Sergio Muniz

O início da carreira e a produção com
Thomas Farkas nos anos 1960 e 70

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Sergio Muniz


No início dos anos 50, um primo meu chamado Bráulio Pedroso, que foi quem escreveu Beto Rockfeller, foi assistente de direção de um longa-metragem feito em São Paulo, pelo Carlos Ortiz, chamado Alameda da Saudade, 113. Eu morava em Santos e tinha filmagem nesse filme em Santos. Eu fui assistir a filmagem e achei um saco... demorava, corta, faz luz, não sei o quê, maquiagem... só que depois começou a ser montado em São Paulo, e fui visitar esse primo, numa sala de montagem, com moviola, aquela coisa escura, penumbra, a luzinha de uma telinha pequena... Mas tinha um cheiro, eu diria como se fosse cheirar cola hoje em dia. Aquele cheiro me deu um baratinho qualquer, no sentido até meio existencial, não saberia te explicar, daí eu disse: "pô, deve ser legal trabalhar aqui com essa luz, esse cheirinho não sei o quê". Minha primeira aproximação com o cinema, na verdade, foi meio sensorial.

Mas passaram-se alguns anos, 1954, tinha um diretor de fotografia chamado Rui Santos, foi importante na história do cinema brasileiro, e ele ia fazer um documentário sobre a casa do Mário de Andrade, e como eu queria ver se começava a fazer cinema, ele falou: "olha, você vai ser o meu assistente de fotografia". Eu fui assistente de câmara dele, carregava chassi, montava a câmara, fazia o foco, punha o diafragma, carregava o fotômetro, foi o meu primeiro trabalho.

E por problemas familiares eu tive que interromper essa idéia de fazer cinema e só pude voltar em 63, quando depois de acumular um certo dinheiro, falei: "com esse dinheiro vou conseguir passar um ano pagando o meu aluguel, a minha comida e ver se dá certo". Juntei esse dinheiro e com o mesmo Rui Santos ia fazer a direção de produção de um filme baseado no romance chamado "Os Corumbas", que segundo a história da literatura seria um dos primeiros romances proletários do Brasil, se passava na Bahia, nos anos 30, e contava a história dos Corumbas que era uma família e a tradição de luta dessa família que trabalhava em tecelagem e havia todo um envolvimento desse grupo com movimento sindical e havia greve e estava tudo contatado e organizado na Bahia em março de 64, em abril ia começar a filmar ia ter greve, polícia na rua batendo e tal aí veio o golpe, o filme melou.
Indiretamente eu era ligado ao Partido Comunista, já passara pela Juventude Comunista e depois ingressei no Partido, mas saí quando houve a cisão com o Agildo Barata, que saiu do Partido, enfim, tinha minha aproximação com a esquerda e mantive.

Mas quando terminou a experiência na Bahia eu voltei para São Paulo e falei: "o que eu vou fazer!?".
Comecei a trabalhar numa produtora, que chamava-se Documental e fazia comerciais; um dos proprietários era o Galileu Garcia, que foi assistente do Lima Barreto no Cangaceiro e o outro era o Agostinho Martins Pereira, que fez os primeiros filmes do Mazzaropi, a Carrocinha.
Comecei a trabalhar como contato, levar trabalhos para eles etc, e lá fiquei mais ou menos um ano, um ano e tanto, quando no final de 64...

Bom, eu já conhecia o Thomas (Farkas) dos anos 50 e poucos, aí voltei a tomar contato com ele; o Birri já tinha passado por São Paulo, eu tinha visto em 62 os filmes dele, e estabeleci um vínculo de amizade com eles, através da cinemateca. Lá tinha a Lucila Bernardet, o Maurice Capovilla, o Vladimir Herzog, essa turma toda. O Capovilla e o Herzog passaram por Santa Fé, Argentina, onde Birri havia fundado a Escuela Documental de Santa Fé, depois o Vlado e a Lucilla fizeram um curso com Sucksdorff no Rio, que trouxe uma moviola, som direto e o Vlado fez um curta que se chama "Os Marimbás". O Vlado ia fazer a direção de produção do Viramundo, e começou a estruturar a produção quando decidiu, em setembro, outubro de 64, que ia embora, e disse: "não, aqui não está dando mais para viver", e foi embora, foi para Inglaterra, pois tinha recebido um convite para trabalhar na BBC, e eu entrei no lugar dele para fazer a produção do Viramundo.

Meu primeiro contato mais direto, de começar a fazer um trabalho mais intenso... foi essa a minha introdução. E nesse meio de tempo, eu estando trabalhando na Documental e de vez em quando fazendo a produção do filme do Geraldo, mais intensamente ou menos, conforme a necessidade de produção, em início de janeiro de 65 vem para São Paulo Caetano, Gil e Capinã, que são amigos do Geraldo, porque iam escrever a letra e a canção, Capinã e Caetano, da música que está no Viramundo, que é a introdução e o tema recorrente, e o Gil ia cantar. E ele era desconhecido, como Caetano também era na época, e eu ouvi ele cantando aquelas canções e falei: "Gil, com essas canções dá para fazer um filme, posso fazer um filme?" Ele falou: "pode".

Então juntei cinco canções dele, e já que nós íamos gravar a canção definitiva que ele ia fazer para Viramundo, falei: "vamos gravar as cinco, deixo o gravador e vejo se consigo fazer um filme". E a partir daí, com essa trilha musical pronta, eu trabalhando na Documental, consegui levantar com amigos dinheiro emprestado, fazer cópias fotográficas de desenhos, de gravuras de cordel, consegui sobras de filme do Luís Carlos Barreto, de Vidas Secas, material filmando pelo Paulo Gil Soares quando ele estava fazendo um levantamento de produção para o filme Deus e o Diabo do Glauber, enfim...
Inclusive, da idéia de produção desse meu primeiro curta, eu fundei uma empresa chamada Cinema de Cordel. Assim como tinha a literatura de cordel, eu fiz o Cinema de Cordel, que era a idéia de fazer alguma coisa com esse estilo de literatura, que fosse uma coisa popular, que pudesse ser consumida como se fosse um livro de cordel, que tivesse essa dinâmica de um livro de cordel., que pudesse ser anônima.

Essa é minha primeira introdução, digamos assim, ao meio cinematográfico, que na época foi essa produção do Farkas; a partir daí, o contato mantido anteriormente com o Birri e essa produção do Farkas, comecei a fazer algumas coisas, ou junto com o Farkas, ou um pouco separado, deu para organizar junto ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, um Departamento de Produção de Filmes Documentários, um nome pomposo , que no fundo era um modo que o Paulo Emílio Salles Gomes e Maria Isaura Pereira de Queiroz conseguiram nos introduzir nesse instituto mais para facilitar certos aportes, emprestavam fitas magnéticas, doavam negativos de películas para se filmar, emprestavam um veículo para produção numa ou noutra situação.

Algumas coisas o Geraldo Sarno fez, eu fiz outras, e junto com o Geraldo fiz um filme para o Vanzolini intitulado "Projeto Vila Grande" que o Geraldo ia dirigir e acabei eu dirigindo; tem também um documentário que eu fiz em 67, na Bahia, que era um projeto interdisciplinar da USP. A partir da Maria Isaura Pereira de Queiroz, pelo CERU (Centro de Estudos Rurais e Urbanos), a gente ia documentar uma comunidade messiânica no interior da Bahia, em Santa Brígida, que ela tinha estudado em 50, 50 e poucos. Em 67 o projeto interdisciplinar tinha como objetivo ver como é que estava a comunidade naquela época. Foi gente de antropologia, sociologia, geografia, psicologia e mais outras especialidades que não me lembro, para ver naquele momento como é que funcionava a comunidade; o documentário que eu fiz não era o resultado da pesquisa, mas como estava a comunidade naquele momento em que o pessoal pesquisava.

Fiz esse documentário que, por sua vez, não era para eu fazer, era para o Paulo Gil Soares, que na última hora não pode e fui dirigir. Então se criou essa dinâmica de grupo: Thomas (Farkas), IEB (Instituto de Estudos Brasileiros), CERU (Centro de Estudos Rurais e Urbanos), eu, Geraldo Sarno, Paulo Rufino, o Ramalho e tal, fizemos algumas coisas.

O Geraldo chegou a fazer, junto com o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP) dois documentários junto com o Farkas, se não me engano o "Jornal do Sertão" e "Vitalino Lampião", em preto e branco, fez um curta de ficção quando chegaram os ossos de Anchieta, devolvidos de Portugal para o Brasil, nós filmamos a chegada dele em Aparecida, em São Paulo; eu num tanque de guerra entrando pela cidade... Ele filmou um auto que Anchieta tinha escrito, filmou em Embu, enfim, por aí se disseminou uma certa produção.

A partir do sucesso, entre aspas, não de público mas de crítica, da primeira produção do Farkas, que é "Viramundo", com "Memória do Cangaço", "Nossa Escola de Samba" e "Subterrâneos do Futebol" se fez um longa metragem juntando os quatro e se criou uma certa repercussão de tal maneira que o Farkas fez um acordo com um conhecido cineasta francês, Pierre Kast, que era um importante documentarista da época. O produtor do francês disse ao Farkas: "ao invés de você receber o dinheiro que você vai receber da televisão francesa por esses filmes, você pega esse dinheiro e coloca numa co-produção que esse senhor vai fazer no Brasil sobre cultura brasileira". Chamava-se, em Português, "Cadernos Brasileiros".
Ele fez quatro documentários sobre cultura popular no Brasil, fez coisas na Bahia, em Brasília, em Ouro Preto, e fiz parte da produção desses filmes. Enfim, estabelecemos, de uma certa maneira, uma rede nacional e internacional de relações. Aí o Farkas decidiu entrar numa segunda etapa da produção de filmes documentários, que vai de 68 a 70 e tantos, 71 e 73. O que ia ser, onde ia ser, quando ia ser e quais os temas, ficou a critério de um trabalho que eu e a Ana Carolina fizemos com o levantamento de temas e livros sobre o Nordeste.

Porque o Nordeste? Porque a gente tinha uma série de facilidades, devido a relações pessoais, do Farkas, do Geraldo Sarno e do Paulo Gil, de ir para o Nordeste e de fazer coisas dependendo da época, em certos lugares. Fomos levantando, o que era possível documentar ao longo de ano inteiro, dependendo da época, janeiro tem não sei o quê com cana-de-açucar, não sei quando tem mandioca, não sei quando tem milho, tem festas religiosas, enfim, fazer um quadro geral para saber se nós fossemos em abril, o que seria possível fazer de abril até junho tais coisas, enfim, fizemos um grande levantamento, levamos 6 meses para fazer isso; no final de 68 o Farkas arrebanhou recursos, conseguiu comparar uma moviola, uma outra câmera Eclair, Nagra, refletores, filmes, comprou uma perua C-14, pôs uma plataforma em cima, enfim, o mínimo de produção, e conseguimos um acordo, acho que foi com a Ford até, de ter um segundo veículo emprestado para a produção ir na frente, levantando as condições de produção.

Nós saímos daqui em abril com o compromisso de voltar em 3 meses com 10 filmes. E havia um rodízio. A primeira leva de documentários foi feita pelo Geraldo Sarno no interior do Ceará e Pernambuco, a segunda parte foi feita pelo Paulo Gil na Paraíba no Recôncavo Baiano e depois eu fui filmar no interior da Bahia. Eu fiz a parte da produção executiva junto com o Edgardo Pallero, que era um argentino que veio justamente com o Birri em 62, volta em 64, em 64 o Birri vai para Europa e ele fica aqui para fazer a produção dos primeiros quatro documentários do Farkas e volta em 69 para participar da produção desses outros documentários; nós dois fizemos a produção executiva, só que eu ia na frente sempre preparando o pessoal que vinha.

Fizemos toda essa produção e em vez de 10 documentários voltamos com 19 documentários, pelo mesmo preço, com exceção dos direitos a pagar para cada diretor, mas enfim, com o dinheiro que tinha sido pensado em película, som, transporte para 10, voltamos com 19. Só que o tempo que demorou o acabamento desses filmes foi de uma certa forma lento. Terminei os meus em final de 69, mas o Geraldo terminou em princípio de 70, 71, como ele fez 5 ou 6 documentários, foi mais demorado

A duração desse filmes variava. de 10 minutos até 40minitos. Uma das características, eu acho importante ressaltar, é que tanto na primeira etapa quanto na segunda, ou seja, 64 e 69, o Farkas é um tipo de produtor que nunca interfere no sentido de dizer: "eu quero isso aqui e vendo o filme eu não gostei disso", quer dizer, ele deu total liberdade de escolha de temas e de realização a cada um dos realizadores. Isso é um negócio meio único, assim como foi única experiência na história do cinema brasileiro, do documentário pelo menos, de se ter feito em série uma tal quantidade de filmes de maneira sistemática. Uma coisa é você sair, faz um filme e voltar... Nós conseguimos fazer em três meses, dezenove documentários... É uma tarefa para a época e creio que até hoje razoavelmente complicada.

Bom, aí terminam esses filmes, continuei montando algumas coisas que apareciam, com o Guido Araújo que também é amigo do Farkas, com a moviola em São Paulo montei um filme que ele tinha feito, acho que é "Feira da Banana" o título, se não me engano; aí o Roberto Duarte estava montando um documentário sobre o Teatro Oficina com uma namorada que era atriz de lá, enfim, de alguma maneira eu comecei a terminar outros filmes ou editar.

Muito bem, nos 70 e poucos, acho que foi em 73, o Farkas tinha uma quantidade imensa de material, pois a produtora era na casa dele, num quarto refrigerado, com ar condicionado, de material de sobra e aí ele falou: "nós temos que dar um jeito nisso daqui, tem muita sobra e não sei o que fazer". Eu revisei todo esse material, e mais, nessa viagem de 69, apesar de não ter nenhum projeto para fazer no Ceará especificamente, mas sim na Bahia, quando passei na preparação da Bahia, encontrei uma senhora que era uma rezadeira que sabia reza para fechar o corpo, para plantação, essas coisas que inventam né?... Eu falei: "quando voltar aqui eu vou filmar essa senhora", pois ela estava com cento e tantos anos, não sei o que eu vou fazer, eu vou documentar e ficar com ela. E quando eu passei pelo Ceará, onde o Geraldo Sarno estava filmando, um dia eu saí com o Farkas e descobrimos um raizeiro na feira, o cara vendia raiz. Vamos documentar o trabalho dele na feira e na casa dele, onde ele fazia operação em boca de cavalo, tratava uma infecção, enfim, era um raizeiro meio curandeiro, também documentei e disse: "não sei o que vai acontecer, estava lá guardado, arquivei".

Nesse levantamento de 73 falei: "Thomaz, tem uma série de materiais aqui, que acho que vai dar para fazer um outro documentário só com as sobras. Você vai ter que pagar só a cópia e o serviço de laboratório e de som, porque o resto tá feito". Ele disse: "pode fazer". Aí fiz um filme chamado "De raízes & rezas, entre outros". Esse filme tem como dois núcleos principais a rezadeira, com essas rezas de fechar o corpo e esse raizeiro, e recompilei, digamos assim, a trajetória de toda a filmagem. Tem coisas filmadas na Bahia, no Ceará, em Pernambuco, na Paraíba. Faço um panorama dessa trajetória e como naquele momento você tinha inúmeras dificuldades com censura, para evitar maiores problemas, o que é que eu fiz: não botei narração, peguei só fragmentos de canções brasileiras ou latino-americanas e pus um texto de advertência na frente: esses textos são para ser ouvidos e sentidos não como uma canção que lembre a canção, mas como se fosse um texto de narração. Esqueça a música. E usei isso no filme inteiro e mesmo assim tive problema com a censura, pois estava filmando no interior da Bahia um enterro de uma criancinha, um bebê, que é levado por um grupo de crianças para o cemitério e atrás tem uma zabumba tocando. Quando entrou no cemitério e a criança começou a ser enterrada, a zabumba começou a tocar o hino nacional e deixei. A censura mandou tirar e disse: "não pode tocar o hino nacional, no enterro de uma criança" e peguei uma cópia, cortamos e mandamos para a censura e mantive uma versão integral com a zabumba tocando o hino nacional.

O objetivo seria um dia talvez conseguir justamente chegar na escola. O objetivo era a escola. Mas desapareceu esse mercado e foi-se embora a partir de 69, a partir do AI-5, aí o Farkas começou a alugar, emprestar, começou a participar de uma ou duas SBPC , foi para algumas faculdades, algumas escolas, mas uma coisa assim, tópica e localizada, nunca teve uma maior repercussão. Alguns desses filmes foram para o exterior e tiveram alguma repercussão em mostras e festivais internacionais, em projeções no Museu do Homem em Paris.


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