O
ser humano é denso, mas não impenetrável. Nenhuma
contradição que não se possa esgarçar com
um olhar curioso, delicado e amoroso.
Nenhum mistério
que não se revele no gesto mais disfarçado, ante um olhar
atento e interessado.
Ninguém é
tão insignificante ou triste ou abandonado que não tenha
um sonho, uma meta ou uma tarefa.
Os caminhos e os
sentidos dessa consistência humana, no entanto, não se
apresentam a uma mirada apressada ou pré-concebida.
A riqueza humana
só se revela numa delicada construção de olhares
e silêncios. Num mosaico que, peça por peça, cor
por cor, traça os mapas de dores e sonhos, de amores e solidões
e fé e persistência. De renúncia e generosidade.
De companheirismo e aceitação.
Nenhuma densidade
humana, no entanto, está descolada da paisagem física
e social que define seus contornos. Mesmo para ser só é
preciso que se perceba de quê se está isolado e deslocado.
Por outro lado são
as densidades humanas que constroem a consistência histórica
de um povo e de um país. E a riqueza se apresenta muito mais
pela via das contradições que das unanimidades e convergências.
O uníssono
de uma multidão de mãos balançando a mesma bandeirinha
pode ser mais o tédio pátrio que a exaltação.
Mas a corrente inquebrável de vigília solitária
diante do símbolo em metal e calma, tece a bandeira da crença
nos valores da paz e do amor, bandeira de uma pátria das almas,
mais que dos territórios ou ideologias.
Como é possível
que um cineasta documente em silêncio a vida e os sonhos de pessoas,
com olhares entre tristes e vazios?
Como é possível
que de ambientes carcomidos e precários, de fragmentos de gestos
e buscas, de enquadramentos estáticos e parciais, emerjam carinho,
dignidade e sonhos?
Como, num mundo
dominado pelo estrondo da guerra e da paz, onde se faz alarde de notícias
de bodas ou de morte, possa o cineasta fazer uma homenagem tão
silenciosa e grandiosa ao seu povo e a sua pátria?
Como pode caber
toda a humanidade que trabalha, acolhe, vela, ousa, cria e tem esperança
e sonhos, em tão poucos quarteirões da tão pequena
Havana, da tão pequena Cuba?
Que mistério
da raça humana ficou guardado nessa ilha anacrônica e eterna,
nesse museu dos sonhos de algumas gerações, que pode estar
a beira do estilhaçamento?
A silenciosa e eloqüente
Suite, executada em imagens e silêncios por Fernando Perez, evidencia
que naquela pequena pátria de poucas ruas pode estar guardado
o patrimônio do melhor do homem.
Cada sonho sonhado
e buscado, diligentemente em cada dia, nunca é motivo ou justificativa
para a falta de solidariedade, compreensão e acolhimento. A realização
de cada sonho individual está enquadrada pela razão da
busca do bem de outro – filho, mãe, companheiro, amigo.
De que paisagem
social ainda pode emergir essa grandeza humana, nesse alarido de buscas
desenfreadas em que se têm transformado as "grandes cidades"
de gentes do planeta?
Que bom que ainda
temos sentidos para fruir e entender essa Suite de Fernando!
S. Paulo - fev/mar
2006
|