Barra 68 sem perder a ternura

Entrevista com Vladimir Carvalho
realizada em São Paulo (03/11/01)



"O cinema brasileiro agoniza mas não morre!!!"




Frase repetida por Vladimir Carvalho durante o "olé cinematográfico",
quando divulgava seu novo filme, "Barra 68", com uma enorme
faixa em um cruzamento de trânsito em Brasília.


Entrevista por

Marília Franco

Pesquisa
Ricardo Guanabara

Câmara
Mailin Milanes

Captação de som e transcrição

Claudia Pucci


RG: Nome, data e local de nascimento, formação, profissão

- Nasci na Paraíba num lugar chamado Itabaiana, na Paraíba, em 31 de janeiro de1935, o ano da intentona. Eu sou bacharel em Filosofia, embora não tenha muito a ver. Não sou filósofo, pensador, fico muito mais à mercê da emoção do que da razão. Minha profissão é cineasta, qualificado como documentarista.

MF: Por que documentário?

- Porque eu vejo interesse na realidade, principalmente na realidade social - porque realidade é algo que merece uma definição filosófica mais ampla - e no documentário que se ocupe dessa realidade social (e não o documentário científico, didático, antropológico, etnográfico, etc) Mas a realidade social a que eu me refiro é essa que tem a relação do homem com a natureza (no sentido mais amplo, em relação com o mundo externo e interno, com você mesmo), a relação com os outros homens em sociedade, a relação com os outros, o embate entre as classes sociais, as relações de produção que estabelece que um homem é empregado e outro é patrão, aquele que detém os meios de produção, o capital, isso tudo para mim é realidade social. E muito mais do que isso, é a relação do homem com o seu imaginário, seus símbolos, e em que resulta a arte de forma geral. O que é a arte? O resultado da relação entre o homem e o mundo. E a religião, que não deixa de ser um capítulo, talvez o mais significativo do imaginário humano. Agora mesmo o cinema nacional produziu uma série de filmes sobre o tema, isso é muito importante, inclusive porque ela espelha bastante a realidade social do Brasil. Através da religião, você faz um filme sobre a religião e aparece toda a problemática brasileira por ali.

MF: Você começou a sua vida de cineasta documentarista em Aruanda, com Linduarte Noronha. Que marca esse começo teve na sua vida?

- Enorme, definitivo, é o portal. Para mim essa foi a porta de entrada para quase tudo. Até aí, eu era um jovem sem profissão, não sabia o que ia fazer da vida, estava prestando vestibular como os jovens da minha idade. Aruanda demarcou, foi um divisor de águas na minha vida. Aruanda veio em socorro de uma coisa que já estava se configurando para mim como uma tendência, porque eu era, como todo mundo, consumidor do filme de ficção, o cinema de Hollywood, o musical, o faroeste, o drama americano, filme de gângster. Eu gostava muito também do Neorealismo, mesmo que a informação desse cinema chegasse de forma um pouco retardatária. O que acontece? Eu achava que cinema era filme de ficção. Até que um dia, baixou no Recife um crítico carioca chamado Jonas com uma série de filmes clássicos, antológicos do cinema mundial, entre eles filmes russos como Outubro, do Eisenstein, filmes de Marcel Carné, dos ingleses, enfim, dez filmes, que ele exibia e discutia. E junto, ele trouxe um longa-metragem, eu ouvia falar vagamente em Flaherty, mas não sabia o que era. E de repente me aparece "O Homem de Aran". Aquilo foi como uma revelação para mim, foi algo definidor. Por quê? Era um filme que não tinha atores, tais como a gente concebe, enredo dramático pré-estabelecido, nada do que a gente está acostumado a receber em filme de ficção. E era lindíssimo, um filme com mais de uma hora, (portanto com a mesma duração de um filme de ficção) e prendia a atenção só com aquele idílio, a relação do homem com a natureza. Eram pescadores de baleia em um barquinho que parecia uma casquinha de noz em um mar superagitado, aquilo era o apresamento da baleia com o arpão. Acho que isso nem existia mais naquela época, pode ter sido montado para fazer o filme. E aquilo me tomou, me mobilizou de tal forma que eu disse pra mim mesmo: "Se um dia eu fizer cinema, eu quero fazer esse cinema aí. É um documentário que eu quero fazer, com essas características. Não um espetáculo montado num gabinete, escrevendo um roteiro de ficção, e sim uma leitura da própria realidade." Eu nunca mais esqueci disso, depois o Linduarte me chamou para fazer o roteiro do Aruanda, fui assistente de direção, depois fiz meus próprios filmes e agora estou no vigésimo, quarenta anos depois.

Se você quiser que eu fale um pouco de Aruanda, eu queria dizer que a gente tinha, na Paraíba, uma relação com o cinema que era uma relação esteticista, vamos dizer assim. A gente fazia parte de cineclube, uma instituição que hoje está meio sumida do cenário mas era muito forte naquela época. A gente frequentava cineclube, discutia os filmes, mas era uma discussão meio "sexo dos anjos". Naquela época, discutia-se muito o "específico filme". O que é o cinema em si, a montagem, o fotografia? Discutia-se o específico, ficava-se horas, íamos para casa, escrevíamos no jornal essa coisa do específico filme, era como uma idéia fixa. E de certa forma isso foi saturando uma moçada que tinha uma ânsia de filmar. Com essa coisa do Aruanda, a gente fez o projeto. Não sabíamos como e por onde começar, e o que fizemos? Alguém comprou em uma livraria o Tratado da Realização Cinematográfica de León Kulechóv, estudamos aquilo e fizemos um roteiro de ferro, com tudo previsto. Uma agulha que caísse no chão estava prevista. Estudamos aquilo e sintetizamos a pesquisa do Aruanda em um roteiro de início, meio e fim, e depois passamos a atuar de forma mais objetiva. Saímos procurando alguém que pudesse pagar a conta, pois não tínhamos as facilidades de patrocínio de empresas de hoje. De certa forma, o cinema brasileiro hoje se respalda nisso. Naquele tempo não, era a pão e água. E isso se liga a São Paulo. Passou pela Paraíba em 1958 Pascoal Carlos Magno, um líder da cultura brasileira que promovia festivais de teatro universitário no Brasil inteiro. Nesse ano, ele fez o Festival em Santos, foi na Paraíba e nos acercamos dele, pois eu tinha um grupo de teatro. Com isso a gente veio a São Paulo porque tínhamos lido em uma revista cultural que um banco (Banespa) tinha uma carteira que financiava o cinema. A gente enlouqueceu. Então viemos eu e o Linduarte para SP fazer a proposta. Não conseguimos fazer isso em um dia só que ficamos em SP, e tínhamos a passagem de volta já marcada no Rio de Janeiro (Formos de avião até o RJ e de lá a SP viemos de trem) Mas isso foi o impulso que a gente queria. No Rio, fomos ao Instituto Nacional de Cinema Educativo e conseguimos o patrocínio. O mundo dá muitas voltas. Agora vocês estão criando esse grupo... É uma idéia muito feliz vocês estarem batizando o grupo com esse nome. São 41 anos dessa história...

MF: Vladimir, nesses 40 anos de cinema, você trabalhou alguma vez por encomenda?

- Não, por princípio. Eu trabalharia quebrando pedra, como gari, mas até agora não precisou que eu me vendesse, de certa forma, apesar de ser meio forte essa expressão. Eu sempre senti nas minhas próprias entranhas, nas minhas vísceras, a necessidade de fazer um filme, e só fiz assim. Se não me envolve, se não me comove, eu não filmo. Como eu escolhi esse último filme que eu fiz, o Barra 68, é o vigésimo filme e o quinto longa. Nunca fiz esse tipo de concessão, talvez tenha feito outras, e a vida é um desfilar de concessões, senão a gente não vive, mas eu nunca aceitei fazer um filme por encomenda, todos os filmes nasceram da necessidade irrelutável de fazer. E não era essa frescurinha da inspiração, Eu via que havia necessidade, depois via que aquilo podia ser útil. Eu sou um sertanejo, eu sou um, nordestino, então se tinha a questão fundiária no país, uma coisa que nunca se fez, a reforma agrária, se tinha gente sofrendo por causa disso, se o latifúndio era algo pernicioso na economia nordestina, e eu via, assistia e conhecia aquele meio, aquela realidade, era a minha obrigação, se eu me defini pelo documentário, de dar aquele recado. Chego em Brasília pra viver, para trabalhar e o que eu vejo? Descobri que durante a construção de Brasília, que foi feita na maioria por nordestinos, tinha acontecido um massacre de operários durante a construção. Então eu não escolhi, eu fui escolhido. Aquilo tinha que vir por minha via, eu tinha que dispor o meu instrumental de trabalho, a minha sensibilidade, para contar aquela história. Como em filmes que eu fiz assim, por acaso. . Quando eu estava fazendo "O País de São Saruê", o meu primeiro longa, eu fiz um curta-metragem que é como se fosse um filhote do outro. Eu tinha marcado uma filmagem em uma cidade do sertão, e saí muito cedo do hotelzinho onde estávamos para ir até essa cidade. Disse para o motorista que dirigia o jipe que queria ver um engenho de pau. Quando passamos perto, o motorista perguntou se eu queria conhecer, resolvemos ir. Quando cheguei lá, fiquei tão deslumbrado com o material que vi de cara: parecia que o filme estava antecipadamente na minha cabeça. Resolvi que não ia mais para a cidade, que ia ficar ali e fiz o filme em meio dia. O filme passou a envelhecer antes de mim e corria o risco de morrer antes de mim mas recentemente, por sorte, uma cópia foi parar na mão de Walter Salles, que acaba de filmar "Abril Despedaçado". Ele estava fazendo uma pesquisa sobre o Nordeste, pois lá que se ambientava o filme. Entre várias coisas, viu meu filme que chama "A Bolandeira" e gostou muito.. . Disse: Ë isso aqui o cenário do meu filme é isso aqui. Onde tem isso? Mandou que Walter, meu irmão, fosse até lá procurar o lugar, que nessas alturas devia estar em ruínas. Era um engenho de madeira puxado por bois. Ele foi e ficou uns 20 dias procurando isso. De vez em quando, ele me ligava do celular perguntando; "Eu estou aqui nessa estrada, você lembra que tem uma fazendo de um lado, uma árvore do outro, é para a direita ou pra esquerda? Ao cabo de uns 20 dias eu estou em casa e chega um pacote do correio e está lá, numa caixa de sedex, dois dentes da bolandeira. Eu quase tive uma síncope de emoção. E Walter, meu irmão, que é um capeta, ainda pôs lá dentro um trecho do poema que acompanha o filme: "Os dentes da bolandeira não têm da boca ao céu, deles nem a bagaceira sabe as palavras de mel". Eu chorei. Então esse filme me trouxe essa alegria de ser recuperado já quase post mortem, e vai passar no Festival. de Brasília como obra recuperada.

MF: Tem dois tipos de fazer documental que se entrecruzam, na sua obra, particularmente. Essa oportunidade de momento que é A Bolandeira e aquele outro tipo de documentários em que você vai documentando acontecimentos sem ter ainda uma noção de como vão ser trabalhados cinematograficamente, mas que se tornam um registro único e insubstituível. A sua obra se entrecruza dessas duas posturas de documentário. Eu queria, então, que você me comentasse um pouco sobre como é ser um documentarista 24 horas por dia. O que é guardar material durante 20 anos e chegar no Conterrâneos Velhos de Guerra" e o que é você fazer um filme como "A Bolandeira", que você faz em meio dia? Como é esse estado de espírito documental que faz com que você veja a oportunidade no momento e a oportunidade no tempo?

- Você é e você está. Você tem sempre que estar atento e você não fala, é falado. Você tem sempre que, na sua escolha, ouvir, sentir, você tem que estar sempre na escuta. Por exemplo, para ilustrar isso que você me perguntou com tanta pertinência, eu fiz o Conterrâneos durante 19 anos, enquanto isso fazia outros filmes. Andando numa feira na periferia de Brasília, ouvi essa história (a matança de operários) e já fiquei antenado, passei a pautar a minha atividade em função daquilo. Enquanto fazia outros filmes (nunca de encomenda, mas que já estavam na minha pauta para fazer) fui lentamente armazenando dados, filmes, filmava e não sabia exatamente que filme estava fazendo, era um filme sobre Brasília, se podia partir, quando falaram em matança de operários, daquele contingente que foi no Nordeste pra Brasília para construí-la. . A coisa mais avançada que aqueles homens tinham na mão era a enxada, e em Brasília se tornaram pedreiros. Começaram a descobrir uma tecnologia de construção que era o prumo, pôr a coisa na sua medida certa. Enquanto ele fazia a cidade, era feito pela cidade, e aquilo me mobilizou muito a dizer: Olha, esse povo vivia no Nordeste passando fome, hoje são operários da construção civil qualificados. A construção da cidadania se dá também por aí, pelo homem que está construindo e transformando o mundo. E ele vem de um nível em que ele quase e confundia com o animal. Como aquele conto em que o homem era obrigado a cumprir uma tarefa de escavar, limpar um terreno e não tem enxada, então cava com as próprias mãos e termina dilacerado, sangrando. Quer dizer, é um nível de animal. Mas no entanto ele se qualificou, e quando teve a história das mortes, eles tiveram a astúcia de formar o primeiro Sindicato da Construção Civil. Foi preciso uma experiência sangrenta, cruenta, pagando com a morte de muitos eles para que eles avançassem a um nível maior. Isso numa escala de cidadania é extraordinário. Eu levei 19 anos por que? Havia ditadura, havia o medo nas pessoas de que, se elas contassem aquela história pavorosa, podiam ser presas, torturadas, maltratadas, porque quando cheguei em Brasília era justamente a ditadura de Médici, a mais brutal de todas. Por exemplo, se eu pegasse um táxi e perguntasse ao taxista sobre a matança, ele me contava com detalhes, minúcias. Mas quando eu voltava com a câmera, a pessoa não queria falar. Então eu tive que esperar, e enquanto isso ia acumulando dados, filmando, e fazendo outros filmes que tinha que fazer. Até que em 1988, 1989 eu resolvi fechar, porque já estava com mais de 50 horas de material. Então eu fechei o filme com uma sorte danada, porque como houve a redemocratização, essa coisa não tinha mais sentido. As pessoas começaram a falar e apontar o que tinha acontecido, que foi realmente um massacre, e eram pessoas que participaram, que tinham visto os cadáveres e tudo. Mas a diferença que faz é essa. Uma coisa é você estar 24 horas no ar como documentarista e às vezes ser abordado pela sorte de tentar um caminho que vai dar em uma coisa maravilhosa como é "A Bolandeira".


MF: Nesses entrecruzamentos dos caminhos documentais, você trabalha com vários tipos de pessoas, o ser humano é o seu universo principal e a história que ele constrói. Você documenta pessoas anônimas e personalidades. Das pessoas anônimas, você conquista a história, que era anônima até aquele momento. Das pessoas conhecidas, você colhe, muitas vezes, contradições. Como é isso?

- As vezes em que eu tive que eleger um figura com biografia foi exatamente porque o indivíduo tem um papel na História, e ele representava exatamente aquilo que era um movimento social, quer dizer, um movimento da sociedade. Ele traduzia, muitas vezes até inconscientemente, o papel de avanço da sociedade ou até de recuo, se fosse o caso. Ele representava momentos da vida social e política. Eu tentava extrair dele algo que fosse correlato à sua história de vida e a história que fica de fundo, que é sempre de fundo e um fundo que sempre me preocupou. Como, por exemplo, o cenário do Nordeste, que é basicamente a coisa que eu mais trabalhei, agora estou fazendo um filme que tem a ver com Brasília, mas que é uma herança disso tudo. Então o que está atrás, na verdade, e que você pode trazer para frente muitas vezes (há um movimento de idas e vindas nesses meus filmes) é esse cenário que pode até ofuscar a figura principal, a figura biográfica que eu tenha elegido. Mas elas estão inter-relacionadas. A seca, por exemplo, quando eu filmei o ministro José Américo de Almeida, que foi senador, que foi o homem que fez a revolução de 1930, que foi considerado o vice-rei da revolução de 30 no Nordeste, que já tinha feito uma revolução literária escrevendo "A Bagaceira", que foi uma revolução na literatura brasileira, ele representava o que? Ele remetia ao drama da seca, o drama do latifúndio e o drama do homem nordestino sobre o latifúndio, explorado pelo latifúndio e a ausência da reforma agrária. José Américo foi o autor da chamada granja-cidade no Brasil. Pensava-se que a granja-cidade ia resolver o problema da fome, da miséria, da seca, especialmente da seca. Foi um ledo engano, enriqueceu ainda mais o latifúndio porque terras imensas foram beneficiadas com reservatórios de água também imensos. Eram verdadeiros mares, quem conhece o Nordeste, quem conhece o Açude Aurores, o Complexo da Mãe D'água, todos esses são verdadeiros mares interiores no Nordeste, que continua seco! Enriqueceram o latifúndio mais um pouco, por que? Por que a terra não foi desapropriada. E como a terra não foi desapropriada, o homem continuou pobre, mais pobre porque o latifúndio continuou mais rico com esse benefício. Então o Zé Américo tinha tudo a ver com isso. Tinha muita gente que perguntava na época: "Por que você vai falar com o Zé Américo, um homem da UDN?" Eu queira exatamente isso: Mostrar como a classe dominante às vezes se movimenta em determinada direção e traz, em vez de benefícios, malefícios à sociedade. Então isso foi uma coisa que eu trabalhei muito. Como em "Conterrâneos Velhos de Guerra" - você tinha a grande epopéia de Brasília com um maravilhoso condutor, um líder como Juscelino. E a identificação com Juscelino é uma coisa que não pára, cada dia mais, e agora vai comemorar 100 anos de vida, de nascimento, há uma espécie de endeusamento, sei lá. Então precisava que se mostrasse que Brasília foi uma obra como as pirâmides do Egito, tinhas escravos trabalhando para fazer grande a cidade do Faraó JK. Então isso que é uma troca de planos, de cenários que vêm para cá e massa que vai para lá.

Marília Franco: Você é um documentarista e "está" outras coisas para sobreviver...

- Como professor, por exemplo...

MF: Isso remete a uma questão que é a questão do mercado. Para ser um documentarista e para ser só um documentarista você precisa viver disso. E não há mercado para o documentário. Como é isso?

- Ninguém me obrigou a ser documentarista, segui um desejo interior muito forte e me sinto supergratificado por estar trabalhando com isso há 40 anos. Agora, como ninguém me obrigou, e eu tenho que arcar sartrianamente, não é? É uma opção existencial fazer documentários... Agora, é quase que um sacerdócio, quase não, é um sacerdócio, você faz quase um voto de pobreza. Uma vez, dando uma entrevista a uma televisão me ocorreu dizer "Eu queria propor São Francisco de Assis como patrono dos documentaristas....." Porque nós não temos possibilidades de chegar, somos afilhados, órfãos, um simples adendo do cinema brasileiro. Não temos espaço suficiente para prosperar como realização. Vivemos à mercê dessa condição. Ultimamente, podemos dizer que estamos na idade do ouro do documentário brasileiro. Mas isso não é porque tem bilheteria, é porque por uma injunção qualquer, há um número enorme de excelentes documentários sendo feitos, que transitam nos festivais internacionais, que ganham prêmios, fantásticos, maravilhosos criadores do documentário que estão aí e não há, ainda, a consciência por parte de poderes públicos, da sociedade enquanto investidores, enquanto empresários, da importância do documentário. Então a gente enfrenta grandes dificuldades.

Agora mesmo estou lançando, está em fase de lançamento esse último filme que fiz, "Barra 68", feito mediante concursos, suando a camisa. Concurso como o Pólo de Cinema e Vídeo de Brasília, o Itaú Cultural e a Rio Filme, que finalizou o filme porque tem o direito de exibição. Então, foi dificílimo. Por exemplo, você faz o seu filme, um filme que toda a condição de transitar no mercado de longa-metragem, mas você não tem, por exemplo...O cinema repousa em um tripé, você produz, você tem que distribuir e exibir. Se chegar na distribuição e eles não aceitarem o seu filme, você não exibirá o seu filme nunca. E isso remete a várias outras questões, por exemplo, mídia. Como você tem uma mercadoria e faz essa mercadoria ser vista pelo público? Como você chega na mídia? Não há como, porque isso tem um custo, e um custo muito alto, e às vezes você tem que ter estratégias e muita imaginação. No caso do "Barra 68", se eu não saísse de Brasília com pelo menos 3 ou 4 semanas de exibição, seria um fracasso! Se um filme feito em Brasília, com gente de Brasília, não despertasse o interesse de pessoas que estão no seu habitat natural, seria terrível. O que eu faria? Não podia comprar mídia, anúncio de jornal, como colocar um filme na mídia? Em última análise, fiz uma faixa imensa e eu próprio, junto com meu produtor, fui para o lugar mais central de Brasília, a roda dentada de Brasília, que é onde ferve a cidade, que é a Rodoviária, que é no centro da cidade, o cruzamento do eixo monumental com o eixo rodoviário junto com o Conjunto Nacional. Tudo acontece ali, os comícios, shows, tudo. Toda a população transita naquele cruzamento, é um palco natural. Que eu fiz? Fui com a minha faixa, uma faixa enorme, que tinha o nome do filme, o cinema onde estava estreando e um apelo assim: "Saiba por que o ano de 68 não terminou". Fui lá com o produtor do filme e nós ficávamos fazendo o quê? O que eu chamei de um "Olé cinematográfico". A gente ficava no sinal dos carros, quando eles freavam, nós vínhamos com a faixa na frente dos carros, esperávamos o sinal abrir e tirávamos a faixa, como se fosse uma tourada. Ficamos nessa situação durante 3 dias. No terceiro dia, baixaram Globo, Bandeirantes, SBT, enfim, a imprensa, que veio nos entrevistar. E de repente, aquilo passou para a mídia e foi uma coisa que resultou positivo porque o filme ficou 40 dias em cartaz por conta disso. Mas é preciso muita saúde, é preciso que você seja um pouco louco, por mais tímido e titubiante que seja, porque de repente você vira uma pessoa perigosa, subversiva, porque você vai para o meio da rua enlouquecido... E faz isso porque precisa fazer.

MF: Vladimir, você trabalha muito com imagens de arquivo, não só os materiais que você mesmo produz e vai arquivando como outras imagens que você coleta e consegue depois trabalhar um documentário em torno dessas imagens, que é o Barra 68. Quando ele foi lançado aqui, o Hermano (personagem do filme) fez um comentário interessante em relação ao papel daquela imagem que foi coletada naquela época, o papel negativo que ela poderia ter se caísse em mãos impróprias, e ele até comentou que eles tinham revelado e copiado no fundo do quintal de casa porque não podiam levá-la ao laboratório, de medo que no laboratório aquela imagem fosse extraviada e caísse nas mãos da polícia, e tal. Pra um documentarista essa é uma situação bastante complicada na medida em que ele precisa estar na cena gravando, porque é importante historicamente ter aquele registro, mas aquilo pode, em um determinado momento, virar contra o feiticeiro. Então, eu gostaria que você comentasse um pouco sobre esse papel da imagem de arquivo, que para existir arquivo, é preciso que haja um zelo sobre o material, e esse zelo não está na nossa cultura de preservação. E a outra coisa que é esse perigo que o documentarista corre de estar na cena no crime , assim como o perigo que correm as pessoas que ele está registrando, que podem ser pegas por causa daquele registro. Então mais uma vez é uma encruzilhada em que o documentarista vive.

- É... realmente eu tenho sido às vezes muito feliz por encontrar materiais que estavam aí no limbo, praticamente, que foi o caso do "Barra 68", que eu recebi como um presente dos alunos. Quando eu fui fazer o "Barra 68", eu tinha vivido no Rio, trabalhando na década de 70 como jornalista e tinha feito a cobertura do movimento estudantil, da política. Entrevistei várias vezes o Vladimir Palmeira, o Franco Martins que hoje está na Globo como comentarista político, o Jean Marque e tudo o mais. Cobri a passeata dos Cem Mil como repórter, mas eu não sabia exatamente o que tinha acontecido em Brasília, não conhecia. Em 70, portanto, dois anos depois de 68, eu fui viver em Brasília, fui fazer uma experiência profissional em Brasília e descobri, na universidade, que em um campo de basquete estiveram detidos cerca de 500 estudantes, presos, durante a repressão, quando o exército entrou na universidade em 68. Eu tomei um pouco de susto mas, poxa, é claro, isso aconteceu como aconteceu em BH, como aconteceu em Porto Alegre, em Recife, e aí eu corri atrás dessa coisa. Para sorte minha e essa coisa do arquivo, anos depois os alunos encontraram - porque o Hermano já tinha vindo viver em SP - um rolo de filme com essas imagens, as imagens da invasão da universidade por tropas militares. Me deram de presente aquilo com a confiança, eu como professor, como documentarista que já era, confiaram a mim a guarda desse material. Aí, depois, quando eu fiz em 95 uma enorme entrevista com o Darcy Ribeiro para um programa de TV, e eu vi que os dois materiais se atraíam, se acoplavam. Eram dois momentos que se adequavam um ao outro. Eu disse: "Está aqui um filme!". Aí, passei a procurar as pessoas que tinham vivido aquela experiência, que tinham 18, 19 anos em 68 e que hoje estão com mais de 50. Vivendo em Brasília, já conhecia muita gente que tinha passado por essa experiência, juntei todos, um por um, os levei aos locais, com o cuidado de vincular ao cenário de fundo do que tinha acontecido, e aí saiu o "Barra 68". Como em outros filmes, como no "Homem de Areia", que eu encontrei materiais que tinham sido feitos no RJ, no Nordeste, materiais antigos em preto e branco que eu incorporei ao filme. É uma coisa de muita sorte quando você pode fazer isso. Para o cinema, antes de mais nada, a condição essencial é que tenha uma imagem em movimento, porque se você fica só com fotos e documentos e mais nada, se você não tiver um expediente de muita criatividade, aquilo fica meio sem força, não é verdade?

Agora, quanto ao outro tema que você sugeriu, é muito difícil quando você está envolvido em uma situação como essa, porque você tem que ser ético. A poesia do documentário é a verdade, agora, há um limite para essa verdade, há um limite para que você ... Jamais você deve manipular o real, jamais! Você lembrou muito bem: o material de arquivo que os estudantes me entregaram, se fosse parar em outras mãos, poderia servir, entre outras coisas, para identificar pessoas que não podiam aparecer naquele momento. "Olha esse fulano aí estava no tal local", aí prenderiam ele, e ele ia sofrer. Como o mesmo material poderia se inserir, podia ser motivo de um discurso outro em um filme, feito não pelas nossas mãos, mas pelas mãos de pessoas que tivessem outros propósitos, vamos dizer repressivos, e aí viraria outro filme. Tem um caso sério de americanos que filmaram as ligas camponesas no nordeste e que fizeram uma montagem, um filme que era exatamente o contrário, como se os camponeses fossem os baderneiros, fossem elementos que trouxessem a desordem, ameaça às instituições. Agora, especialmente e principalmente nesses momentos, você tem que ter uma espécie de espírito de renúncia para abdicar do melhor filme desde que você não ponha em risco a vida, a reputação das pessoas. Você não pode chegar e entregar! Felizmente, eu pude usar esse material do "Barra 68" porque o cenário é outro, os atores são outros, enfim, estamos vivendo numa...numa democracia, por mais que a gente critique, por mais que seja realmente falível em muitos aspectos, a gente está vivendo em democracia e eu pude mostrar esse material com aquelas pessoas que estavam vivendo naquela época sem perigo, é claro.

MF: A última pergunta. Quando a gente estava assistindo ao Barra 68, depois teve um debate e eu comentei com você que o Barra 68 tira um monte de fantasmas do armário em relação ao trato com as Universidades brasileiras, o filme não diz nada e diz tudo...

- É, tem até o Ministro da Educação...

MF: É um filme sobre a memória de um evento de 30 anos atrás, você traz as pessoas que viveram, você dá a veracidade do relato delas com as imagens da época, e no entanto a gente vê o filme e a gente relê a história de hoje a partir daquele filme. Como é essa repercussão?

- Olha, é uma coisa que eu tenho conversado muito durante o trajeto do filme, em Universidades, durante debates, em vários espaços e ambientes. Eu realmente sinto por parte do estudante, do jovem de hoje, uma curiosidade que me surpreende, porque antes de fazer o filme ouvia muito o comentário que os estudantes são hedonistas, são instrumento da sociedade de consumo, só pensam em consumir, levar uma vida boa, são individualistas, enfim, eu vejo um interesse deles a discutir e a conversar sobre esse filme, não o filme em si, muitas vezes, mas o que ele representa, a curiosidade pelo que aconteceu aos que tinham a idade deles hoje e enfrentaram essa situação. De fato, há um certo romantismo, não vamos dizer que todos estivessem no mesmo caminho. Mas naquela época a gente tinha uma meta, um alvo. Aqueles que não estavam engajados, aqueles que politicamente viravam o nariz para aquilo eram malvistos, porque todos nós éramos capazes de nos doar generosamente, até a nossa vida, para melhorar o Brasil, para melhorar o mundo, para transformar o mundo. Hoje é outro cenário, são outros atores, vivemos um mundo mais... conquistamos, com o sacrifício daqueles, uma certa democracia, mas a energia do estudante, do jovem, é a mesma, a energia criadora, transformadora do estudante é a mesma, o que nós não encontramos ainda é um projeto, porque aquele projeto nós tínhamos, que era o de transformar. De certa forma, pensávamos em socializar o Brasil. Os problemas continuam, os jovens estão aí, podemos definir isso como a luta pela liberdade, que é infinita. Ninguém se iluda, há sempre que ter uma luta. Essa coisa de que "a luta continua" é uma coisa verdadeiríssima, não é só slogan de passeata. É algo que tem que ser feito em uma país como o nosso ou em qualquer outro país nesse mundo, acho eu.

Ricardo Guanabara: Sobre essa questão da divulgação, você já havia feito isso em Homens de Areia, porque eu vi algumas fotos suas com cartazes no Centro Comercial de Brasília...

- Olha a memória do outro... Essa é uma história muito semelhante. Quando eu fiz o "Homem de Areia", um longa-metragem sobre a revolução de 30 e com base, partindo da biografia de um perfil de José Américo de Almeida - que foi um cara ligado à Revolução de 30, que foi senador, que foi candidato à presidência da República e quase ganha se tivesse eleição, mas o Getúlio deu o golpe em 37 e tirou ele. Enfim, era uma figura e eu fiz esse filme, o "Homem de Areia", lançado em 82, se não me falha a memória. Bom, você sabe que tem a grande festa do Oscar, né, e antes de começar o Oscar, já tem toda uma preparação, esse é o clima do Oscar, é a grande vitrine do cinema americano. No ano em que eu estou estreando em Brasília o "Homem de Areia", sai o vencedor do Oscar: "Ghandi". Todo ganhador do Oscar todo mundo quer ver e é superbadalado, superpromovido pela mídia. Eu me vi num mato sem cachorro, não sabia o que fazer, porque todos iam ao cinema ver o Ghandi, e o meu filme ficava lá em uma sala do conjunto Nacional às moscas. Não sabia o que fazer. Me bateu um desespero tal como esse de agora e peguei um cartaz do meu filme, que era muito bonito, peguei uma lâmina de isopor enorme, fiz um letreiro e preguei aqui na minha frente. Me imagine como um sanduíche. Na frente, coloquei um cartaz do meu filme, um cartaz bonito, produzido pela Embrafilme, e atrás o letreiro escrito "Este filme não ganhou o Oscar". E fui para a rodoviária e fiquei praticamente na entrada do Conjunto Nacional - por sinal, fui expulso de lá- e ficava com aquilo. As pessoas viam o letreiro e queriam saber que filme era aquele que não havia ganho o Oscar, davam uma volta e viam o cartaz. Com isso, eu consegui novamente, utilizando a força do cinema americano, fazer uma divulgação. Dali dois dias, com esse circo armado chegou a imprensa, as TV's e o filme conseguiu emplacar 3 semanas. É o filme que não ganhou o Oscar!

 



publicado em 16/02/02
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