A experiência da realidade
Estudo biofilmográfico do
documentarista paraibano Vladimir Carvalho


por Ricardo Guanabara Leal

Esta comunicação informa sobre projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido junto ao Programa de Mestrado em Cinema , Rádio e Televisão, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com orientação da Profª. Drª. Marília Franco. (Encontro do Centro dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro - 28º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro)

 



Desde "Romeiros da Guia" à "Conterrâneos Velhos de Guerra", Vladimir Carvalho sempre imprimiu cores fortes em suas obras, trabalhadas sem manipulações técnicas, que impressionam pela amostragem das possibilidades sociológicas e estéticas do documentário. Dialéticos, seus documentários desenredam o real das aparências. Vladimir insiste constantemente sobre o intercâmbio realidade-ficção, encarando o documentário como uma prática cinematográfica que deve sempre fugir ao naturalismo, como instrumento de investigação crítica da realidade que não lhe retira as possibilidades poéticas e criativas, ou para dizer como Gramsci, "Nenhuma obra de arte pode deixar de ter conteúdo, isto é, de ser ligada a um mundo poético".

Como diz o cine-documentarista, "trata-se de um cinema que trabalha direto com a realidade, que se inspira na tradição ingênua de Lumiére e na deliberada ruptura de Dziga Vertov com as formas narrativas do cinema sem atores, sem roteiros rígidos, empenhado em anotar a realidade com as novas técnicas, especialmente no que se refere à captação do som direto e ambiente, que permite aos filmes de hoje seguir de perto a vida e os acontecimentos sem jamais recorrer aos truques dos estúdios e aos artifícios que tentam recriar a vida em segunda mão. Esteticamente, como busco sempre a contradição, o conflito de qualquer assunto filmado, acho que a manifestação formal das roturas que procuro filmar, em função de que forma e conteúdo são inseparáveis, vem junto irresistivelmente à imagem, traduz nitidamente as imagens, dispensam-se rebuscamentos. Acho que num flash de dez minutos que se faz sobre um valor cultural, um dado sociológico, está implícito um conflito de toda uma conjuntura. Pela parte mostrada se chega ao todo abrangente".

Laboriosamente dedicado à criação de uma obra calcada na observação e análise, especialmente do universo nordestino, sem retórica ou folclorismo, Vladimir Carvalho apreende em imagens ásperas e inquietadoras a cultura e o caráter popular. Investigador crítico e poético de "odisséias malogradas" é solidário como suas personagens, sem ser complacente, empenhando-se em contundentes denúncias "à perda estúpida da nossa identidade". Em sua recusa à alienação cultural, procura ser regional sem receio de ser considerado provinciano. Desta maneira pode se libertar do complexo colonial e assumir a posição autêntica de procurar o seu próprio caminho, privilegiando o seu próprio contexto como fonte de inspiração e aprendizado, definindo o mundo a partir de sua própria experiência.

A permanente preocupação em pesquisar, no campo do documentário, as possibilidades do cinema em interpretar e difundir qualquer tipo de fenômeno que fosse objeto de estudos, onde a linguagem não se fixe unicamente na documentação pura e simples, mas deveria se empenhar numa descoberta de meios, uma forma nova de ver os fenômenos, num "interligere", uma busca do "moment revelateur", o cinema como testemunha e ativo interprete - tudo isto está presente em cada fotograma dos filmes de Vladimir Carvalho, que conseguiu realizar inspirados documentários que bem se inscreveriam como testemunhos sobre a estrutura social injusta que pesa sobre o nordeste e os nordestinos, buscam a apreensão do real pela fidelidade a este real. Por pretender ser revelador, por buscar as ligações da unidade com a multiplicidade, o cinema documental não está impedido de constituir-se em arte, como bem o demonstra o trabalho de Vladimir Carvalho.

O autor, ao mostrar um simples fato social, rompe sua aparência e o flagra em sua intimidade revelando-lhe a teia de ações a que está preso, um cinema feito para pegar o espectador naquele instante em que ele se encontra envolvido com o fragmento da vida seguido de perto pela câmara. Trata-se de imagens que lembram a afirmação feita pelo cineasta polonês Andrzej Wajda, ao apresentar seu "O Homem de Ferro" , sobre a necessidade de uma imagem se mostrar aos olhos do espectador no momento exato, porque, diferentemente do que se passa com a página de um livro, a imagem de um filme precisa ser vista bem naquele instante em que tem mais força que qualquer outra coisa. A narrativa de Vladimir Carvalho se caracteriza por imprimir tensão às imagens capturadas por sua câmera e deixar inquieto o espectador colocado à elas. O documentário de Vladimir Carvalho procura inverter a proposição geral do cinema através da sensação do desconforto de uma fotografia rude. Esta é definitivamente uma questão relevante na analise de sua obra no aspecto forma/conteúdo, se servir de uma imagem indefinida, de contraste desagradável aos olhos, para levar o espectador a se interessar em primeiro lugar pela realidade a que ela se refere, e daí interagir a obra com o espectador. Um esforço para tornar a forma tão ou mais aparente que o conteúdo. É da contraposição e dos desencontros que ele retira o fio que tece seus argumentos e dá sentido e vida à sua obra, ultrapassando a mera descrição de determinadas situações.

"Jamais sairei do documentário. Nunca trabalhei, nem mesmo na Universidade, com os meios mais modernos de que o cinema dispõe hoje. Os meus documentários têm muita pesquisa, de vários anos, porque inclusive trabalho sempre em assuntos, não em roteiros, coleto dados anos a fio, vou armando o bote, repassando as coisas, e às vezes nem filmo, por falta de condições materiais". Esta declaração é reveladora do seu compromisso com seu método e sua obra, sua proposta de documentário social, "seguindo a grande trajetória da gente humilde no seu tropismo para a felicidade a que todos têm direito".

Embora a relevância da forma enquanto expressão sintética e simbólica do conteúdo fica perfeitamente demarcado o verdadeiro espaço desta em seu trabalho quando afirma que "devemos perseguir a contradição, com o mínimo de intuição, para poder realizar um filme. Do contrário, qualquer trabalho torna-se contemplativo, parasitário, formalista. Este irracionalismo do "belo" não interessa enquanto busca para qualquer um que se preze como homem ou como artista. Deve-se oferecer pelo menos um dado contundente da realidade, o que nem sempre acontece, mesmo sob as mais benévolas intenções. O importante é saber que fora da observação dos conflitos, mesmo quando estes são escamoteados num dado contexto, não existe uma práxis para a arte como forma de conhecimento, o criador não se sustenta nas pernas nem sendo o mais brilhante. Aliás quanto mais escondido o antagonismo maior deveria ser a gana para arrancá-lo do limbo e trazê-lo à luz, resolvê-lo".

Em relação ao questionamento da impossibilidade da "cultura da carência" se projetar tecnicamente e esteticamente, Vladimir Carvalho reafirma a identidade de seu trabalho: "O País de São Saruê é quase uma repetição da proposta de Aruanda porque a dependência, a carência, são as mesmas, talvez até pioradas, e a precariedade foi uma contingência histórica que deu em contrapartida uma proposta estética. Nesses anos todos, sempre que a classe dominante tentou jogadas de salvação do Nordeste, só fez piorar a situação de pobreza na região, fortificando, por outro lado, a classe dominante. Agora, eu acredito que só a história e a própria dinâmica da sociedade brasileira vai dar margem a que trabalhos como "O País de São Saruê" não sejam mais filmes de exceções, mas até um padrão de qualidade. Porque na verdade a nossa estética é a que nós temos, a que nós possuímos. Então nós não temos Bergman, os grandes cânones do pensamento cinematográfico. Mas quem falou que eles são padrões? Temos de engendrar os nossos. Quando "Aruanda" propõe uma luz nordestina no cinema, estamos fazendo estética também. Uma estética verdadeira porque preenche de conteúdo uma resposta a uma realidade social carente".

Denoto a capacidade de observação do cineasta, definindo o eixo de sua obra: o conflito - mais especificamente, a luta de classes, em todas as suas dimensões: econômica, política e cultural; enfocando as partes para identificar um todo complexo, do sertão do rio do peixe para o país, caracterizando estruturas sociais em transcrição, desvelando um sistema de representações sócio-culturais que ultrapassam a temática das imagens filmadas. Um trabalho cinematográfico comprometido com o conhecimento da realidade e com a necessidade de estabelecer a identidade cultural brasileira, o cinema documental como expressão da nossa realidade. O conflito é uma referência fundamental na investigação e análise da obra de Vladimir Carvalho, na medida em que sua obra, um cinema dialético, subversivo, transformador, é construída de modo a torná-lo explícito sem perder o gesto espontâneo que vai sendo aos poucos aprofundado através dos depoimentos e de planos-detalhe que pontuam a narrativa. A realidade, as contradições, como fonte permanente de dramaticidade e história; arrancando dos fatos cotidianos seu conteúdo poético e a sua expressão estética.


publicado em 13/08/01

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