Música de Câmara

por Filipe Salles


Chamamos "Música de Câmara" a qualquer formação instrumental que se limite a poucos executantes. O termo vem da acepção da palavra 'Câmara' ou 'Câmera' (da mesma origem que 'Câmera fotográfica') como sinônimo de 'sala', 'quarto', genericamente 'compartimento ou aposento de uma casa'. É, portanto, literalmente a música destinada a pequenos espaços, e por isso, a música escrita para pequenas formações.

Sua história
remonta a períodos imemoriais, já que era um tipo de música feito normalmente em casa, que por sua vez deram origem aos sarais, os madrigais e até as serenatas, que no Brasil vieram a constituir uma forma específica através do Choro.

A história da música registra principalmente a música executada nos palácios e residências nobres, mas que seguramente era praticada em ambiente caseiro desde há muito tempo, talvez até mesmo na antiguidade clássica.
Diversas formações caseiras ficaram famosas, principalmente no final do período barroco e início do classicismo. É digno de nota o exemplo clássico das peregrinações de amantes da música à casa de J. S. Bach, onde o abundante cultivo da música e o notório talento da família para esta arte, remontando de várias gerções anteriores, fizeram de seus famosos sarais verdadeiros concertos, sendo conhecidos por toda a Alemanha.

Durante o classicismo, foi informalmente composto o mais nobre quarteto de cordas da história, quando Joseph Haydn visitava Viena. Ele reunia-se com seus amigos e costumavam tocar, tendo ele próprio como Primeiro violino, Karl Ditters von Dittersdorf ao Segundo violino, Wolfgang Amadeus Mozart à viola e Johann Baptist Vanhall ao violoncello.

Formações de Câmara

Até o período barroco, mais de 20 músicos já era uma orquestra inteira, mas, a partir do classicismo, com o aumento da orquestra, este número passou a ser camerístico. Não existe um padrão que determine exatamente a quantidade limite de músicos para a música de câmara, número este que ultrapassado conferirá à música um caráter orquestral. Em geral opta-se pelo bom senso, mas podemos dizer, grosseiramente, que entre 20 e 40 músicos, temos uma 'orquestra de câmara', e, a partir de 40 músicos já se trata de uma orquestra sinfônica, ainda que pequena. A formação camerística pode ser desde dois músicos (sonatas para violino e piano, por exemplo), denominado dueto, três (trio), quatro (quarteto), e daí pra frente, segue-se quinteto, sexteto, septeto, octeto, noneto e orquestra de câmara (dez ou mais músicos). Com execeção do quarteto, que tem uma formação padronizada (dois violinos, viola e violoncelo, o chamado Quarteto de Cordas), os demais necessitam de uma discriminação específica dos instrumentos utilizados, já que eles podem variar bastante.
O quadro abaixo nos dá um resumo das principais formações camerísticas, apesar de haver variações:

Formação Clássica
Variações mais comuns
Exemplos
Duetos
Piano + outro instrumento (flauta, violino, cello, voz, etc..) Dois instrumentos que não seja com piano Lieds de Schubert; sonatas para violino e sonatas para cello e piano de Beethoven (op.69 e 102)
Trios
Piano, Violino e Cello 2 violinos e viola; 2 violinos e cello; flauta, violino e cello Trio em Dó op.87 de Brahms; London Trios de Haydn (flauta, violino e cello)
Quartetos
2 Violinos, Viola, Cello Piano + trio (quarteto com piano) Quartetos de Haydn, Mozart, Schubert e Beethoven, além de todo o repertório romântico e moderno (Schumann, Brahms, Dvórak, Bartók)
Quintetos
Piano + Quarteto Piano, violino, viola, cello e baixo;
2 violinos, viola, 2 cellos
Quinteto 'A Truta' de Schubert (com contrabaixo); Quinteto op.44 de Schumann; Quinteto para Clarinete de Mozart e Brahms (op.115)
Sextetos
2 violinos, 2 violas, 2 cellos Inclusão do piano ou instrumento de sopro sextetos de Brahms

Quando se diz, por exemplo, "quinteto para piano" (como o famoso Quinteto op.44 de Schumann), significa que é um quarteto de cordas mais um piano. O mesmo se dá com o Quinteto para clarinete de Mozart. Trios, quando nada é especificado, são para piano, violino e violoncelo. Sextetos variam bastante. Em geral são dois violinos, duas violas e dois violoncelos, mas alguns utilizam-se de um contrabaixo no lugar do segundo cello, ou ainda, instrumentos de sopro. Daí pra frente a formação é livre e freqüentemente baseia-se no quarteto como base e com o acréscimo de outros instrumentos diversos. O Octeto clássico, por exemplo, nada mais é que a união de dois quartetos, como o Octeto em Mi bemol maior de Mendelssohn.

Princípio sonoros

A música de Câmara é certamente um dos gêneros mais importantes, não só pelo seu imenso repertório, mas também porque é a base de construção arquitetônica de toda a música. Em outras palavras, uma grande sinfonia nada mais é do que uma expansão sonora de uma formação camerística, pois os princípios acústicos que costumam nortear a disposição orquestral são os mesmos, colocados de maneira mais clara na música de Câmara. É notório, por exemplo, o hábito de compositores chamados 'grandes orquestradores' em trabalhar primeiramente suas obras em pautas de 4 vozes, como um quarteto, e depois expandindo a instrumentação. Richard Strauss e Mahler por vezes tem reconhecidos em certas obras um caráter camerístico, não obstante as imensas orquestras que exigem.
Assim, pode-se dizer que a música de câmara procura utilizar uma lógica de distribuição que não raras vezes se resume em duas vozes agudas, uma voz média e uma voz grave, que é o princípio do quarteto de cordas. Por vezes, as intenções de um compositor exigem mais vozes graves (como o Quinteto em Dó D.956 de Schubert, com 2 violoncellos) ou vozes médias, com duplicação das violas. Quando se pretende escrever para outros instrumentos, como metais ou madeiras, a regra é a mesma: Flautas e Oboés fazem as vozes agudas, Clarineta as médias e Fagote as graves, assim como trompetes, trompa e trombone / tuba no caso dos metais. A quantidade de timbres de cada tessitura (aguda, média e grave) é um fator proeminente para o resultado sonoro em termos de equilíbrio e caráter.

Quarteto de cordas

De longe, o mais explorado gênero na música de câmara foi o quarteto de cordas, pela clareza da apresentação das idéias e pelo equilíbrio da disposição sonora, considerado talvez o mais perfeito até hoje. Tanto que Mozart dedicou-lhes uma das melhores facções de sua prolífica inspiração, e Beethoven escolheu o quarteto como expressão derradeira de sua música. Praticamente todos os compositores românticos, pós românticos e até modernos exploraram o gênero com uma seriedade ímpar; alguns cuja importância da produção no gênero chega a rivalizar em popularidade com a produção sinfônica, não obstante a maior difusão desta.

O quarteto teve sua origem no final do período barroco, com algumas experiências de Carl Phillip Emanuel Bach, notório filho de Johann Sebastian, que consolidou a forma-sonata e a distribuiu de maneira intuitiva por vozes agudas, médias e graves, mas ainda com uma certa prolixidade timbrística. Atribui-se, assim, a verdadeira 'invenção' do gênero a Joseph Haydn, que trabalhou sob a proteção do riquíssimo príncipe húngaro Esterházy. Atento às novidades da produção musical de seus colegas, Haydn procurou adaptá-las à realidade dos recursos da corte, bem como dar uma vazão mais coerente à sua extraordinária capacidade de invenção melódica, e assim procurou sempre equilibrar os instrumentos segundo suas idéias musicais. Produziu para sua corte uma enormidade de obras, e muitas delas para serem executadas em ambientes fechados, pequenas câmaras do palácio, onde pode experimentar diversas formações instrumentais. Dessas experiências práticas em composição e execução de obras, nasceram os princípios da sinfonia e do quarteto, logo difundidos por toda a Europa e largamente usufruídos pelos mais diversos compositores.

Os primeiros quartetos de Haydn, os op.1 e op.3, são ótimos exemplos do início do desenvolvimento deste gênero, em que ainda predominam a tradição do Primeiro Violino como linha melódica principal, mas não sem certas ousadias típicas de uma experimentação, em que pode ser observada uma nítida construção com pouca solidez. Já os quartetos op.20 possuem extraordinária força e coesão de todas as idéias, desenvolvendo plenamente a polifonia dos timbres e a estrutura da forma-sonata. Pode-se notar nestes quartetos como os demais intrumentos (Segundo Violino, Viola e Cello) já participam muito mais ativamente da construção melódica, não mais como mero acompanhamento.
Seus últimos quartetos (e Haydn escreveu mais de uma centena deles, dos quais chegaram a nós por volta de 80), principalmente os op.64 e op.76 são os pontos altos da literatura musical clássica, que ainda possuem o requinte de incorporar uma ampla desenvoltura e liberdade no desenvolvimento melódico, que o mestre aprendeu com seu admirador Mozart.


Quarteto de Cordas Franz Schubert, Viena
A escrita de câmara foi explorada por quase todos os compositores (a única grande exceção foi Berlioz, que nunca escreveu nada para instrumento solo ou para conjuntos de câmara), dado o seu potencial de promover um discurso musical altamente claro e objetivo, sem os efeitos timbrísticos de uma massa orquestral. A música de câmara (ou mesmo os solos) deixa o compositor nu perante o material musical, não há por onde esquivar-se de sustentar um discurso musical convincente e bem arquitetado.

Muitas vezes a escrita sinfônica, por seu colorido timbrístico, esconde algumas falhas de coerência formal e coesão semântica, coisa que fica absolutamente evidente na música de câmara, onde o compositor não tem onde se apoiar, a não ser na própria música. Essa limpidez sonora é, além de um excelente exercício de escrita, um excelente treino de escuta, além da beleza infinita dessas obras.

copyright©2002 Filipe Salles

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