Isso mexeu muito
com a minha cabeça, porque vi que essa coisa que não tem
dinheiro, que não é possível é uma questão
de prioridade. No próprio discurso de inauguração
da Escola: "dizem que nós estamos gastando dinheiro nessa
Escola" é bobagem, porque sabemos que tem dinheiro para
tirar de um lugar e pôr em outro e sabemos que essa Escola nesse
momento pode ser importante. E essa importância de uma certa forma
pude verificar, indiretamente, quando dois momentos: um, quando a Escola
inaugurou teve uma grande festa na casa do Garcia Márquez e lá
estava o embaixador da França e comecei a conversar com ele e
ele fez a seguinte observação: "essa escola de vocês
é um ovo de Colombo" e não entendi direito o que
era. E ele falou: "se qualquer um dos principais países
capitalistas tivesse tido essa idéia de vocês, mesmo que
ela custasse 10 vezes mais o que vai custar para vocês, em termos
de dólar, ela vai dar um retorno institucional muito superior
aos 500 mil dólares (que era o custo anual da Escola) e esse
dinheiro sai na urina de qualquer país capitalista, porque 5
milhões de dólares para França é piada.
O segundo momento, no final de 1887, o Birri decidiu fazer uma prestação
de contas para Fundação, que era a entidade mantenedora
da Escola para dizer o que tinha sido feito e decidiu compilar tudo
o que ela tinha sido publicado e divulgado em revistas, jornais, recortes,
vídeos, e deu uma publicação de 700 páginas
e comprovou a estória do ovo de Colombo do tal embaixador francês.
Ao mesmo tempo essa escola começou a ser, desde o princípio,
um ponto de atração de personalidades internacionais que
passavam e pelo que sei continuam passando pela escola, que nunca passaram
por aqui, por exemplo o Francis Ford Copolla se dispôs a passar
uma semana na Escola fazendo uma oficina, quer dizer, isso não
tem preço. Uma semana de oficina com o Copolla, quanto iria custar
se você fosse pagar? Sem dizer no prestígio que uma presença
dessas dá para a Escola e assim tiveram vários outros
exemplos.
E a Escola teve essa repercussão e teve, vamos dizer assim, uma
engenhosidade para conseguir recursos e todo ano, até hoje, batalha
para conseguir dólares para o ano seguinte, o que se complicou
mais a partir de 89, quando caiu o muro (de Berlim), porque a partir
de então várias coisas que eram gratuitas deixaram de
ser gratuitas e tudo passou a ser cotado em dólar, acabou aquela
coisa de peso cubano e tudo era em dólar, você quer comparar
um tonner de aparelho para fazer xerox é dólar, quer comparar
filme negativo é dólar, tudo é dólar.
O que o Garcia Márquez fez e outras experiências se repetiram
em abril, maio de 87: Ele tinha que ir para França e disse "vou
encontrar com o Mitterrand, o que eu peço para Escola?"
Dissemos: "pede uma câmara Aaton, tem um francês que
está produzindo essa câmara é muito boa". Ele
falou: "ah, quando chegar lá vou pedir duas, eles vão
dar uma mesmo, então peço duas". E aí chegou
na hora ele pediu três e deram três câmaras para Escola.
Nesse meio tempo, tinha ido para lá um americano, que era um
grande especialista, de um importante laboratório norte-americano
em Nova Iorque, o Duart, e estava explicando todas as inter-relações,
em 87, veja bem, há 14 anos atrás, entre a imagem em película
e a imagem em vídeo, como é que esse entrecruzamento estava
sendo feito, as dificuldades técnicas, como é que se fazia
para superar, enfim era um técnico especializado nesse tipo de
transa: laboratório, imagem eletrônica. E ele ficou entusiasmado
e disse: "vou falar com fulano de tal", que é justamente
o francês Jean Pierre Beauvialla, fabricante da câmara,
ele disse: "ele precisa vir aqui falar com vocês". O
que aconteceu: como o Garcia Marquez pediu três câmaras
e o governo francês decidiu dar as três, nós propusemos
que viesse o francês fabricante para fazer uma oficina, e esse
francês veio fazer oficina e já prevendo coisas que na
verdade hoje em dia são corriqueiras, por exemplo o código
de tempo para película, e que tinha sido pensado para documentário
em 16mm para facilitar o acabamento, quando na verdade isso foi apropriado
para a câmara panavision, enfim isso não importa, mas foi
ele quem inventou esse negócio.
Já em 87 ele propunha a edição off-line, que começou
a ser feita aqui em 90 e tantos, ninguém fazia edição
off-line na época. E esse cara também se enamora da Escola
e disse: "vocês precisam ter um telecine para telecinar as
coisas de vocês, vou pedir que o governo francês compre
da Inglaterra". Nos dissemos: "vai ser difícil ele
conseguir que o Governo francês compre da Inglaterra e doe".
Não conseguiu, ele construiu um telecine e doou para Escola.
Então tem uma série de relações em que uma
puxa a outra e a outra e outra... que o tempo inteiro está acontecendo.
Claro que hoje em dia, com a dificuldade maior do dólar, tem
sempre mais presença cubana (de professores e profissionais da
área na Escola) que no passado, mas ainda assim... Veja, recebi
o relatório do grau escolar, que vai de setembro a julho, do
que foi esse ano escolar anterior, passaram 150 e tantos professores
dos quais 70 e tantos estrangeiros... Você imagina entre cursos,
oficinas etc, passar esse número de gente, é um mundo
de gente... (OBS: Posteriormente a esta entrevista, recebi dado atualizado
sobre a EICTV no período set/2000 a julho/2001: mais de 380 alunos
- entre o curso regular e as oficinas e 255 professores.)
Enfim ela mantêm essa característica de ser, primeiro,
uma Escola Internacional, não é uma escola cubana que
entram alguns estrangeiros. Cuba tem no curso regular o número
de alunos que qualquer outro país tenha naquele ano. Digamos
o Brasil, no ano tem direito a 4 alunos para o curso regular, que passaram
no exame, Cuba vai ter direito a 4 alunos. Nas oficinas, nos seminários
é diferente, porque o que conta é o curriculum. Você
pode ter "x" de um país e zero de outro, o que vai
contar é o curriculum.
A própria forma de funcionamento da Escola é diferente
das outras escolas de cinema. Porque? Eu acho que por várias
condições. Um ano que você passe na Escola equivale
a 3 em qualquer lugar, porque você está vendo, de manhã,
de tarde e de noite um único ambiente, que é o da Escola.
Acabou sua aula as 5 horas da tarde, você continua sua inter-relação
com seus colegas, para o bem e para o mal, se você não
for com os cornos de um colega seu, vai ter que agüentar ele 2
anos. Mas essa troca é intensa o tempo inteiro. Tem muita facilidade
na Escola para se ver vídeo, de ver película sem contar
o pessoal que passa e deixa seu lastro. Por exemplo se o Coppola vai
dar um seminário específico de realização
para uma Oficina, ele não vai deixar de um dia perturbar o programa
do curso regular e vai atrapalhar porque aquele dia você não
vai ter aula, não vai ter fotografia, mas alunos do curso regular
que estão se formando, vão ter a chance de conversar com
o Coppola uma vez na vida né? Tem esse tipo de relação...
Outra coisa é que o tempo inteiro os alunos estão em condições
de, em vez de fazer rascunho na mão, fazer rascunho eletrônico.
Desde o princípio, tá todo mundo enchendo o saco o tempo
inteiro de todo mundo, pega uma câmara VHS e começa a fazer
coisas paralelas, exercícios paralelos, enfim, imagens paralelas
ao ensino curricular. Outra coisa é que você não
tem nota, se você cumpriu suas obrigações no primeiro
ano, foi às aulas, fez o seu roteiro, fez seus exercícios
de produção de som de edição o que for,
você tem direito a passar para o segundo ano, o funil vai ser
no segundo ano que é o que dá especialização.
Se quando me inscrevi no exame, minha primeira preferência de
formação é fotografia, minha segunda é editor
de som, no segundo ano tenho que apresentar um projeto que entre nessa
faixa. Pode ser que o meu projeto não seja escolhido, porque
a Escola a cada ano, esse ano passado está por volta de 40 alunos,
não vai dar para fazer 40 exercícios individuais de fotografia,
a Escola vai produzir 5 exercícios individuais, 5 ou 6 ou 8 de
direção e eu vou ter que me encaixar num nesses projetos,
e assim por diante.
Outra coisa também é, não que a Escola faça
a apologia do erro, mas é o único momento na vida em que
você vai poder pôr em cheque, dizer: "é melhor
você não filmar aqui, com essa luz azul fluorescente porque
vai acontecer não sei o que..." e você diz: "não
mas eu quero filmar para ver como vai ser" . Você pode até
dar com os burros n'água, mas pelo menos pôs em discussão;
enfim, tem uma série de outras inter-relações,
tem um momento da Escola que a partir de março, abril de cada
ano, vira na verdade uma central de produção, fica todo
mundo fazendo exercício. Você imagine, 40 alunos, cada
um tem por obrigação fazer um exercício como realizador,
mesmo que seja 3 minutos cada exercício, multiplique 40 por 3
dá 120 minutos, 120 minutos são 2 horas, 2 horas é
um longa-metragem né, e o cara vai fazer fotografia, som, etc.
Vira uma central de produção que enlouquece todo mundo,
e eles enlouquecem os professores porque se tem que filmar amanhã,
às 2 horas da manhã, e esqueci de perguntar para o professor
se aquela zoom funciona ele levanta e bate na porte e pergunta: "Professor,
aquela zoom amanhã como é que eu faço" e tem
esse tipo de inconveniência. Enfim, a Escola tem todo um tipo
de funcionamento que difere muito das possibilidades de um curso universitário.
Imagina o seguinte, uma experiência que nunca participei mas já
ouvi falar, por exemplo, a ECA (Escola de Comunicação
e Arte da Universidade de São Paulo), ela decide mudar o seu
curriculum, chegam os professores, que por sua vez passam para direção
da Escola, a direção da Escola para Reitoria, a Reitoria
para o Conselho Universitário, o MEC, quando volta, passou 4,
5 anos, ou 3 anos que seja, a escola já é outra.
O que acontece lá na Escola: tendo condições materiais,
é mudado num passo, quer dizer tal problema, vamos tentar resolver,
e o pior que pode acontecer é demorar 6 meses para resolver uma
situação, ou porque não tem dinheiro para comparar
um equipamento, ou porque temos que resolver problemas tidos com um
professor, enfim, tem uma dinâmica, porque como é uma Escola
que não pertence ao Estado Cubano, é uma Escola Livre
(para ter um nome), ela não passa nem pelos trâmites do
ministério da educação nem pelo ministério
da cultura, a gente pode mexer na velocidade que a Escola for capaz
de absorver a necessidade daquela modificação, e tudo
isso leva a uma outra correlação entre professor aluno
e escola, que é uma característica que eu acho importante,
diferente, e acho que tem uma vantagem em não ser universitária,
ainda que muitos digam que a Escola é só uma escola prática,
o que não é verdade.
Ela não é uma escola que desenvolva mais a discussão
teórica sobre semiologia ou qualquer outra "especialidade",
mas das coisas fundamentais sobre roteiro, dramaturgia, produção
e coisa, tem discussões teóricas importantes só
que o tempo inteiro, o aluno está colocando em cheque aquilo
o que o professor falou. Tem uma aula de roteiro e uma discussão
de dramaturgia, você vai ver como você enfrenta aquilo quase
em cima do lance, como é que resolvo dramaticamente tal coisa,
enfim o tempo inteiro existe a dinâmica entre um eventual recebimento
de uma informação teórica que é passível
de ser confrontada com a prática. Isso é impossível
numa escola tipo universitária, quando só no quarto semestre
se coloca a mão em equipamento, a menos que se faça um
esquema paralelo com seus colegas. Nesse tipo de escola você vai
pôr a mão na câmara no terceiro quarto semestre,
aí já passou um ano, um ano e meio né? Enfim, é
outra coisa. Na EICTV é obrigação que todo mundo
faça rodízio de funções de uma equipe. Eu
posso querer ser diretor, mas tenho que ser fotógrafo em seu
exercício, editor de som no dele, produtor no outro, roteirista
no outro, por obrigação, não importa, porque se
eu quiser no futuro ser um roteirista, eu tenho que saber quais são
os problemas de fotografia, de som, de produção, de edição.
Me perguntavam muito: o cara sai de lá com emprego? Eu digo:
"não, vai sair como é até hoje: o cara tem
que batalhar para conseguir seu lugar no mercado de trabalho só
que ele vai chegar ao mercado de trabalho um pouco mais municiado de
informações ou formação que antes ele pagava
para aprender, vai chegar num outro nível de possibilidade e
diálogo profissional."
EICTV e acervo
de cinema Latino americano
O ICAIC hoje em
dia tem menos condições de pagar. Antes eles tinham uma
maior liberalidade de recursos que hoje em dia está mais complicado
e até em termos de conservação, me parece que coisa
de 3, 4 anos para cá, conseguiram um aporte da UNESCO para reequipar
os laboratórios para conservação, copiagem etc,
que devido a crise estavam comprometidos.
Mas independente disso, o que vai paro o Festival eles tentam comprar...
uma cópia, enfim, fazer algum tipo de negócio, muitas
vezes o que acontece é que o produtor que vai para lá,
que já tem interesse ligados com distribuidores locais ou americanos
não pode vender. O que acontece, por exemplo, o filme da Laís
Bodansky, Bicho de Sete Cabeças, provavelmente se ela quisesse
vender para Cuba não poderia porque o filme foi produzido pela
Columbia, e não pode vender, tá no embargo.
Se bem que com freqüência aconteceu do próprio cinema
americano, até hoje acontece isso, muitos realizadores americanos
são amigos do cinema cubano, o que ele faz, ele não vende,
ele doa uma cópia para Cuba. O Coppola deu cópia do Chefão
(O Poderoso Chefão), o Robert Redford deu uma cópia não
sei de qual, eles dão cópias e aí depois fazem
contratipos e vão em frente. Mas enfim, e até um certo
momento porque hoje em dia é diferente, e o marco é 89,
ou seja, desde o princípio da Revolução até
1989 existiam duas constantes. Primeira, como acabou a possibilidade
de entrada de filme americano por mercado deles, porque o americano
não permitia que os filmes americanos fossem comparados e negociados;
os cubanos disseram: se é para ter hegemonia de algum filme nas
telas cubanas, que seja de filmes latino-americanos, para evitar também
o que muita gente queria, trazer filmes russo, polonês... não,
o máximo de esforço é que pelo menos em Cuba a
hegemonia seja da imagem Latino-americana.
Isso foi uma coisa que eles tentaram durante muito tempo manter. E a
outra coisa é o seguinte: tal filme de fulano, ex. Fellini, que
já tinha co-produção de americano, mas que estava
passando na Polônia, na Checoslováquia, eles encontravam
um jeito de piratear e contratipar e traziam o filme para Cuba, e os
direitos autorais que se danassem... Hoje em dia já não
está mais assim, porque as novas relações estabelecidas
já repensaram o problema do direito autoral, quando você
escrevia um livro em Cuba recebia um salário por mês, mas
direito autoral era do Estado Cubano, mas hoje em dia acho que não
é mais assim. Enfim, esse acervo que eles mantiveram foi importante
e espero que continue sendo importante, não sei, faz quatro anos
que eu não vou até lá, mas até então,
estavam tentando recuperar essa dinâmica, mas hoje em dia muita
coisa é impossível de comprar por essa limitação
de co-produção.
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