Ópera

por Filipe Salles
A ópera é um dos temas mais complexos da música; só ela daria um tratado inteiro. Aqui, não posso me ater com tanta profundidade, primeiro porque existem um sem-número de estilos e correntes diversas que nos fornecem as diretrizes arquitetônicas sobre as quais se apóiam, e segundo porque meu repertório operístico não é tão vasto ao ponto de poder esmiuçá-lo com grande relevância. Mesmo assim, posso traçar algumas linhas gerais bastante úteis ao leigo.

Origens

A palavra é da mesma origem que Opus, e representa, em latim, o plural de "obra". Parece muito significativo que ela tenha sido inventada no final da Renascença, mais precisamente em 1597. A característica mais marcante deste período, e que justifica seu título de fazer algo renascer, foi a necessidade da cultura européia promover uma retomada do conhecimento científico, estético e filosófico da antigüidade clássica (Grécia e Roma) e colocado tal conhecimento em contraposição aos dogmas existentes pela ditadura eclesiástica. O resultado foi uma expansão cultural inédita no ocidente, que se refletiu formidavelmente na arte. Todos conhecem bem a Arte Renascentista, que até hoje perdura, através de nomes como Michelângelo e Leonardo, como das mais perfeitas e belas já criadas pelo homem, referência estética atemporal.
O cenário musical evoluiu igualmente, mas foi necessário que antes houvesse a absorção estética de todos os conceitos da antigüidade. Passou-se o trecento, o quattrocento e somente no final do cinquecento, é que este ideal estético foi aplicado satisfatoriamente à música. É fato que os gregos, naquilo que chamavam arte poética (que englobava a poesia e o teatro), empregaram recursos sonoros bastante sofisticados, mesclando palavras e música para criar uma emoção específica (Aristóteles descreve bem os fins da tragédia em sua Poética), a chamada catarse. Mas a música até o cinquecento não tinha elementos para mesclar ambas as artes, uma vez que o estilo vigente era essencialmente contrapontístico (que se deve à descoberta e expansão da polifonia, antes amarrada pela ditadura eclesiástica do cantochão). Ficaria muito complicado distribuir papéis a cantores quando a onda da música era trabalhar com várias melodias ao mesmo tempo (o contraponto).
Assim, apenas no fim dos anos 1500 é que a idéia de uma Obra que unisse poesia, dramaturgia e música pôde tomar forma. A literatura tinha Shakespeare, Cervantes, Molière, Racine, a pintura tinha Caravaggio, Rembrandt, El Greco (só para citar alguns, e sem falar nos cientistas todos), e faltava um correspondente a altura na música.
A ópera nasceu, portanto, do estudo de alguns poetas e músicos de Florença (Itália) no ideal da tragédia, espelhada na poética aristotélica de estrutura, mas essencialmente modificada para satisfazer necessidades musicais e dramáticas do pré-barroco. Os primeiros librettos (o texto da ópera, semelhante à um poema dramático, que serve à encenação e que deverá ser musicado) foram escritos pelo poeta Ottavio Rinuccini, e, não por acaso, todos tiveram como tema a mitologia greco-romana, a maioria com várias reincidências: Dafne (1597, a primeira que pode ser chamada de ópera) e Euridice (1600, do mesmo autor - existe uma outra Euridice, do mesmo ano, de Giulio Caccini), ambas com música de Jacopo Peri (1561-1633). Eram ainda bastante rudimentares em termos de narrativa dramática. Como toda experiência pioneira, ainda não estavam firmes seus alicerces, e as óperas eram colagens de melodias e árias que por coincidência falavam da mesma coisa.
Jacopo Peri (1589)

Claudio Monteverdi
Um dos mais importantes compositores deste período, Claudio Monteverdi (1567-1643), foi quem estabeleceu todas as bases estilísticas, arquitetônicas e estéticas para o desenvolvimento pleno da ópera. Ele foi o único, nestes primórdios, capaz de tratar a ópera como uma unidade narrativa coesa, e não um conjunto de árias formando uma história. Além disso, tratou de acrescentar dramaticidade às árias, expressividade advinda do potencial de união das palavras, ação e da música, gerando efeitos musicais inéditos e fascinantes, abrindo o período barroco. Suas peças mais famosas (e também as únicas que nos chegaram inteiras, são Orfeu (1607) e L'incoronazione di Popea (1642). Monteverdi também escreveu uma Dafne em 1608.

Ópera Barroca

Considerando então a entrada de um novo período, o barroco, a ópera irá desenvolver suas habilidades narrativas tomando por base o estilo de Monteverdi. Os temas mitológicos continuavam a manter hegemonia sobre os demais temas, e assim temos Teseu (1675) de Jean-Baptiste Lully (1632-1687);Dido e Enéas (1689), de Henry Purcell (1658-1695); Hippolyte et Aricie (1733), Castor & Polux (1737), ambas de Jean-Phillipe Rameau (1683-1764).
Lully foi o responsável por acrescentar uma sinfonie, isto é uma abertura (a primeira vez que se usou o termo sinfonia foi para designar um prólogo instrumental para a ópera). Consistia de uma introdução lenta e majestosa, seguida por um movimento rápido e desfecho lento. Foi desenvolvida mais tarde como gênero da 'Abertura' e da própria 'Sinfonia' como conhecemos, e esta estrutura era chamada 'Ouverture française'.
Haendel também escreveu muitas óperas, mas a qualidade vocal de sua música está manifestada potencialmente num outro gênero, que será tratado em outro tópico, o oratório. O mesmo se pode dizer de Vivaldi: Suas quase 40 óperas estão hoje completamente esquecidas, simplesmente porque seus concertos são muito mais originais e cativantes, constituindo sua espinha dorsal produtiva.

Cenário da suntuosa ópera barroca 'Il Pomo d'oro' (1666) de Antonio Cesti (1623-1669)
Embora a ópera barroca seja dotada de uma verve melódica intensamente rica e sobretudo de uma beleza platônica, havia uma prática muito comum que espelhava a necessidade preemente de realizar a todo o custo uma obra em função de seu potencial estético. Essa soberania do refinamento estilístico era conquistada, ainda que artificialmente, pela tradição dos castrati. Execrada hoje como desumana, o hábito de escolher um membro da família, ainda pequeno, para se dedicar à música era equivalente a escolher a função sacerdotal. A fim de que a voz fosse preservada, tirava-se os testículos jovens dos futuros cantores, dando-lhes, realmente, uma voz privilegiada, mas também uma aparência física um tanto disforme. O último dos castrati morreu em 1922.
A ópera barroca rendeu um grande legado, utilizado até fins do séc. XIX, que foi o bel canto. O bel canto é um estilo de canto, aplicado à temática das óperas, e que se traduz pelo refinamento e intensidade da expressão melódica, ou seja, a melodia é tão bela e intensa que ela entra na memória com facilidade. Este recurso nasceu junto com uma ópera menos dramática (do estilo de Monteverdi) e mais lírica, e é atribuída a Alessandro Scarlatti (1659-1725). Daí vem a expressão 'música lírica' para designar canto ou mesmo a própria ópera.
A riqueza da ópera barroca não pára por aí. Uma tradição bastante sui generis era o hábito de apresentar um pequeno interlúdio cômico nos intervalos das óperas sérias. Esta peça era na verdade uma pequena cena montada com sentido irônico, apenas para distrair o público durante a troca de figurinos e cenários da ópera principal. O problema é que tal prática acabou tomando rumo próprio, levando alguns compositores a especializarem-se nesses interlúdios, acrescentando-lhes dimensão autônoma. Este gênero foi conhecido como Ópera Bufa, e conta com dois bons exemplos, conhecidos deste lado do atlântico: La Serva Padrona (1733), de Giovanni Batista Pergolesi (1710-1736), e Il Matrimonio Secreto (1792), de Domenico Cimarosa (1749-1801).

Ópera Clássica

Após o período renascentista e barroco, desenvolve-se uma outra vertente de estilo musical, o tão famoso classicismo, e que irá igualmente trabalhar sua facção operística equivalente à música de concerto praticada normalmente. A ópera clássica, manifestada pela técnica melodiosa do bel canto, terá como porta-vozes alguns nomes de grande relevância, como Rameau, Gluck, Haydn, Mozart
Orfeu e Euridice (1767) e Iphygénie en Tauride (1779) de Christoph Willibald von Gluck (1714-1787), reformador da ópera até então vigente e postulador dos elementos que darão bases ao classicismo na ópera, assim como pequenas pinceladas no que seria mais tarde o drama musical de Wagner.
No que diz respeito à estrutura da ópera clássica, sua principal característica é a consolidação da forma estrutural, já algo experimentado no barroco, mas padronizada aqui, que é a divisão de cada parte em árias, duetos, coros, intermezzos orquestrais, etc..., algo muito parecido com os modernos musicais cinematográficos, que tem a trama da história interrompida para que os atores cantem e dancem. Essas divisões na ópera eram muito bem delineadas, embora o preenchimento da ação fosse alternado entre música e diálogos rápidos (os recitativos).
Apenas o Singspiel, gênero desenvolvido na Alemanha, tinha longas partes faladas entre os números musicais. Destarte surgiram grandes óperas, e estabeleceu-se uma distinção de gêneros dentro da própria produção operística. Os principais eram a opera seria, e a ópera cômica. A opera seria tratava de assuntos épicos e engrandecedores, a ópera-cômica era ópera de temática ligeira, sem pretensões além da pura diversão, muitas vezes confundidas com óperas-bufas, estas sim, de conteúdo satírico e intenções humorísticas. Ambos se utilizavam, de maneira exagerada ou não, do bel canto, que, de início, era caracterizado apenas pela total supremacia da linha melódica vocal, ou seja, o prazer em ouvir melodias cantadas de maneira rebuscada e intensa. Depois, adquiriu maior envergadura e abarcou outros estilos.
Joseph Haydn não foi propriamente um bom compositor de óperas, apesar de uns dez títulos de sua autoria. Quase nenhuma é conhecida e também não aparecem com freqüência nos programas das casas de ópera do mundo. Já Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) é uma espécie de porta-voz do estilo clássico operístico, mas apenas em termos de estilo musical, uma vez que, ao contrário de Gluck e outros autores, Mozart preferiu temas sociais e psicológicos ao invés dos mitológicos
tradicionais. Sendo criador dos mais geniais em qualquer gênero que se aventurasse, não precisou fazer muito esforço para criar três ou quatro clássicos eternos da ópera, como As Bodas de Fígaro, Don Giovanni e a Flauta Mágica. Mozart foi responsável por uma grande evolução na dramaticidade da ópera. Como ainda se buscavam temas heróicos ou míticos, muito do que a ópera tratava era destinado à platéias afortunadas, de algum conhecimento poético e/ou artístico, coisa que apenas era compartilhado pelas cortes e nobreza. Não que tais óperas não fossem de boa qualidade,mas a reincidência abusiva nestes temas acabou por saturar as combinações temáticas, fazendo com que estas óperas ficassem cada vez mais desinteressantes. Mozart foi o primeiro compositor que teve a coragem de, a despeito de sua teimosia, enfrentar o protocolo oficial das casas de ópera e escrever música para comédias e dramas mais 'humanos', dando-lhes uma dimensão muito mais abrangente de assuntos e de público.

Figurino para o personagem Papageno, da 'Flauta Mágica' (1791)
Beethoven não costuma figurar nos compêndios de ópera com muito destaque porque só escreveu uma (Fidelio, 1804, apesar de revisada várias vezes), e não é o melhor exemplo de sua grandeza musical; citam-no mais por respeito à sua imensa contribuição para as artes. Mas Beethoven tem um grande mérito na história da Ópera. Foi o primeiro grande compositor que não precisou dela para alcançar projeção e fama, o que indica mudança de ares no gosto estético pré-romântico.
Já nessa época, final do séc. XVIII, O bel canto foi se tornando extremamente refinado na Itália, vindo, logo em seguida, a encabeçar uma série de compositores que

Gioacchino Rossini, já no final da vida
se tornaram mestres nessa arte. Através deles, a própria ópera evoluiu pouco mais em estrutura e temática. Era dominado pelo monopólio italiano de Vincenzo Bellini (1801-1835), Gioacchino Rossini (1792-1868) e Gaetano Donizetti (1797-1848). Predominam os temas lendários, como Guilherme Tell (1829), Semíramis (1823) de Rossini, histórias fantásticas, muitas de verve trágica, como La Sonnanbula (1830), e Norma (1831) de Bellini; O Elixir do Amor (1832) de Donizetti e óperas-cômicas, que descendem da ópera-bufa barroca (O Barbeiro de Sevilha (1816), La Gazza Ladra (1817), ambas também de Rossini). Na obra destes três mestres italianos se encontra o que há de mais refinado, o ápice, da exploração do bel canto, do virtuosismo vocal. Todos fizeram enorme sucesso em vida e gozaram de regalias dignas de um monarca.
Apesar disso, Rossini, pela fluidez melódica, temática e narrativa de suas ópera, é considerado genericamente superior aos demais.
Nesta época, quando o bel canto atingiu seu apogeu, começaram a classificar (tanto compositores como críticos) a natureza das árias. Nelas, os solistas vocais empregavam toda asua maestria para levar o público às lágrimas - ou ao delírio. Surgiram as árias de bravura, as árias cantabiles (mais melódicas), ariettas (ou cavatinas), mais breves e simples. Vem daí o hábito de romper aplausos ao término das árias mais contundentes.
As últimas obras de cada um deles já preconizam sons eminentemente românticos, é na estrutura clássica que se apóiam, mas o caminho será definitivamente aberto por Carl Maria von Weber e Giacomo Meyerbeer, que apesar do primeiro nome italiano, era alemão, filho de um rico judeu berlinense.

Ópera Romântica

Carl Maria von Weber (1786-1826) não escreveu muitas óperas. Era muito versátil como compositor, tendo se dedicado a vários outros gêneros, como sinfonias e concertos, música de câmara e solos de piano. Mas acabou ficando mesmo conhecido por suas óperas, principalmente O Franco-Atirador (1821), Eurythane (1823) e Oberon (1826). Weber é tido como o criador da ópera alemã genuína. Até então, todos os compositores de língua alemã - com exceção de Mozart - escreviam as óperas em italiano ou, se fosse em alemão, em estrutura italiana. Weber, que já é romântico, estabelece uma nova relação entre as partes da ópera, sendo o primeiro a utilizar temas da própria ópera em suas aberturas (antes, a abertura não tinha nenhuma relação temática com a ópera que se seguia).
Giacomo Meyerbeer (1791-1864), muito ao contrário dos demais, foi um compositor que, pela sua natureza familiar, essencialmente empreendedora, comercial, soube perceber o momento pela qual o grande público europeu - diga-se, a recém ascendente burguesia - passava e aplicou seus esforços em tratar a música e a ópera nesta direção. Qual era? o grande espetáculo teatral. A Ópera era tratada como a maior expressão possível nas artes, a Arte Maior, que unia a poesia, dramaturgia, música e artes plásticas (novamente o arquétipo da tragédia grega?) numa só concepção estética. Balzac, por exemplo, admirava mais Rossini que Beethoven, mais Meyerbeer que Mozart. A ópera passou a ser superestimada, e os recursos barrocos e clássicos pareceram pobres para fazer o público desfrutar de todos os seus efeitos.
O jovem Meyerbeer

Cartaz de divulgação da "Africana" de Meyerbeer
Meyerbeer entra em cena justamente criando um novo gênero, a 'Grande Ópera', que se traduzia justamente num espetéculo cênico de primazia épica. Tudo deveria ser grandioso, a música, as palavras, o cenário, embora os temas não precisassem mais ser míticos e heróicos. Exemplos dessa arte hoje são escassos, acabaram por passar por prolixos, mas há Robert le Diable (1831), Les Huguenots (1836) e L'africaine (1864).
De certa maneira, há um pouco desta estética grandiosa nas óperas de Wagner, e também de Berlioz.
Hector Berlioz
(1803-1869), compositor do alto romantismo francês, essencialmente dramático, escreveu muita música sinfônica e religiosa, sendo mais conhecido por sua Sinfonia Fantástica (1830) e por seu Tratado de Instrumentação e Orquestração.
Mas no campo da ópera, também compôs algumas pérolas da literatura operística do romantismo: Béatrice et Bénédict (1862), La Damnation de Faust (1846, que alguns consideram sua obra-prima) e Les Troyens (1859).
Logo em seguida, Wagner irá sacudir radicalmente as bases da composição dramática.A era romântica da ópera se divide em duas grandes facções, os wagnerianos e os anti-wagnerianos.

Cenário de Delacroix para a primeira montagem da Danação do Fausto de Berlioz (1846)

Wagner


Wagner
Wilhelm Richard Wagner (1813-1883) foi uma das figuras mais poderosas e controvertidas das artes. Polêmico, grandioso, egocêntrico e genial, Wagner é um capítulo à parte na história da música, não só por ter revolucionado a forma tradicional da ópera, mas até mesmo por ter deixado de escrevê-las, e as substituído por outra concepção cênica, o Drama Musical. O bel canto havia marcado profundamente a estrutura da ópera, com uma essência lírica e melodiosa, com floreios e as divisões convencionais de cada seção, e assim padronizado um estilo corrente e dogmático. O que Wagner fez foi aproximar, mais do que nunca, a ópera da essência trágica grega no que chamou de "Obra de Arte Total", onde música, drama, dança, pintura e poesia são um só elemento, indissolúveis e constantes.Não há mais divisões entre árias, coros, duetos ou trios; o discurso é sinfônico, organicamente trabalhado junto à ação dramática e ininterrupto.
Wagner começou escrevendo tradicionalmente à maneira de Gluck e com uma influência pomposa da grande ópera de Meyerbeer, e assim escreveu As Fadas (1834), Rienzi (1840) e O Navio-Fantasma (1841). Depois, começou a utilizar uma técnica desenvolvida por Berlioz, a "idéia fixa", e a adaptou à ópera como Leitmotiv, ou "Motivo Condutor", onde um tema percorre a obra toda como signo sinal de determinado personagem ou seu estado de espírito, por vezes ambos. Nesta fase compôs duas obras-primas, Tannhäuser (1845) e Lohengrin (1848), baseados na mitologia germânica que logo em seguida seria sua maior fonte de inspiração. A partir de então desenvolveu as premissas teóricas do que seria a obra de arte ideal, projetou e construiu, com ajuda do rei Ludwig da Baviera (grande admirador de Wagner e seu mecenas) um teatro especialmente para a encenação destas obras - o teatro de Bayreuth, que foi, inclusive, durante muitos anos, o melhor teatro do mundo em termos acústicos - e

Figurinos para a montagem
de 1876 de 'A Valquíria'
começou a escrever, já como Dramas Musicais e não mais como óperas, a maior saga dramática que já foi posta em música: O Anel dos Nibelungos, divididos em quatro dramas, O Ouro do Reno (1854), A Valquíria (1856), Siegfried (1871) e Crepúsculo dos Deuses (1874). Juntas, esta tetralogia tem quase 20 horas de duração, com cada ato, por sua vez, durando mais que uma hora sem interrupção alguma do discurso musical (O Ouro do Reno, a primeira, é na verdade um prólogo, e não tem nem ao menos divisão de atos). Como se não bastasse, interrompeu duas vezes a composição do Anel para escrever outros dois grandes dramas musicais, Tristão e Isolda (1859), a música mais sensualmente erótica já escrita, por suas harmonias suspensas e inseguras, e suas melodias cromáticas que beiram os limites do sistema tonal (que inclusive foi o principal fator que desencadeou a música moderna),
e Os Mestres Cantores de Nurenberg (1867), sua única comédia, cuja execução por vezes ultrapassa 5 horas. Coroou sua carreira e sua obra com um último drama musical baseado na mitologia fervorosamente cristã da Alemanha, a busca do Santo Graal, na mais mística de todas as obras sinfônicas-dramáticas para o palco, Parsifal (1882). Só por aí já dá para se ter uma idéia da revolução estética que este homem promoveu. Absolutamente ninguém no mundo das artes ficou-lhe indiferente. Ao unir a narrativa sinfônica (através de seu grande mestre Beethoven) à ação dramática do palco e das vozes, Wagner não influenciou

idem, 1876
apenas o mundo da ópera, mas de toda a música da segunda metade do século XIX em diante, e daí sua importância capital para a música como um todo, e não apenas para o universo operístico, antes nitidamente separado das demais manifestações puramente instrumentais.

O Verismo e a Ópera nacionalista

Da mesma forma com que Wagner seduziu os artistas com sua sonoridade etérea e grandiloqüente, outros tantos foram fervorosos detratores de sua arte, demasiadamente moderna para os padrões da época, e nesta segunda facção, os anti-wagnerianos, na ópera foram representados pela escola verista. O verismo (em italiano, realismo) é uma corrente também italiana e por eles dominada (impressionante como os italianos gostam de espetáculos - vide os circos romanos), que procurava tratar de

Pietro Mascagni, um dos mais expoentes compositores veristas

temas mais trágicos - com finais realmente trágicos, chegando ao melodrama puro - e mais humanos, mais verossímeis, em outras palavras, para diferenciarem-se dos temas míticos da ópera renascentista e barroca, e que seria o equivalente do cinema neo-realista de Rosselini e De Sica. O verismo conta com a estrutura tradicional interna baseada em divisões formais de números isolados, mas que foram levadas a conseqüências dramáticas de ímpeto intenso, alguns chegando à essência do melodrama. Dentro desta verossimilhança pretendida, os temas passaram a ser muito mais ecléticos, ainda haviam alguns mitos mas a inclusão de libretos baseados na literatura romântica, de Goethe, Hugo, Byron, Dumas (e Shakespeare, mas por seu caráter atemporal), por exemplo, foi substancialmente maior.
E ainda haviam libretos originais, cuja colaboração entre escritores e compositores veio a se mostrar das mais frutíferas. Seus principais expoentes, na Itália são Giuseppe Verdi (1813-1901), Giacomo Puccini (1858-1924), Ruggero Leoncavallo (1857- 1919, I Pagliacci) e Pietro Mascagni (1863-1945, Cavaleria Rusticana), Almicare Ponchielli (1834-1886, La Gioconda) e, na França, Georges Bizet (1838-1875), que tem o inexplicável mérito de ter escrito apenas quatro óperas em suavida, sendo uma delas, a Carmen (1875), considerada, com toda a razão, entre as melhores do mundo - por isso morreu cedo -, Charles Gounod (1818-1893, Fausto) e Jules Massenet (1842-1912, Thaís). Uma escola à parte, com elementos wagnerianos, mas principalmente com uma preocupação estética voltada para a busca das raízes musicais e folclóricas de cada região, principalmente no
Cartaz da Ópera 'La Gioconda' de Almicare Ponchielli, que contém a famosa 'Dança das Horas'
leste europeu, foi a ópera na Rússia de Modest Mussorgsky (1839-1881, Boris Godunov), Alexander Borodin (1833-1887, Príncipe Igor) e Piotr Tchaikovsky (1840-1893, Eugene Onegin; Dama de espadas, etc.. - este mais verista e ocidentalizado) e na Boêmia de Léos Janacék (1854-1948) e Bedrich Smetana (1824-1884), que formaram os expoentes da chamada ópera nacionalista.
Sem sombra de dúvidas, o maior compositor verista foi Giuseppe Verdi. Nascido ironicamente no mesmo ano que Wagner, Verdi foi seu principal opositor estético, embora tal consciência crítica tivesse partido mais do público e dos cronistas da época do que propriamente deles, que aliás, nunca se encontraram pessoalmente. Ambos estavam cientes e seguros de suas respectivas responsabilidades para com a música, e desenvolveram trabalhos dos mais relevantes com

Georges Bizet
parâmetros estéticos bastante distintos. Enquanto para Wagner a parte vocal é tratada como instrumento da orquestra, para Verdi a música e as palavras têm autonomia própria, e cabe ao compositor encaixá-las com competência. Por essa razão, Verdi possuía um senso inato de coerência teatral, o que possibilitava um aproveitamento dramático no palco muito mais verossímil e palpável que o drama de Wagner.

Giuseppe Verdi
A intuição teatral de Verdi é muito mais prática e funcional no palco do que a idealizada por Wagner, e por essa razão, a encenação wagneriana permite uma grande ambigüidade de interpretações cênicas em suas aventuras mitológicas. Mas, como pode-se perceber, são dois objetivos distintos, perfeitamente alcançados em ambos os lados.
Verdi começou compondo uma ópera cômica, num estilo galante e pouco original, trabalho este que foi interrompido pelo mais duro golpe de sua vida, a morte da esposa e dos dois filhos pequenos. Como tinha um contrato a cumprir para com o editor, precisou, neste clima funesto, terminar a ópera. O fracasso maciço dela fez Verdi, amargurado, jurar nunca mais compor.
Não se sabe exatamente por que vias obscuras do destino,o empresário do teatro conseguiu convencê-lo a escrever de novo,e então nasce sua primeira obra-prima, Nabucco (1841).
O povo italiano, oprimido pela dominação austríaca sobre um país ainda fragmentado, encontrou em Nabucco seu canto de independência e unificação, tornando a ópera um sucesso estrondoso. A partir de então Verdi foi consagrado como o maior compositor de óperas da itália e não desapontou, muito pelo contrário. Continuou explorando as formas do bel canto levando-as aos extremos veristas com uma elaboração cênica cada vez mais concisa e articulada, chegando mesmo a criar personagens marcantes de uma densidade puramente teatral (a exemplo de Mozart, muito tempo antes), onde a música acompanha solilóquios vocais árduos que não exigem apenas bela voz, mas sobretudo presença de palco e eminente senso dramático. As melodias, de construção precisa, sucinta e de fácil memorização (a exemplo dos Lieder de Schubert), contribuiram ainda mais para que sua arte fosse elevada como a apoteose da produção operística. Ao todo Verdi escreveu 19 óperas, as mais famosas são La Traviata (1853), Rigoletto (1851), Il trovatore (1852), La Forza del Destino (1861), Aida (1870), Otello (1886) e Falstaff (1893). Após obter fama e fortuna com tão abundante produção,
Verdi preocupou-se intensamente com o ensino musical dos jovens de seu país e patrocinou várias escolas e fundações de música, todas de altíssimo nível. Em suas duas últimas óperas, Otello e Falstaff, Verdi atingiu o apogeu de seu estilo - usando inclusive elementos wagnerianos de leitmotivs - e que por si só já fazem por merecer seu lugar entre os maiores compositores de todos os tempos.
Esboço para os figurinos da estréia da 'Aida' (1871)

Ópera do Séc. XX

A ópera entrou no século XX bastante heterogenizada, com remanescentes veristas em Puccini (La Bohème (1896), Tosca (1900), Madama Butterfly (1904) e Turandot (1924), entre outras) e os wagnerianos em Richard Strauss, cuja dramaticidade beira o expressionismo. As mais famosas são Elektra (1909) e Salomé (1905). Curiosamente, Richard Strauss da metade da vida em diante, abandona o expressinismo dissonante e começa a escrever música com uma delicadeza mozartiana, mudando radicalmente a atmosfera de suas óperas, mas preservando o estilo. É o caso do Cavaleiro da Rosa (1911), Intermezzo (1924), Arabella (1933) e Capriccio (1942).


cartaz da 'Madama Butterfly' de Puccini
Cita-se também a importância de Pélleas et Mélisande (1902), de Claude Debussy, sua única ópera e com o singular mérito de não conter nenhuma linha melódica completa. Um discurso musical contínuo e ao mesmo tempo fragmentado onde o autor dissolve as melodias com a mesma facilidade com que as cria, deixando o público e a crítica desorientados. A grande revolução do século foi a Segunda escola de Viena, liderada por Arnold Schoenberg, e que dissolveu o sistema tonal que sustentou 4 séculos de música na Europa. O novo sistema, baseado numa série atonal, chamado sistema dodecafônico, produziu muita música experimental, mas também óperas de grande poder dramático, como Wozzeck (1920) e Lulu (1935), de Alban Berg.

Opereta e espetáculos musicais

Paralelamente à ópera, surgiu no final do século XIX um outro gênero, mais voltado para o espetáculo musical, com temas eminentemente cômicos e despretenciosos, de melodias fáceis e sem nenhuma preocupação trágica, a opereta, definida como "ópera leve" . Seu objetivo é o entretenimento puro, embora muitas obras-primas foram escritas sob esta classificação. Seus grandes compositores foram Jacques Offenbach (1819-1880), Johann Strauss Jr. (1825-1899, O Rei da Valsa - Não confundir com Richard Strauss, que nada tem a ver com este), Otto Nicolai (1810-1849), Franz von Suppé (1819-1895), e a primeira dupla, hoje tão comum na música popular, Arthur Sullivan (1842-1900, compositor) e William Gilbert (1836-1911, libretista).

Resumindo esta parte, a ópera é, para nós, de maneira geral o que a tragédia grega foi no seu respectivo passado, uma confluência de artes unidas por um fio condutor, que no caso da ópera é a música. Dividem-se basicamente em dramas trágicos e dramas melodramáticos, podendo em ambos estar embutido um potencial cômico, sendo os primeiros representados por Gluck, Mozart, Berlioz, Wagner, Richard Strauss e Berg, e os segundos pelos italianos, mestres da arte do bel canto e do estilo Verista.
A orquestra utilizada pela ópera no período barroco e clássico é ligeiramente maior que a utilizada em concertos, mas o romantismo equaliza as duas sonoridades, chegando mesmo a inverter-se o quadro: As orquestrações mais exageradas são de peças sinfônicas (principalmente Mahler, R.Strauss e os Gurrelieder de Schoenberg), não de óperas.

Para quem ainda acha que a única grande expressão da música é a ópera, temos aqui alguns grandes compositores que nunca escreveram uma ópera: Bach, Brahms, Bruckner, Mahler (apenas completou uma inacabada de Weber), Chopin e Grieg.

copyright©2002 Filipe Salles

Voltar
Acervo fonográfico