Você já foi peão?


por Angélica Valente


Provavelmente não. No Brasil ainda são poucas as pessoas que têm acesso à internet: segundo o IBGE, em 2003, éramos apenas 15% da população. Se você está lendo este texto aqui na rede é porque está dentro desse pequeno grupo - e fora do outro, que inclui, entre tantos, muitos peões, trabalhadores do chão de fábrica que vêm perdendo seus postos de trabalho para máquinas e computadores de última geração. É para eles que Eduardo Coutinho volta o foco de suas lentes em seu último documentário, lançado no final de novembro e vencedor do prêmio de melhor filme no Festival de Brasília, apenas uma semana depois.

Como documentário que define seu tema, Peões fala de um grupo específico deles, pessoas comuns que participaram de uma parte importante do processo de democratização do Brasil, mas que nem por isso deixaram seus nomes marcados na história. Aliás, o anonimato foi um dos critérios do diretor na escolha de seus personagens (algo que ele confessa diante das câmeras), ex-metalúrgicos do ABC paulista e protagonistas das greves ocorridas no início da década de 1980. Eles que, sob o comando de Lula, pararam as máquinas em protesto por melhores condições de trabalho e salários.

Ao contrário do que pareceria óbvio, a narrativa não começa no local dos acontecimentos, mas em uma cidade do interior do Ceará, terra natal de parte dos entrevistados, para onde voltaram, agora aposentados. "Era isso que eu sonhava", confessa um deles, que assim como outros retirantes, compartilhava o desejo de ir para a cidade grande fazer dinheiro, mas sem dúvida voltar assim que pudesse ter uma condição melhor de vida. Não esperavam que no meio do caminho haveria uma pedra e um líder para organizar sua retirada dali.

Depois de aparecer nas primeiras narrativas, São Bernardo entra em cena quando o diretor reúne militantes e ex-militantes na sede do sindicato em busca de depoentes. Ali, onde tudo começou, eles têm em mãos registros da época e aos poucos vão reconhecendo rostos dos companheiros de luta. Característica dos filmes de Coutinho, o processo de pesquisa está registrado na versão exibida, como quem pede certificado à realidade, como quem quer um registro, fictício ou documental.

De lá, a câmera sai em busca de "Sarrafos", "Joãos Gijos", "Nices" e "Bocas Ricas", homens e mulheres nascidos pobres, quase todos demitidos com o fracasso da greve, que seguiram suas vidas depois daqueles intensos dias. Pessoas comuns, mas que demonstram familiaridade com uma figura ilustre: o Lula hoje presidente, então companheiro, um líder tão próximo, tão importante quanto um pai. "Sim, um pai", afirma a servente do sindicato que até hoje trabalha por lá. Com emoção à flor da pele, ela conta como salvou os rolos do filme Linha de Montagem, "senão a gente ia ficar sem história", e deixa as lágrimas caírem ao imaginar que poderia servir café para Lula em Brasília, quando ele fosse eleito.

Entre os homens, chama atenção uma situação comum: o posicionamento de suas esposas em relação à militância, no mínimo contrariadas, já que a lida tomava tempo demais de seus dias, a ponto de um deles esquecer o nascimento da filha e dois deles assumem: não viram seus filhos crescerem. Dar conta de uma greve que mobilizou mais de 150 mil pessoas é mesmo trabalho para quem tem o casco de jacaré.

Por vezes, o orgulho de ter feito parte dessa história se confunde com um orgulho pela profissão. "Meu filho também é peão, com muito orgulho. Algum problema nisso?" pergunta um deles, em contraste com o depoimento final, trespassado por um silêncio incômodo e os olhos mareados, do pai que não quer essa vida para seus filhos.

Além dos depoimentos, Peões recorre a três importantes documentários filmados na época (ABC da Greve , Linha de Montagem - salvo pela servente! - e Greve), material que somado às legendas curtas e precisas, pontua o período e seus fatos, e oferece imagens às lembrança resgatadas pelos entrevistados. Muitos deles nunca haviam visto os filmes, eo contato com aquelas imagens dá vazão a momentos especiais da narrativa.

Outra marca do diretor, o filme não quer mostrar apenas as histórias da história, mas as histórias de seus depoentes, suas fabulações, imaginações, recordações. Posicionada, a câmera observa, registra essas interpretações de si mesmos.

Ainda na cidadezinha do Ceará, um deles afirma: "sou comunista na veia, não tem jeito", para em seguida ameaçar: "mas se o Lula não fizer nada por nós... aí o bixo vai pegar". Filmado em 2002, durante a campanha eleitoral, o filme vem às telas dois anos depois da chegada de Lula à presidência. Naquele momento, os personagens de Peões falam com emoção do que viveram e de seus papéis na história, e com esperança indisfarçável pelo previsto novo governo. E agora? Como falariam?


Ficha Técnica


Título Original: Peões (Brasil)
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 85 minutos
Ano de Lançamento: 2004
Direção: Eduardo Coutinho
Produção: Maurício Andrade Ramos e João Moreira Salles
Fotografia: Jacques Cheuiche
Edição: Jordana Berg