elitista que a ditadura tinha. Só especialista falava... então tinha o povo falando.

Era muito engraçado, várias vezes queriam me mandar embora, logo depois da primeira reportagem. Já tinha muita crise e diziam que eu escolhia de propósito gente feia, gente sem dente. O Diretor da TV, o Ferri, que foi Reitor (da Universidade de São Paulo) depois, chegou a sugerir que tivesse um editor comigo, para ajudar a escolher as pessoas, porque eu escolhia mal, escolhia pessoas muito feias, desdentadas, pobres e tal.

O outro lá, dizia que eu não sabia entrevistar, que punha outras pessoas para fazer as perguntas. Quer dizer, de todo o jeito tinha uma justificativa para me mandar embora. Então eu vivia em crise lá dentro. Mas era um trabalho delicioso, cada programa, cada filmezinho desses que ia para o ar era uma vitória, a derrota era quando era proibido, isto é, a gente era o contrário da esquerda na época, porque a esquerda gostava de ser censurada, e a gente não gostava, pelo contrário, quando era censurado, para nós era uma derrota terrível porque a gente queria que aquilo fosse para o ar, esse era o projeto, a gente queria que as pessoas vissem aquilo, e com toda a verve, toda a capacidade de revelação.

Por exemplo, um dos primeiros filmes que eu fiz lá, foi sobre uma operação chamada "Tira da Cama", em favela, que é uma brutalidade. A polícia vai com refletores, holofotes, armados, com cães e invadiam as favelas, arrombavam portas, pegavam documentos, prendiam gente, o negócio era um terror! Bom, e vi uma vez aquilo na TV, e fiquei muito impressionado. E resolvi fazer...

Foi a primeira ou segunda reportagem que fiz lá. Fui com o cinegrafista e deixei ele filmar como ele filmava antes. Como é que ele filmava antes? Ele ia acompanhando a polícia, a polícia entrava e ele entrava junto. E quem ele ouvia? O comandante da polícia, só! A imprensa era assim! A autoridade jornalística era confundida com a autoridade institucional. Se incendiava a favela, quem falava era o secretário da habitação, o corpo de bombeiro, o comandante da Polícia Militar...

Eu dizia: "Não! Se incendeia a favela tem que ouvir o favelado, o cara que mora lá". Era uma inversão, então aí, nos dias seguintes, com esse material filmado, voltei para a favela e pedi às pessoas que contassem o que tinha acontecido no dia anterior. Então eles contavam o que tinha acontecido, com a emoção delas, com o ponto de vista delas, montei o filme com essa narrativa e aí sim as imagens da polícia eram mostradas, como violentas, porque elas falavam: "Pô! O cara arrebentou a porta, eu tava dormindo...". Então todas as imagens filmadas no dia seguinte tomavam um outro sentido.

Quando nós vimos aquilo no ar, a gente chegava a ficar pequenininho no banco, de tão violento que era, tão violento politicamente, um absurdo aquilo naquele momento, em 1974, 73, época do Médici (Presidente General Emílio Garrastazu Médici). Era tão contrário do que acontecia na televisão brasileira, do que a ditadura fazia, e ao mesmo tempo tão chocante e violento que parecia uma revolução aquilo no ar e assisti aquilo meio acachapado, aquilo me chocava só de ver, ao mesmo tempo dava uma alegria muito grande de ter ido para o ar.

Também tem um episódio que é típico do meu trabalho: Quando o Médici indicou o Geisel (General Ernesto Geisel), de manhã chegou o telegrama na redação, "PUM", me bateu na cabeça: "Equipe, vamos embora, vamos embora". Peguei a equipe, não falava nada para ninguém: "Vamos ao lugar mais perto que tenha gente..." E fomos para Lapa. Instalei a câmara e fiz um pouco do que fazia com o "Queixas e Reclamações". Só que instalei a câmera, peguei o microfone, parei assim (com o microfone na mão). Um cara de macacão passou e falei: "Por favor!". E ele veio, dei o telegrama e falei: "leia pra mim isso aí". Aí ele começou: "O presidente Emílio Garrastazu Médici...". Já começava a olhar assim pra mim, olhava pra câmera, e com a maior dificuldade de ler. "...para seu sucessor, o General..., ...não, tenho que trabalhar..." e a gente filmando... Aí, pegava uma mulher, "Por favor, leia pra mim". Ela lia. Maior medo, não conseguia ler. O outro lia, eu falava "qual é a sua opinião?" "... Não, não sei, não entendo bem, tal...", foram mais ou menos cinco minutos de depoimentos assim. E foi para o ar assim, à noite.

O Fernando Jordão que era o editor, falou: "O presidente Médici indicou hoje seu sucessor, General Ernesto Geisel, nossa equipe foi para as ruas ouvir a opinião das pessoas"... Aí, entram quatro ou cinco minutos com esses depoimentos. Então aquilo era acachapante, a gente ficava até sufocado de ver aquilo no ar, pois aquilo ajudava a revelar o país e ao mesmo tempo ele é típico do meu trabalho, não é! Uma espécie de feeling de que a minha ação provoca uma reação que é importante. E meu gesto era estar presente, dar o telegrama e mandar ler, meu feeling era esse, que as pessoas iam ficar apavoradas diante daquilo ali e que não iam querer comentar. Eu achava que não iam querer comentar, mas a maioria não queria nem ler. Parava no meio da leitura. Foi um momento super revelador do meu trabalho, fora milhares de experiências, de filmes feitos em setores de bairros em que montava dialogando só com ele. Em vez de pensar só na multidão, no mundo que via o programa, pensava só nele. Então fazia o programa como se fosse dirigido para só ele, dialogando politicamente com eles achava um pouco do meu comportamento, por exemplo: um filme sobre grilagem, achava que a posição política da população era completamente equivocada e fiz um filme revelando o equívoco deles. Foi pro ar e despertou reações fantásticas, foram lá na redação, aquele monte de gente... aí quis fazer o que era meu prazer... fazer uma switcher, um segundo como repercussão, mas aí isso já foi proibido e nunca consegui fazer. Eu fazia o primeiro e logo o assunto era proibido e não conseguia fazer o segundo. Mas o primeiro tinha ido pro ar e teve efeito, provocou as pessoas; e esse diálogo mostrava a minha independência com relação à sociedade, ao movimento social operário, o que está no Greve (1979) também.

Depois, o fato de eu ser de esquerda e de estar do lado da população não quer dizer que concorde com ela sempre, até pelo contrário, acho que no geral ela está errada, está agindo errado... A tendência dela é agir errado..."