ABC da Greve e Cabra Marcado Para Morrer:
duas faces da mesma moeda


por Josiane Lombardi



Há dois documentários que todos deveriam ver, e rever. ABC da greve(1979) de Léon Hirszman (o mesmo de Eles Não Usam Blach Tie) e Cabra Marcado Para Morrer(1984) de Eduardo Coutinho, que fazem parte daquilo que se pode chamar de documentário sócio-político, e tratam de um período marcado por grandes lutas – a ditadura militar no Brasil. O primeiro retrata as grandes greves de 1978 da classe operária no ABC paulista e o segundo, das Ligas Camponesas no nordeste em confronto com o latifúndio.

Mostram de maneiras diferentes o contexto daqueles anos, mas em ambos vemos o regime a partir dos movimentos organizados contra a exploração capitalista, seja nas cidades da região mais industrializada do país, seja no campo, numa das regiões mais pobres – o nordeste, e neste sentido, os dois documentários se completam.

Tanto um quanto outro dão ênfase direta ou indireta às lideranças dos movimentos, de um lado Lula, o então presidente do sindicato dos Metalúrgicos do ABC/SP e de outro João Pedro Teixeira, presidente das Ligas Camponesas em Sapé/PB, assassinado em 1962. Lula é um dos protagonistas da situação histórica pelo lugar que ocupava, mas não é a sua história particular que está sendo mostrada. A voz é dada, sobretudo aos operários anônimos, muitas vezes ao coro da massa operária em suas assembléias, suas falas de opinião diante da intransigência dos empresários seus patrões.

João Pedro Teixeira, por outro lado, tem sua história escolhida por Coutinho para ser reconstruída, primeiro em filme, depois em documentário, através de sua esposa e companheiros de luta. Seu exemplo de líder, primeiro dos trabalhadores das pedreiras, depois dos camponeses, sua valentia diante da polícia e dos latifundiários, mesmo sabendo da ameaça que sofria, enfim, sua ideologia e suas práticas são reveladas pelos diversos depoimentos.

ABC da greve tem o privilégio de documentar a classe operária em movimento de confronto com os empresários e a repressão do regime militar. Momento de enormes e rápidos avanços da solidariedade e consciência de classe, que em tantos momentos fazia com que os operários superassem seu próprio líder carismático, como mostrado nas contradições entre as falas individuais e as decisões induzidas em assembléia e na vontade de levar a greve até às últimas conseqüências mesmo após a cassação e prisão de seus líderes sindicais.

Cabra Marcado mostra camponeses recordando-se de suas lutas passadas contra o regime e o latifúndio, mas que de modo geral convergem sempre de volta para a história de João Pedro, viés central do documentário, que provoca emoção, mas que comparada ao presente de seus companheiros, revela os efeitos do autoritarismo, da perseguição política, do medo e da fuga à religiosidade... os que continuaram a luta como sua esposa Elizabete Teixeira todavia, não puderam superar João Pedro, exceto pelo fato de estarem vivos. Apesar disto, Cabra Marcado é um exemplo da valentia, de organização e luta de classe, daqueles camponeses.

Outra característica semelhante foi a repressão do regime sobre os próprios diretores: a pressão do SNI sobre a Embrafilme onde Hirszman produzia Eles não usam black tie, sobretudo após o início das filmagens da greve no ABC; e da pressão direta dos militares que interviram na locação onde Coutinho reiniciava em 1964 as filmagens do filme Cabra Marcado para morrer, apreendendo equipamentos, roteiros, e material produzido. Como consequência, Hirszman não pode terminar seu filme pessoalmente, o material é guardado por anos, e será editado após seu falecimento em 1987. Coutinho só retomará seu projeto, agora como documentário da tentativa de filme e o que se passou, quando começa a se ensaiar a abertura democrática com o desgaste do regime militar.

Como bem colocou Holanda (2006)(1) , “A geração de cineastas brasileiros dos anos de 1960 foi marcada por uma elevada consciência histórica e, por conseguinte, política e social. Essa consciência resultou na busca de uma percepção totalizante do momento, por meio da representação de aspectos gerais, unificadores da experiência social. Os filmes centravam foco nas questões coletivas, sempre representadas em grande escala. Mesmo quando personagens ou comunidades eram destacados, não se via multiplicidade de identidades, os indivíduos representavam a síntese da experiência de grupos, classes, nações. (...) E, de um a um, verificamos o predomínio da abordagem geral nos documentários brasileiros até meados de 1980, ou seja, os assuntos até aí são tratados de forma abrangente, interessando-se pela idéia global das relações em sociedade."

Assim, Hirszman tem toda sua obra permeada pela radicalidade ideológica de base marxista que fará de seus trabalhos amostras de indivíduos com papéis sociológicos definidos, classes definidas e em confronto, como partes de uma totalidade contraditória e conflitiva. Em ABC da greve foi filmar as condições de vida e de trabalho e as formas de organização e luta da classe operária do ABC e mais do que filmá-la, se colocou como participante como quem quer produzir algo para o próprio objeto. Como quem entende o próprio cinema como instrumento de conscientização, de engajamento e como vetor de ideologias. Em suas palavras: “Não era apenas reportagem, havia mesmo uma perspectiva de construir. Pois estávamos tentando dar voz ao avanço daquela consciência como documentaristas, não como intelectuais que fazem a análise da coisa. Não é um filme de análise. Nós estávamos dentro, vivendo a coisa, vigiando a greve e vivendo a luta dos trabalhadores.(2)”

Mais uma vez, de acordo com Holanda (2006): “Acreditamos que a partir de Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), o tratamento geral passa a ceder espaço ao particular. Esse filme não só revela aspectos do regime militar instituído no Brasil em 1964 e as conseqüências de suas ações impostas ao destino de muitos brasileiros, como também apresenta a história de uma mulher brasileira chamada Elizabeth, viúva de João Pedro, mãe de Abraão, que sofreu juntamente com sua família, as conseqüências das ações desse regime, ou seja, é um ponto de vista da história por intermédio de uma abordagem particularizada. E essa particularização vai além, pois chega a ser igualmente a história do próprio documentarista, também um brasileiro que sofreu conseqüências das ações do regime militar, em busca de uma família dispersa em conseqüência do mesmo regime.”

Acerca dessa discussão, Coutinho(3) deixa claro seu ponto de vista numa entrevista em 2000: “Eu não faço a totalidade: [se] a totalidade é o Brasil, eu escolho o Rio; a totalidade é o Rio, eu escolho uma favela; não é uma favela grande, é uma favela pequena. Quer dizer, eu estou reduzindo ao máximo, estou abolindo a idéia de totalidade como resposta, como universo que me interessa.”

Independente do ponto de vista, cada um dos documentários aqui discutidos, a sua maneira, buscam apreender uma verdade histórica, que não se confunde com a verdade, conceito absoluto. Tratam-se de duas obras primas que revelam o olhar crítico de seus autores em relação a sociedade em que viviam. E a vontade de contar ou reconstituir histórias reais que trazem lições de um tempo que trouxe tanto retrocessos quanto avanços Mais do que isso, mostram a consciência política e a prática revolucionária de dois setores explorados, dos mais organizados em nosso país justamente pelas experiências acumuladas historicamente e forjadas na luta pela superação das formas de exploração de seu trabalho.

* Pós-graduanda de Ciências Sociais da Unicamp josianelom@yahoo.com.br

(1) Holanda, K. Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história. Revista de História e Estudos Culturais, v.3.n.1, 2006
(2) ABC da greve. (encarte). Cinemateca Brasileira, São Paulo, 1991.
(3) Holanda, K. (op.cit.)


publicado em 31/06/2006