Gustav Mahler
A busca pela harmonia do Universo

por Filipe Salles, Julho de 2001

"Donde viemos? Aonde é que nos leva o nosso caminho? Por que me é dado sentir que sou livre, enquanto que estou confinado, porém, dentro dos limites da minha personalidade, como numa prisão? Qual é o objetivo da labuta e do sofrimento? Será o sentido da vida revelado pela morte?"

Esta busca - e a certeza - de um mundo melhor, sempre esteve presente em Mahler, ainda que permeado por dúvidas e antagonismos típicos da era da incerteza que viva a Europa na virada do século.
Um pouco de sua vida e sua obra - uma incessante e apaixonada busca pela Harmonia e por Deus - é contada aqui, através de um breve resumo biográfico

A passagem do século XIX para o XX foi marcada por mudanças substanciais na cultura, ciências e artes da Europa. A era das vanguardas artísticas, que tornou as artes plásticas independentes da necessidade de representação fiel da natureza, abriu espaço para o cubismo com Picasso e o surrealismo com Dalí; o simbolismo na literatura tomou lugar da tradição romântica de descrições minuciosas e abriu espaço para metáforas poéticas, subjetivas; James Clerk Maxwell, Max Planck e Albert Einstein revolucionam a física com modelos de comportamento atômico que ultrapassavam a mecânica newtoniana, e o mundo conheceu a relatividade do espaço e do tempo; Sigmund Freud descobre a importância fundamental da psiquê em nossas vidas, o sutil limite entre o consciente e o inconsciente, inaugurando a psicologia como ciência; os irmãos Lumière inventam o cinema e George Eastman faz da fotografia uma arte popular; Gottlieb Daimler e Karl Benz inventam o automóvel.

Dentro de tão rico cenário, a música também gerou representantes destas profundas transformações de consciência, tendo como porta-voz o compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911), uma das personalidades mais marcantes e influentes do cenário musical europeu na virada do século.

Magro, baixo e atlético, Mahler foi durante sua vida um homem reservado e misterioso, de poucas palavras, mas de muita ação. Seus contemporâneos quase que não o conheciam como compositor, pois foi na atividade de maestro que adquiriu fama e fortuna; segundo dizem, um dos mais extraordinários regentes que a música já teve. Dono de uma enorme intuição estética e um profundo senso de conjunto, Mahler submetia os músicos da orquestra a longos e exaustivos ensaios, repetindo quantas vezes fossem necessárias as passagens que não satisfaziam seus altos padrões musicais, na intenção de extrair os melhores resultados na interpretação das obras. Seus esforços neste sentido - e que também lhe deram fama de ditador excêntrico e chato entre os músicos - renderam todas as glórias de sua vida.

Mahler aos 6 anos
Nasceu numa pequena aldeia na Bohêmia (hoje Áustria) chamada Kalischt, a 7 de julho de 1860, o segundo filho do casal Bernard Mahler e Marie Hermann. Seu irmão mais velho faleceu ainda criança e Gustav foi tido como primogênito. Cedo seu pai descobriu os dotes musicais de Gustav e incentivou-o assiduamente, trabalhando a duras penas para sustentar seus estudos, pois eram de família muito pobre e Bernard tinha sérios problemas com a bebida. Após a morte deste, Gustav sustentou toda a família de 6 irmãos e a mãe.

Após passar bons anos no conservatório estudando piano e composição, aos 20 anos de idade, Mahler decidiu tornar-se regente, começando num posto de maestro assistente em Hall, cidadezinha no norte da Áustria, em que regia pequenas comédias musicais e ainda varria o fosso da orquestra após cada apresentação. Mesmo com um repertório simples e aquém de sua capacidade, sua habilidade musical fez extrair magníficos resultados, que permitiu a ele pleitear postos melhores. Passou por Leipzig e Dresden, regendo óperas e concertos, sempre com a dedicação ao trabalho como ponto fundamental, o que suscitou a inveja de seus concorrentes.

Era um jovem assíduo, sério e dedicado, de enorme talento e profundamente comprometido com a música que tanto amava, e não foi difícil arrumar algumas brigas com administradores e regentes mais velhos que se sentiram ameaçados. Em 1888 foi indicado para a orquestra da Ópera de Budapest, uma casa tradicional mas que vivia seu pior momento financeiro, estando à beira da falência. Ao contrário do que seus detratores pensaram ao indicá-lo, ou seja, que ele afundaria com o teatro, Mahler em pouco tempo reorganizou a administração da casa, renovou o repertório e montou óperas inteiras de Wagner e Mozart com tamanho zelo, empenho e perfeição que se tornaram enorme sucesso, fazendo a casa dar lucro novamente. Sua fama começou a se espalhar pela Europa e já em 1891 estava emHamburgo, dirigindo a casa de ópera que antes pertencia ao lendário Hans von Bülow, que não poupou elogios a Mahler quando o ouviu reger pela primeira vez. Em 1892 passou por Londres a convite do Covent Garden para reger Wagner no Royal Opera House, e sua disciplina férrea incluiu estudos de inglês para conduzir a orquestra com mais segurança e desenvoltura. O sucesso foi imenso, o público gritava 'Mahler' e aplaudia incessantemente até ele aparecer no palco, repetindo a ação ao término de cada ato da ópera.
Mahler aos 36 anos, 1896

Mahler continuou sua carreira triunfal até o ponto culminante, o cargo musical mais cobiçado de toda a Europa: Maestro titular da Ópera Imperial de Viena. Mahler conquistou o posto em 1897, permanecendo nele por 10 anos e coroando sua carreira com o definitivo reconhecimento de seu meticuloso empenho em fazer a melhor música que podia. Pouco depois, em 1902, casou-se com Alma Schindler, descrita por vários biógrafos como 'a mulher mais bela de Viena'.
Mas Mahler não estava satisfeito, apesar do sucesso profissional. Estava rico, bem casado, reconhecido internacionalmente, mas algo ainda o atormentava profundamente. Por que razão um músico tão completo, que havia triunfado na vida, alcançado o cargo mais importante que se podia almejar, insistia em passar todas as suas férias anuais - seu único tempo disponível - a escrever enormes sinfonias de expressividade ímpar, tão íntimas e ao mesmo tempo tão sólidas? Embora tivesse produzido muitas canções, algumas com acompanhamento ao piano e outras com orquestra, suas dez colossais sinfonias são a coluna dorsal de sua produção musical. Todas elas, apesar das enormes diferenças formais, formam um todo tão uno e coeso, que muito estudiosos se espantam com a capacidade de Mahler, sendo tão atarefado como regente, não deixar nunca outras obras interferirem em sua inspiração, preservando um estilo individual marcante e inconfundível. Obras de grande intensidade dramática, orquestração rica e linhas melódicas abundantes, que são a chave para o entendimento das idéias deste homem místico, solitário e melancólico. O próprio Mahler disse certa vez ao compositor Jean Sibelius: 'A Sinfonia é o mundo! A Sinfonia deve abranger tudo!' De fato, levando em conta a origem da palavra Sinfonia, que significa "soar em conjunto", podemos entender o quanto era caro a Mahler o sentido de transformar sons diversos em harmonia pura, organização musical das mais exigentes.

PRIMEIRA SINFONIA

Assim, sua Primeira Sinfonia, nasceu depois de um longo percurso de trabalho e reflexão estética. Conhecida com o subtítulo de Titã, pela inspiração literária de uma novela homônima, a Primeira é, curiosamente, um resumo, um intróito, um prefácio que ao mesmo tempo introduz e resume todo o universo sonoro de Mahler. Poucas sinfonias iniciam num clima de tanta expectativa, tanta juventude e energia: É impossível ouvir alheio às fanfarras triunfantes dos trompetes que explodem na alegria do final, advinda de um tempestuoso conflito (o início do último movimento). Nesta sinfonia está patente o potencial melódico de Mahler (as melodias no cello e na trompa, no primeiro movimento; bem como o magnífico Scherzo dançante), sua fina ironia (o terceiro movimento, paródia musical da canção Frère Jacques), e suas preocupações filosóficas e espirituais (A agonia conflitante do último movimento, que culmina numa explosão de alegria e solenidade).

Sua música reflete com particular maestria todas as facetas de sua personalidade: A busca incessante pelo ideal da beleza, pela harmonia, pela renovação da vida e pela salvação do mundo. Era judeu de nascimento, mas nunca foi praticante. Converteu-se ao catolicismo em 1897, dizem, para poder assumir o posto na Ópera de Viena, mas que, sem dúvida, também por convicções muito pessoais, já que pouco antes disso, havia escrito sua Segunda Sinfonia com o subtítulo 'A Ressurreição', com coros no final sobre textos do poeta alemão Klopstock sobre a Ressurreição de Cristo.

SEGUNDA SINFONIA

Esta sinfonia foi seu primeiro grande sucesso - ainda que reservado a círculos restritos de músicos - e uma de suas obras mais significativas. Com duração de aproximadamente 90 minutos, a sinfonia abre com um longo movimento em forma de marcha fúnebre que alterna momentos de grande tensão dramática com outros de extrema doçura e simplicidade. Seguem-se outros dois movimentos mais calmos, mas muito reflexivos, e então um dos mais belos momentos de Mahler, o 4º movimento, para orquestra acompanhada de uma voz contralto solista. O título deste movimento é Urlicht, em alemão, que significa Luz Primordial. É uma das mais sensíveis e belas páginas de Mahler, e que prepara o ouvinte para o 5º e último movimento, o mais longo de uma sinfonia até então, onde todos os temas se entrelaçam segundo uma narrativa apoteótica que passa do Juízo Final à Ressurreição concluindo com um enorme coral, orquestra duplicada com órgão, sinos e solistas vocais. Mahler ainda acrescentou alguns versos de própria autoria ao texto de Klopstock, muito significativos para ele e para o contexto da obra: "Oh, acredita, meu coração / não nasceste em vão, não sofreste em vão". Segundo Mahler, o primeiro movimento lança uma pergunta: 'com que finalidade viveu você?' O último movimento, com textos sobre a Ressurreição, responde. Mahler nunca se esquivou destas perguntas profundas sobre a existência, dizendo certa vez a um discípulo: "Donde viemos? Aonde é que nos leva o nosso caminho? Por que me é dado sentir que sou livre, enquanto que estou confinado, porém, dentro dos limites da minha personalidade, como numa prisão? Qual é o objetivo da labuta e do sofrimento? Será o sentido da vida revelado pela morte?" Esta busca - e a certeza - de um mundo melhor, sempre esteve presente em Mahler, ainda que permeado por dúvidas e antagonismos típicos da era da incerteza que viva a Europa na virada do século. Por essa razão, a linha narrativa sinfônica mais comum em Mahler é a de estruturar suas sinfonias com uma primeira parte dramática, por vezes trágica, uma parte central mais reflexiva, e um final triunfante e otimista, como que achando o caminho. É uma narrativa visível nas Primeira, Segunda, Quinta e Sétima sinfonias.

TERCEIRA SINFONIA

Na Terceira, Mahler foi buscar inspiração na mitologia e na natureza. Queria chamá-la de Sinfonia Pã, deus dos pastores e rebanhos, por ser de inspiração bucólica. Considerava esta a sua Pastoral (em alusão à Sexta Sinfonia de Beethoven, a Pastoral), e descreve em seus seis longos movimentos (a mais extensa de todas as suas obras, dura aproximadamente 100 minutos) impressões sobre a chegada da primavera, os animais e as plantas, bem como a escalada do homem em busca da redenção, até alcançar o sublime e perfeito, descrito no último movimento, cujo subtítulo é "o que me diz o Amor". Nos movimentos intermediários, utiliza novamente as vozes num coral infantil, coral feminino e contralto solista, cantando trechos de Nietzsche ( All joys want eternity / want deep, deep eternity) e do ciclo folclórico de canções entitulado "A trompa mágica do menino", ou Das knaben Wunderhorn. Novamente, o texto é bastante significativo: "Love God alone all your life / and shall attain heavenly joy / Heavenly joy is a happy city / Heavenly joy knows no end / Heavenly joy was granted by Jesus / To Peter and us for our eternal felicity". Mahler referiu-se a ela diversas vezes com espanto, admirando sua beleza como se não fosse de sua autoria.
Pela complexidade melódica, riqueza de temas e inspiração mitológica, esta é uma sinfonia que fecha um grande ciclo de impressões, pensamentos e sentimentos puramente filosóficos em Mahler. Pensamentos profundos sobre a existência humana, o sofrimento e a salvação.

QUARTA SINFONIA
Silhuetas de Mahler regendo, por Otto Böhler
Muitos biógrafos e musicólogos ainda incluem nesta fase a sua Quarta Sinfonia, por ela ainda manter inspiração nos textos do Knaben Wunderhorn, e por seu último movimento ter sido pensado originalmente para o final da Terceira. Mas são universos já bastante distintos, apesar das semelhanças físicas, pois, ao contrário das anteriores, sua Quarta Sinfonia é uma das mais simples e objetivas. Talvez já tendo esgotado os recursos grandiloqüentes da Segunda e Terceira, Mahler procurou nesta a extrema simplicidade, pureza de timbres e de temas, síntese de idéias e evitando os efeitos de massa instrumental das sinfonias precedentes. Com isso conseguiu apurar ainda mais sua técnica de composição, mas ainda aproveitou a voz humana no último movimento, com um texto do Wunderhorn sobre as impressões de uma criança no Paraíso. Um final extremamente simples, mas também muito significativo na obra de Mahler, que prima pelo discurso claro, de transparência cristalina, mas cuja riqueza de idéias e de temas nada fica a dever às Sinfonias anteriores.

QUINTA SINFONIA

As três sinfonias que se sucederam são puramente instrumentais, e Mahler inaugura com elas um novo ciclo, mais "musical", sem interferências de textos e narrativas extra-musicais. Mas, apesar disso, são sinfonias que não abandonam as intenções filosóficas, apenas as deixa mais subjetivas.
Sua Quinta Sinfonia é a mais conhecida e também a mais importante, obra divisora de águas, em que Mahler busca uma fusão de suas convicções pessoais com sua poderosa intuição estética, na tentativa de transformar suas idéias em música pura. Dividida em três partes, ela organiza de uma maneira bastante convicta o que antes aparecia de maneira implícita, ou seja, a narrativa musical saindo do trágico e caminhando para o triunfo. A primeira parte abre com uma marcha fúnebre, seguida de um movimento tempestuoso e enérgico (não sem a indicação da esperança, num tema que depois será retomado com alegria abundante no final), caracterizando o conflito e definindo suas metas. A segunda parte engloba um único movimento, o Scherzo, mais descontraído e musicalmente muito bem arquitetado, como se fortalecendo as bases para a terceira e última parte. Esta inicia com o famoso adagietto, talvez a mais conhecida passagem de Mahler, um movimento escrito apenas para cordas, lento e de beleza incomparável em sua obra. Um grande hino de amor e esperança. O final mescla temas dos movimentos anteriores, mas sempre direcionando-os para a resolução dos conflitos, com passagens simples, quase infantis, concluindo com uma grande explosão de alegria. A Quinta é, para muitos, sua mais característica obra, onde suas idéias musicais e convicções pessoais estão dispostas de maneira mais equilibrada e segura (apesar do próprio Mahler ter revisto várias vezes a partitura e se espantava em verificar erros de orquestração cada vez que fazia uma nova revisão).

SEXTA SINFONIA
Mahler, 1904
A antítese da Quinta é a Sexta, sinfonia que começa nos mesmos moldes, mas que não termina na resolução dos conflitos propostos, conservando as tensões harmônicas até o final, sendo por isso, conhecida como Sinfonia Trágica. Mahler a escreveu em 1905, quando descobriu que era portador de uma doença genética no coração, e que iria matá-lo em breve. Poucas obras musicais revelam com tamanha perfeição o conflito pessoal que o sufocava, tomando consciência de maneira bastante dura e irrevogável de sua condição humana, e, portanto, mortal. É uma sinfonia pesada, de orquestração maciça, harmonias fortes, mas também não sem encantos, sendo seu Andante uma das páginas mais apaixonadas de Mahler. De qualquer modo, não é uma sinfonia facilmente digerível; o clima angustiante de um herói às voltas com seu próprio limite permeia toda a sinfonia, incessantemente. Ao terminá-la, apesar de estar passando por um período relativamente tranqüilo de vida, viu expurgados anseios íntimos, antigas preocupações lhe afloraram.

SÉTIMA SINFONIA

Voltou-se para a reflexão íntima, e começou a escrever a Sétima, conhecida, muito propriamente, como 'Canto da Noite', por sua atmosfera mais calma e taciturna, com toques de melancolia. Foi um período bastante difícil para Mahler, a recente morte de sua filha mais velha, angústias profissionais na difícil tarefa de administrar a Ópera de Viena, e uma certa queda de inspiração, que certamente o fez repensar muitas de suas posições. Tornou-se áspero e intransigente, experimentando o dissabor de muitas inimizades. A Sétima é um grande espelho destas transformações: Mahler retoma aqui a linha narrativa da Quinta, terminando com um final alegre e esperançoso, mas sem a mesma convicção que outrora havia resultado na sólida arquitetura musical característica de seu estilo, transparecendo de várias maneiras uma condição de estabilidade formal inferior às sinfonias anteriores.

OITAVA SINFONIA

Mas ele acabou deixando a Sétima de lado, porque durante sua composição, Mahler travou contato com um poema medieval do monge Hrabanus Maurus, chamado Veni Creator Spiritus (Vem, Espírito Criador!) e ele imediatamente foi tomado por uma súbita inspiração, ouvindo o texto todo em música. Pediu a tradução imediata do texto do latim para o alemão e iniciou aquela que seria a sua Oitava Sinfonia, que ele próprio considerava sua melhor obra. A inspiração tomou-lhe o espírito com tamanha intensidade que completou a Sétima rapidamente, sem o habitual esmero de revisar as idéias e a partitura.
A Oitava, por sua vez, é uma retomada de suas energias criadoras e um ponto-chave de um a nova fase, tanto estética como espiritual. A volta do uso expressivo da voz na sinfonia, mas de maneira muito particular e original, sendo inteiramente cantada por oito solistas, coro duplo e coro infantil, além de orquestra duplicada e órgão, dando à sinfonia o subtítulo de Sinfonia dos Mil, pois em sua estréia - a última que o próprio Mahler regeu - o contingente instrumental e vocal contabilizava 1023 pessoas.
Mahler mesmo descreve a composição desta magnífica obra: "O Spiritus Creator se apossou de mim e me sacudiu, e me impeliu para adiante, e como de um só golpe, tudo estava diante de mim; não só o primeiro tema, mas todo o primeiro movimento". O compositor, que parecia ter esgotado as possibilidades combinatórias cerebrais, curvou-se ao coração, escrevendo a sinfonia inteira, de 80 minutos, em 3 meses, e ainda confidenciando a Schoenberg que "era como se toda ela me tivesse sido ditada", uma sensação de "ser composto", e não de compor. Ao terminá-la em 1906, escreveu ao maestro Mengelberg: "Aqui me encontro mergulhado nas notas! Apenas terminei minha Oitava. É a maior coisa que escrevi. É de tal modo especial no conteúdo e na forma que me é impossível falar nela. Procure imaginar que o Universo inteiro comece a vibrar e ressoar. Não se trata de vozes humanas, mas planetas e sóis que giram". E também, muito a propósito, "todas as minhas sinfonias anteriores foram apenas esboços para esta". Unindo seus estados de consciência, reflexão íntima na busca pela redenção, sublimação dos conflitos e ideal estético, sem dúvida a Oitava era a coroação definitiva, a confluência de todo o seu universo material e espiritual, finalmente unificado, materializado.
De fato, é uma sinfonia que transpira luminosidade, esperança, otimismo da primeira à última nota. Para completar a primeira parte, o hino Creator Spiritus, Mahler escolheu musicar o final do Segundo Fausto de Goethe, que descreve a redenção humana através do Amor Cristão, dissipando as vontades terrenas na escolha de Fausto pela virtude divina e não pelas venturas terrestres. Mahler sem dúvida encontrou aí as respostas para seus conflitos espirituais, e a fluência da inspiração confirmou ainda mais o caminho escolhido, terminando a sinfonia num clima absolutamente nobre e solene (o Chorus Mysticus), com grupos de metais espalhados por todo o teatro entoando o tema principal, num triunfo de glória que confere à esta Sinfonia um caráter eminentemente ritual.

A partir da composição da Oitava sua vida mudou radicalmente, ele próprio escreveu várias vezes sobre a dificuldade de mudar hábitos arraigados mas que tinha uma íntima necessidade de fazê-lo. Conformando-se com a doença no coração que o mataria dali a pouco, passou a visitar mais amigos, a escrever cartas de amor à sua esposa (cuja relação havia se esfriado substancialmente com a morte de sua filha), e mostrou-se extremamente generoso, até para com seus detratores. Chegou a doar uma grande quantia em dinheiro para Schoenberg, que passava por sérias dificuldades financeiras, e abrir mão dos honorários de publicação de suas quatro primeiras sinfonias para que a editora pudesse lançar obras de compositores menos conhecidos. Isolou-se por longas temporadas em sua casa de campo, no interior da Áustria, deixou o cargo na Ópera de Viena e fez viagens regulares a Nova York para reger a Filarmônica e o Metropolitan Opera House.

Em busca de explicações mais profundas para seus problemas e transformações pessoais, foi ter com Freud em Viena e fez algumas consultas com ele; travou contato com medos e impressões da infância que até aquele momento o atormentavam, e que sem dúvida lhe deram subsídios para entender muito daquilo que tinha escrito; além de ter reconhecido sua atitude autoritária para com sua esposa.

DAS LIED VON DER ERDE
Recolhido pela doença e pela confinação espiritual, Mahler ganhou de um amigo um livro de poemas chineses traduzidos para o alemão chamado A Flauta Chinesa. Ele ficou impressionado com a subjetividade oriental, seu otimismo e filosofia, que permeavam os poemas e pensou em escrever uma nova sinfonia. Como era supersticioso, sabendo que Beethoven, Schubert, Bruckner e Dvórak tinham escrito 9 sinfonias, Mahler ficou apreensivo em escrever sua Nona, temendo sua morte antes de poder completá-la. Por este motivo, voltou ao gênero da canção orquestral, e produziu uma obra-prima chamada Das Lied von der Erde (A Canção da Terra). Nesta obra, muito mais íntima e pessoal que qualquer outra, Mahler escolhe os poemas para musicar cuidadosamente, segundo suas necessidades mais profundas, a maioria falando sobre as alegrias da vida, como por exemplo Da Beleza, Da juventude e O Ébrio da Primavera. Gustav Mahler, 1911

Mas também estão presentes poemas mais reflexivos, O Solitário de Outono, que talvez seja muito próximo do que Mahler sentia na ocasião, mas não há dúvida que o movimento mais significativo é o último, de quase meia-hora, O Adeus. Muito propriamente, é um poema mais introspectivo, que exalta as qualidades da natureza em renovar-se continuamente, quando a morte dá lugar a nova vida. Claro que Mahler sentiu-se muito confortável com este poema, uma vez que ele próprio estava cara-a-cara com a renovação da vida, e fez da música que o acompanha uma das mais sensíveis e comoventes que já escreveu. Termina com repetidas e pausadas vezes a entonação da palavra Abschied (Adeus).

Recuperando suas energias, sentiu-se muito tranqüilo e por várias ocasiões escreveu a amigos exaltando sua condição de vida, de maneira serena e bastante sólida. Gostava de caminhar pelos bosques e beber moderadamente, escrever música olhando a natureza pela janela, e, não obstante sua relação desgastada com a esposa, sentia-se feliz. Sua acolhida em Nova York foi mais fria que a esperada, manteve-se a habitual incompreensão de seu estilo e sua obra. Ele entretanto, parecia estar satisfeito intimamente, e sentiu novamente a alegria de escrever, não dando muita atenção às vicissitudes da rotina na orquestra.

NONA SINFONIA
Busto de Mahler por Rodin Sua Nona Sinfonia é, nestas condições, uma obra extremamente compensadora: A liberdade exterior e interior que Mahler experimentou nesta fase permitiu a ele olhar a música de maneira totalmente nova e explorar novos horizontes. Uma narrativa de subjetividade ímpar, absolutamente poética, permeada por combinações sutis e geniais de timbres diversos, ritmo dissolvido (no primeiro e no último movimento), harmonias etéreas, e ainda retomando temas de todas as suas sinfonias precedentes, de maneira implícita, mas como que fazendo um grande balanço de sua obra. Seu último movimento é uma reafirmação do final da canção da Terra, mas só instrumental. O maestro Bruno Walter via, neste movimento, o último finale que Mahler completou, "uma atmosfera de transfiguração, apoiada pela singular transição entre o lamento da despedida e a visão radiante do Paraíso".

Mahler colheu, já no último ano de vida, sua maior glória, o reconhecimento como compositor, na estréia, em 1910, da sua Oitava Sinfonia. Começou a esboçar a Décima, mas só completou o primeiro movimento, falecendo serenamente em sua cama, de uma infecção cardíaca em 18 de maio de 1911.
Pelos enormes recursos orquestrais e vocais que suas obras exigem, Mahler ficou relegado durante muito tempo após sua morte a um restrito círculo de admiradores, pois a execução de suas obras demandavam intenso trabalho dos músicos e dos regentes. Como se não bastasse, por sua ascendência judia, foi banido da Alemanha durante a Segunda Guerra. Mas graças aos esforços de muitos maestros como Leonard Bernstein, Bruno Walter e Bernard Haitink - e sem dúvida pela invenção do Long-Play (o disco de vinil) - após a década de 60 ele encontrou seu lugar de merecido reconhecimento pela grandeza e profundidade da obra, tanto do ponto de vista artístico como filosófico, por imprimir em sua música a busca incessante pelo ideal pleno da Harmonia que rege o universo.


Mais sobre Gustav Mahler:

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BIBLIOGRAFIA em PORTUGUÊS:

KENNEDY, Michael, Mahler Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores: 1988
BARFORD, Philip, Mahler - Sinfonias e Canções Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores: 1983
MAHLER, Alma Maria, Minha Vida

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