Suite Habana
por Marília Franco


O ser humano é denso, mas não impenetrável. Nenhuma contradição que não se possa esgarçar com um olhar curioso, delicado e amoroso.

Nenhum mistério que não se revele no gesto mais disfarçado, ante um olhar atento e interessado.

Ninguém é tão insignificante ou triste ou abandonado que não tenha um sonho, uma meta ou uma tarefa.

Os caminhos e os sentidos dessa consistência humana, no entanto, não se apresentam a uma mirada apressada ou pré-concebida.

A riqueza humana só se revela numa delicada construção de olhares e silêncios. Num mosaico que, peça por peça, cor por cor, traça os mapas de dores e sonhos, de amores e solidões e fé e persistência. De renúncia e generosidade. De companheirismo e aceitação.

Nenhuma densidade humana, no entanto, está descolada da paisagem física e social que define seus contornos. Mesmo para ser só é preciso que se perceba de quê se está isolado e deslocado.

Por outro lado são as densidades humanas que constroem a consistência histórica de um povo e de um país. E a riqueza se apresenta muito mais pela via das contradições que das unanimidades e convergências.

O uníssono de uma multidão de mãos balançando a mesma bandeirinha pode ser mais o tédio pátrio que a exaltação. Mas a corrente inquebrável de vigília solitária diante do símbolo em metal e calma, tece a bandeira da crença nos valores da paz e do amor, bandeira de uma pátria das almas, mais que dos territórios ou ideologias.

Como é possível que um cineasta documente em silêncio a vida e os sonhos de pessoas, com olhares entre tristes e vazios?

Como é possível que de ambientes carcomidos e precários, de fragmentos de gestos e buscas, de enquadramentos estáticos e parciais, emerjam carinho, dignidade e sonhos?

Como, num mundo dominado pelo estrondo da guerra e da paz, onde se faz alarde de notícias de bodas ou de morte, possa o cineasta fazer uma homenagem tão silenciosa e grandiosa ao seu povo e a sua pátria?

Como pode caber toda a humanidade que trabalha, acolhe, vela, ousa, cria e tem esperança e sonhos, em tão poucos quarteirões da tão pequena Havana, da tão pequena Cuba?

Que mistério da raça humana ficou guardado nessa ilha anacrônica e eterna, nesse museu dos sonhos de algumas gerações, que pode estar a beira do estilhaçamento?

A silenciosa e eloqüente Suite, executada em imagens e silêncios por Fernando Perez, evidencia que naquela pequena pátria de poucas ruas pode estar guardado o patrimônio do melhor do homem.

Cada sonho sonhado e buscado, diligentemente em cada dia, nunca é motivo ou justificativa para a falta de solidariedade, compreensão e acolhimento. A realização de cada sonho individual está enquadrada pela razão da busca do bem de outro – filho, mãe, companheiro, amigo.

De que paisagem social ainda pode emergir essa grandeza humana, nesse alarido de buscas desenfreadas em que se têm transformado as "grandes cidades" de gentes do planeta?

Que bom que ainda temos sentidos para fruir e entender essa Suite de Fernando!

S. Paulo - fev/mar 2006