Documentário e Representação
- Desnaturalizando uma evidência

por Luiz Augusto Rezende Filho (1)




O interesse e a atenção crescentes que questões afins ao campo de atuação do documentário têm despertado produziram uma renovação significativa da teorização e da crítica neste domínio. Nesta renovação, destaca-se, certamente, o crítico norte-americano Bill Nichols, cujo trabalho possibilitou o desenvolvimento de uma nova vertente de investigação, análise e teorização para o documentário.

Nichols procura ressaltar semelhanças e, principalmente, diferenças existentes entre os domínios empiricamente reconhecidos da ficção e do documentário, sem precisar voltar, no entanto, a uma oposição rígida ou estrita entre ambos. Da mesma forma, evitou, na diferenciação entre documentário e ficção empreendida, reavivar qualquer idéia de “superioridade” moral-ontológica do documentário. Antes, Nichols procura colocar em questão algumas idéias próprias a uma tendência de crítica que, com mais força a partir da década de 1970, colocou em destaque o caráter fictício de qualquer documentário. Segundo esta perspectiva, todo documentário é um “texto”, é “uma ficção com tramas, personagens, situações e acontecimentos como qualquer outra” (NICHOLS, 1997: 149).

Para esta tendência, um documentário é tão construído quanto qualquer “filme de ficção”. Ele é uma construção discursiva subjetiva, ideológica, produzida por “sistemas significantes” equivalentes aos encontrados no “cinema de ficção”. As suposições de objetividade, de neutralidade e de veracidade documentais – que tradicionalmente estiveram relacionados, de uma forma ou de outra, à atividade documentária – não teriam, portanto, qualquer sustentação. O documentário não estaria mais próximo da realidade que a ficção. Nem estaria mais próximo da realidade que da ficção.

Ao equiparar ficção e documentário como “construções de caráter discursivo”, no entanto, este tipo de análise acabava ignorando, no entender de Nichols, distinções importantes. Nichols reconhece que o documentário compartilha certamente muitas características com o cinema de ficção. Reconhece também que dizer que o documentário é uma “ficção como qualquer outra” foi importante para atacar as concepções que acreditavam na oposição ilusória, redutora e simplista entre ficção e documentário, e que, movidos por um preconceito contra a ficção, pretendiam colocar o documentário em um nível superior de relação com o mundo.

Para Nichols, no entanto, se o documentário é um discurso construído, uma “ficção”, ele é “uma ficção (em nada) semelhante a qualquer outra” (2) (NICHOLS, 1997: 151). Nesse sentido, todo documentário é, certamente, tão construído quanto qualquer “ficção”, mas, ambos são diferentemente construídos. Se o documentário é uma ficção, esta ficção guarda, no entanto, especificidades e diferenças em relação às outras ficções. Como exemplos dessas diferenças, Nichols cita, entre outras, as que dizem respeito às práticas recorrentes ou às questões de ética, estrutura, estratégias, estilos, e tudo o mais que constitua ou caracterize o documentário como um domínio institucional particular.

Uma das contribuições do autor para o debate atual sobre documentário foi, justamente, este cuidado com a questão da especificidade da prática, da teoria e da retórica documentárias. Além disso, a sua crítica à tendência que equiparava documentário e ficção mostrou como esta perspectiva – dominante em certos setores – já apresentava sinais de esgotamento e de inviabilização de alternativas por reduzir o documentário a um modelo de análise criado para o filme de ficção.


O gesto de afirmação do domínio do documentário como algo específico e próprio ainda permanece, no entanto, em grande parte tributário do mesmo território teórico que havia, anteriormente, estabelecido a tendência crítica que se atacava. Principalmente porque Nichols, como a maior parte dos autores, manteve praticamente intactos determinados pressupostos muito fortes presentes naquela tendência. Para realizar a tarefa de busca das diferenças entre documentário e ficção, o autor precisou utilizar ainda, para fundamentar sua argumentação, uma das noções mais caras aos críticos de que ele se distanciava: a de representação.

É o que podemos notar quando Nichols afirma, por exemplo, que “os documentários não diferem das ficções por serem textos construídos, mas pelas representações que fazem” (3) (1997: 153). Nesta afirmação, fica claro como a noção de representação é ainda importante para o projeto do autor. Ela adquire a forma de um pressuposto sobre o qual se fundamentam as diferenças entre documentário e ficção que Nichols deseja destacar: à ficção caberia a representação de uma estória passada em um mundo imaginado; ao documentário, a representação de uma argumentação que procura apontar para o mundo histórico. A noção de representação passa, desta forma, a compor a perspectiva do autor como um pressuposto teórico discreto: considera-se que tanto o documentário quanto a ficção são formas de “representação”, ainda que diferentes. Essa afirmação, no entanto, não é colocada em discussão (por isso é justamente um pressuposto), e o conceito de “representação” se naturaliza em sua aplicação indistinta tanto ao documentário quanto à ficção, sem que se questionem as implicações desta “naturalização” na análise empreendida.

Mas, no âmbito da teoria do documentário, devemos entender a forte presença da noção de representação como instrumento de uma estratégia. Para a tendência crítica que, a partir dos anos 60/70, procurou colocar em questão as rígidas oposições entre ficção e documentário – equiparando-os “ontologicamente” –, a noção de representação será uma ferramenta importante tanto para a análise da construção de significado no documentário, quanto para atacar sejam as “concepções realistas” da objetividade do registro cinematográfico, sejam as técnicas do “ilusionismo”. A semiologia do cinema foi uma das tendências que utilizou estrategicamente a noção de representação com este sentido. Para Christian Metz, por exemplo, todos os filmes, mesmo os documentários, são ficções porque são representações. Para o autor, a atividade de “representação” marca necessariamente qualquer obra cinematográfica, já que é incontornável a presença de uma subjetividade produtora que dá forma, organiza e seleciona. A realidade não poderia nos falar diretamente através de algum suposto instrumento de registro neutro e objetivo, mas apenas através das representações construídas por sujeitos histórica e ideologicamente determinados. Assim como Metz, outros autores franceses (como Jean-Louis Comolli, Marcelin Pleynet, Jean Narboni e Pascal Bonitzer) também procuraram evidenciar, através da noção de representação, que todo conjunto organizado de signos (imagens e sons) é uma representação na medida em que transforma e “manipula” aquilo que representa de acordo com intenções subjetivas e ideológicas, apresentando (e este é o caso do realismo documental) um mundo trabalhado pelo discurso e pela ideologia como se fosse o real.

Considerar o cinema e, especificamente, o documentário como uma forma de “representação” cumpriu, portanto, um papel estratégico para a crítica ao realismo: enfatizar o caráter ideológico, subjetivo e discursivo da atividade cinematográfica em geral, evidenciar as diferenças entre o que é da ordem do real e o que é da ordem do discurso e eliminar o idealismo que pretendia apagar essas diferenças. Quando Nichols afirma, por exemplo, que “documentários sempre foram formas de re-presentação, nunca janelas transparentes para a ‘realidade’” (NICHOLS in ROSENTHAL, 1988: 49), ele mantém ainda um elo de ligação a essa corrente teórica e crítica que, sem questionar as implicações que a noção de representação comporta, ou percebê-la como um pressuposto, dela se valeu para atacar os “mitos realistas”. Se as idéias de Metz, Comolli ou Bonitzer muito influenciaram, posteriormente, teorias importantes do documentário, conduzindo-as a questionar com propriedade a “superioridade ontológica” do documentário e o idealismo da concepção realista que o cercava, elas também lhes criaram embaraços significativos.

Como vimos, o próprio Nichols mostrou como essas idéias não deixaram muito espaço para pensar a especificidade do documentário ou a sua “existência institucional”. Além disso, a “evidência” segundo a qual o documentário é uma representação não tem permitido pensá-lo como outra coisa a não ser isso. Também não se tem questionado se a relação que o documentário estabelece com o mundo precisa ser tomada, necessariamente, como sendo da ordem da representação/objeto representado. Ou ainda, o quanto é a própria idéia de “representação” que torna necessário discutir a relação do documentário com o que chamamos de “real” sob o próprio viés do realismo (uma possibilidade de objetividade ou de “adequação” entre ambos, possibilidade esta, ora afirmada, ora negada).


A representação e a sua crítica

Seria necessário, então, fazer, não tanto a crítica das formas de representação (de sua ideologia ou de seu discurso), mas a crítica da representação como um pressuposto teórico, ou seja, a crítica da idéia de representação, de seu uso, de suas implicações e limites dentro das teorias do documentário. Dizer que um documentário é uma “representação”, não significa apenas dizer que ele é uma construção discursiva e subjetivamente estruturada – diferente, portanto, da própria realidade.

Essa pressuposição carrega consigo também a idéia problemática de que, como representação, o documentário “substitui” alguma coisa (a realidade?), “presentifica-a”, ocupando seu lugar lá onde ela não mais se encontra. A idéia de “substituição” (alguma coisa que ocupa o lugar de outra) está implícita na idéia de representação. É o que se supõe, por exemplo, quando consideramos que uma fotografia “representa” uma pessoa, ou que uma palavra “representa” uma determinada idéia ou ação. Toda representação supõe, além de um sujeito que a “constrói”, um objeto por ela representado, um modelo que ela busca “copiar” – a idéia de cópia está, assim, assimilada, de uma forma ou de outra, à idéia de representação.

Um dos problemas centrais da noção de representação é, então, saber em que medida ela visa ser confundida com o que representa. E, também, saber o quanto há de arbitrário e o quanto há de motivado em uma representação (AUMONT, 1993: 103-105). Para a análise empreendida aqui, não parece importar muito saber se a representação é motivada ou convencional, mas saber que a idéia de representação supõe implicitamente a existência de um sujeito e um objeto previamente dados.

No entanto, a questão da motivação ou da convencionalidade da representação só parece possível devido, justamente, à suposição da existência de um objeto para a representação. O que está em questão quando se pensa se a representação é convencional ou motivada é a natureza de sua relação com o objeto. O que está em questão é a avaliação da adequação entre a representação e o que ela supostamente representa. Ou seja, sob que aspectos se pode considerar a legitimidade e a “veracidade” da representação em relação a um objeto proposto, tomado, de alguma forma, como modelo. O problema é que a avaliação da adequação entre objeto e representação acaba conduzindo, especialmente na teoria do documentário, à inevitável constatação da “inadequação” da representação, da necessidade do espectador aceitar sua arbitrariedade, seu “contexto limitado”, sua “insuficiência” frente ao objeto.


No campo da teoria do documentário, esta constatação se deu em meio a grandes dificuldades, em razão da força que sempre tiveram as suposições de uma adequação direta e verdadeira entre o documentário e seu suposto objeto, a realidade, não apenas junto ao senso comum, mas também junto a grande parte da tradição da prática documentária. Em função disso, a “inadequação da representação” documentária do mundo só adquiriu o caráter de uma “evidência” à medida que, como vimos, diversas abordagens críticas evidenciaram justamente o caráter de representação de todo documentário. Desta forma, buscou-se apontar os “limites” de toda representação, o que “não se pode representar” ou tudo aquilo que faz da representação documental uma representação “inadequada”, “problemática”, tanto em relação a seu “objeto”, quanto a seu “sujeito” e a seu “espectador”, de forma a reconhecer que o realismo documentário e suas convenções não são capazes de reproduzir nenhuma realidade “fielmente”, ou seja, sem utilizar artifícios e fabricações.

Outros problemas específicos da prática do documentário seriam os que dizem respeito aos efeitos da presença/interferência da câmera sobre o que é filmado, aos diversos acordos que devem ser feitos para permitir a filmagem, às maneiras de se posicionar, de iluminar, de enquadrar, ou até mesmo, ao que deve ser filmado ou não. Tudo isto levantou o questionamento, tanto de setores da teoria quanto da prática do documentário, das suposições e dos condicionamentos que antes eram tomados como “não-problemáticos”.

Cineastas e teóricos se preocuparam com as dificuldades intrínsecas da filmagem documental no que diz respeito a questões como a da influência do “observador” sobre o “observado” e com o fato de a realidade ser selecionada e alterada pela presença do cineasta e pelas necessidades técnicas dos equipamentos. A subjetividade e a arbitrariedade presentes nessas escolhas e interferências tornariam sempre suspeita qualquer pretensão de autenticidade ou de neutralidade, assim como qualquer tentativa de instituir evidências de mundo através de artifícios realistas.

Apesar da inegável legitimidade destas alegações, a crítica da representação documentária criou uma grande dificuldade de se avaliar positivamente a prática documentária, sem que se retornasse a uma concepção realista. Essa dificuldade, no entanto, não pode ser tanto fruto das particularidades da prática documentária ou da técnica cinematográfica, quanto parece. Ao contrário, ela decorre, muito mais, das suposições e expectativas socialmente estabelecidas (o documentário deve “representar o real”) e das elaborações e conceitos usados por determinadas teorias e análises (“o documentário é uma representação”). Poderíamos ver um exemplo concreto destas dificuldades em um tipo de crítica que se concentrou em apontar a “manipulação” existente no documentário, em particular, e no cinema, em geral. Esta “crítica da manipulação” se ocupava de relatar casos em que, ou o documentário utilizava as particularidades de sua técnica para, propositadamente ou não, “distorcer a realidade”, ou ele se mostrava “tecnicamente” incapaz de representá-la, por mais honestamente que tentasse. Eventualmente, também procurava mostrar como o cinema podia cometer “equívocos” ou produzir estereótipos ao “representar” culturas desconhecidas ou “exóticas”. São inúmeras também as análises de “filmes de propaganda” que cumpririam determinados papéis ideológicos e persuasivos em suas “representações da realidade”. Esta crítica da manipulação se fez possível, primeiramente, porque acreditava que os documentários poderiam ser tomados, se não como meios puramente objetivos de “representação da realidade”, mas como evidências que permitiriam acesso à compreensão das “ideologias que os fabricavam”. Da mesma forma, essas “ideologias” precisavam ser compreendidas como sujeitos ativos e eficazes, dotados de uma total onipotência para produzir qualquer efeito desejado e para controlar emoções e desejos do espectador.
Mas este tipo de crítica também é fundamentado pela pressuposição disseminada de que o documentário é uma forma de representação que, além de ser “manipulado” por um sujeito-ideologia onipotente em seu discurso, também tem um objeto previamente determinado na realidade.

A noção de representação, aplicada ao documentário, nos induz à noção de manipulação, já que a primeira supõe, necessariamente, a existência de um “objeto da representação”, fixamente determinado. Como vimos, não se pode falar em representação sem entender que alguma coisa é representada, ou seja, sem atribuir à representação um “objeto”. Designar um objeto para a representação, por sua vez, implica em considerá-la passível de um julgamento de sua adequação ou coerência em relação ao objeto suposto – especialmente quando se considera que este é um objeto inteiramente “real”, sem virtualidades. Desta forma, é porque a noção de representação supõe, implicitamente, um objeto, um modelo (um real que se supõe previamente dado por inteiro), é que se pode falar na sua “inadequação”. O “objeto” da representação funcionaria como esse modelo ao qual a representação deve ser comparada. A suposição da existência deste objeto-modelo é, portanto, uma conseqüência – e paradoxalmente, ao mesmo tempo, uma causa – da suposição de que o documentário é uma representação.

Um primeiro problema da crítica da manipulação estaria, então, na “designação” de um objeto-modelo para a representação. Mas, além disso, estaria também, e principalmente, na suposição de que este objeto é alguma coisa pronta, previamente dada, dotada de uma identidade unívoca. Alguma coisa que guarda uma semelhança irrevogável consigo mesma, e que a representação-cópia deve espelhar. Quando Nichols nos diz, por exemplo, que “o documentário representa os pontos de vista de indivíduos”, ele pressupõe que existam, previa e independentemente, “pontos de vista” a serem representados. Como se estes pontos de vista formassem uma imagem que já existe e que vai ser revelada pelo documentarista, como a imagem que surge ao montarmos um quebra-cabeça. A imagem já estaria lá, antes que se comece o trabalho, desordenada e espalhada em vários fragmentos, mas já totalmente definida. É essa concepção, que vê a realidade como a imagem previamente existente de um quebra-cabeça, que sustenta tanto a noção de representação, quanto a de manipulação. Não se coloca em questão se os “pontos de vista” só ganham “existência” no processo de sua produção (seja esta considerada ou não uma representação), nem se aquilo a que chamamos, usualmente, “realidade” é mesmo um “objeto” tão concreto, como uma imagem em um quebra-cabeça, cuja única dimensão é a sua materialidade.


A crítica da manipulação sustenta também que, muitas vezes, as argumentações ou narrativas desenvolvidas pelos documentaristas não respeitam a “verdade histórica”. Este tipo de afirmação coloca um segundo problema à crítica da manipulação: a determinação interessada de um critério externo de julgamento da veracidade da “representação”, a partir do qual se poderia determinar a existência ou não de “manipulações”. Geralmente, a objeção que os críticos da manipulação e os historiadores fazem aos “documentários históricos” pode ser explicada pelo fato de os historiadores não reconhecerem, nestes filmes, suas próprias elaborações e conclusões. Quando as reconhecem, podem, eventualmente, enaltecer a “fidelidade histórica” do filme, mas apenas porque, nestes casos, a “representação” se submete ao “objeto” e à imagem pressupostos e, principalmente, ao modelo de verdade e ao critério de julgamento estabelecidos pelo crítico.

Desta forma, considera-se, de uma só vez, que o documentário faz “representações do mundo histórico” (sendo este seu “objeto”), e privilegia-se um critério ou modelo de julgamento particular, considerando-o superior e definitivo frente a outros possíveis: neste caso, o saber estabelecido pelos historiadores, a História, compreendida como “disciplina acadêmica institucionalizada”. Em outras palavras, supõe-se que o documentário deve ter o mesmo “objeto” da representação da história realizada pelos historiadores. Deve, portanto, conduzir, igualmente, às mesmas conclusões que obtiveram os historiadores. Isso nos mostra como a própria noção de adequação, de verdade histórica, é uma noção “exterior”, como ela depende da determinação de um saber, que não pertence ao próprio campo da expressão audiovisual, e como uma crítica da “manipulação” presente no filme depende deste saber exterior.


Uma das grandes dificuldades em que cai este tipo de crítica é, então, o estabelecimento de um critério de julgamento exterior universalmente válido, que deve servir como instrumento para “medir” a adequação do objeto à representação. É normal que os historiadores usem a História como este critério, supondo, é claro, que a História, ou qualquer outra área de conhecimento, seja alguma coisa tão uniforme e harmônica a ponto de ser desprovida de conflitos e desacordos internos. Supondo, igualmente, que a recepção e a interpretação das “mensagens” que os filmes nos trazem também não mude historicamente. Mas, se nem mesmo o “conhecimento científico” estabelecido por uma mesma disciplina é unívoco, o que se pode dizer do conjunto do conhecimento humano e das perspectivas de interpretação possíveis? Da mesma forma, é muito comum que os documentaristas, desejosos de se aproveitarem do respaldo da autoridade socialmente reconhecida dos historiadores, tentem se apropriar do discurso destes últimos para conferirem “veracidade histórica” a seus filmes e a seus próprios discursos.

Não será, então, a crítica da manipulação a decorrência desejável de um acordo tácito entre aqueles que desejam “representar a realidade”, mas, como diz Nichols, sabem que toda representação é uma fabricação – e precisam, portanto, de legitimação –, e aqueles que detém a autoridade sobre um saber estabelecido, mas sabem que o reconhecimento desta autoridade é sempre conflituoso e provisório – e precisam garanti-lo, ampliando seu controle e sua influência sobre quantas áreas da atividade humana for possível?


A crítica da representação conduz, freqüentemente, à conclusão niveladora da onipresença da manipulação. Isso porque, dada a multiplicidade de perspectivas possíveis para a avaliação de uma representação qualquer, facilmente podemos ser conduzidos à constatação da presença de algum tipo de manipulação em qualquer filme. Radicalmente falando, de algum ponto de vista deve ser possível detectar “manipulações” em todo filme. À pergunta, totalmente retórica por sinal, “o cinema manipula a realidade?”, então, é praticamente impossível não responder “sim”, por, pelo menos, duas razões. Primeiro, porque, quando se faz tal pergunta, se supõe implicitamente que a “realidade” é o “objeto” do cinema. E como objeto, a realidade não pode ser “representada” sem que haja artifícios, arbitrariedades, manipulações. Segundo, porque não há como estabelecer “o que é a realidade” a partir de um critério de julgamento único e segundo o qual se ateste, definitivamente, a adequação ou a inadequação da sua “representação”. Assim, sempre haverá algum critério externo, um momento histórico, uma ideologia segundo os quais a representação é inadequada, manipulada, deixando como conclusão que toda representação empreende, de alguma forma, uma manipulação de seu “objeto”.


O maior impasse da crítica da manipulação está no fato de que seu horizonte final tende a ser esse “valor relativo” de toda manipulação, associado a uma crença na “realidade do objeto” equiparável àquela das concepções realistas do cinema. Por valor relativo da manipulação, deve-se entender a necessidade de designação de um critério somente relativo ao qual se pode determinar a “veracidade” ou as “manipulações” de determinada “representação”. Ao mesmo tempo, esta designação nunca deve ser evidenciada por aquele que a empreende, já que o critério estabelecido não pode aparecer como tal, como um entre muitos possíveis: ele deve se “confundir” com a própria realidade.

Ou seja, para quem julga a manipulação presente nos filmes, o critério-modelo de verdade não pode ser identificado como um critério apenas. Ele deve ser considerado inerente à própria realidade do objeto, daí a necessidade de uma crença profunda na sua “realidade”. A crítica da manipulação continua, portanto, a supor, tal como os realistas, mais que uma possibilidade de espelhamento entre “a realidade e a sua representação”, a existência de uma “realidade-objeto” previamente fixada, ou não seria possível apontar erros e distorções nas representações. A diferença é que, para os críticos da manipulação, as concepções realistas acreditavam na transparência da representação cinematográfica em sua relação com o mundo, enquanto que as concepções críticas consideravam essa relação como algo eminentemente “problemático”, “opaco”. Mas ambos continuam a supor a realidade como alguma coisa preexistente e como modelo para as “representações”.

É, justamente, a noção de representação que aproxima, apesar de todo o aparente antagonismo, as concepções realistas e seus críticos, uma vez que ambos a pressupõe – seja para afirmar um nexo direto entre a representação e seu objeto, seja para negá-lo. De alguma forma, a preocupação dos que criticavam o realismo era “resguardar” o objeto, a realidade, atuando onde o idealismo realista tinha falhado: a identificação da intervenção causada pela subjetividade e pela ideologia, pelos recortes e “pontos de vista” do sujeito sobre o mundo representado. O alvo desta crítica não é, portanto, o realismo, a vontade de “representar” o real, mas a representação, sua inadequação fundamental para refleti-lo, e os perigos de sua forma “degenerada”, a manipulação.

Sob este perspectiva, a crítica ao realismo seria apenas uma versão menos “ingênua” do realismo, já que, em ambos os casos, supõe-se uma realidade que se reduz à materialidade ou à visibilidade dos corpos e dos seres. Para a crítica da manipulação, no entanto, se apresenta um problema a mais: tornar compatíveis os níveis de incredulidade do espectador às “manipulações” aceitáveis ou não segundo o critério de julgamento que se adota, e segundo aquilo que passa a ser considerado como “a realidade”. Ou seja, tanto as ditas “representações da realidade” (os documentários), quanto o julgamento da adequação destas representações (as críticas), devem conjurar ou cooptar a incredulidade do espectador disseminada pela variedade de perspectivas, experiências, referências individuais, e pela historicidade da recepção e das interpretações.

Como vimos, é difícil evitar uma avaliação negativa do documentário se continuarmos a falar em “representação”, já que isto conduz, freqüentemente, à constatação da existência de “manipulações”, “inadequações” e às possíveis desqualificações subseqüentes. O que se busca aqui, então, não seria apontar as “inadequações da representação documentária”, como fez a crítica da representação/manipulação, mas a “inadequação” (as dificuldades implicadas pelo seu uso) da noção de representação para a teoria do documentário, evidenciada por aquilo que ela faz pressupor – a realidade como objeto, o documentarista como sujeito, o documentário como representação.

Mas também não se trata de dizer que deveríamos abandonar a noção de representação, porque não seria mais possível representar, dadas certas condições específicas da produção de imagens em nossos dias. Apontar apenas as “inadequações” ou “deficiências” da representação seria limitar-se a inverter a questão da referência ao real, sem, contudo, enfrentá-la de outra perspectiva ou deslocar o seu centro de discussão. Seria, portanto, insistir numa concepção eminentemente negativa do documentário.

Bibliografia

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 1993.

METZ, Christian. A Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1977.

NICHOLS, Bill. La Representatión de la Realidad. Barcelona: Paidós, 1997.

ROSENTHAL, Alan (org). New Challenges for Documentary. Los Angeles: University of California Press, 1988.


(1)
Doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ/ 2005. Professor do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá.

(2) No original, “a fiction (un)like any other”.No original, “a fiction (un)like any other”.

(3) Tradução própria.



.