Dissertação de Mestrado - Filipe Salles - 24/06/2002
6. CONCLUSÃO
Disney materializou
objetos representados musicalmente por Beethoven, mas muitos destes objetos
não pertencem ao universo original proposto. Há, claro,
uma licença poética na construção narrativa
(principalmente nos dois primeiros movimentos) e também na utilização
de elementos visuais. Mas, de qualquer maneira, não há,
neste caso específico, como estabelecer uma razão entre
os termos físicos (instâncias sonoras e luminosas do cap.
4) da música e da imagem sem nos perguntarmos ao final: bem, os
elementos utilizados foram estes, mas como a harmonia foi alcançada
com estes elementos? Muito longe de poder descrever o que ocorre efetivamente,
esta análise apenas situa as relações estruturais,
a maioria formais (e algumas apenas com relação ao conceito),
que ocorrem entre a imagem e a música. Há elementos que
juntos formam um todo uno e coeso (cf. citado no início) e dão
não só unidade, mas coerência e catarse ao filme.
Mais do que uma tradução, da música em imagens, o
que vemos é uma 'roupagem', um revestimento visual à estrutura
musical, que combina tão perfeitamente com o caráter da
música que é não apenas uma vestimenta possível,
mas muito próxima do espírito da obra. Onde podemos encontrar
essas referências?
Vimos anteriormente que, apesar de não podermos estabelecer uma
correspondência direta entre as freqüências eletromagnéticas
da luz e as freqüências mecânicas do som, elas encontram
correspondências as mais variadas sob outras razões, a maioria
estética. Diversos autores supracitados, como Eisenstein, Goethe,
Debussy, Kandinsky, Harnoncourt e Pedrosa, encontram maneiras de expressar
instâncias visuais nas sonoras ou vice-versa, utilizando paradigmas
comuns que nos remetem diretamente ao entendimento comparativo da alusão
metafórica.
A idéia é que justamente a correspondência direta
entre os termos é insuficiente para chegar a esta conclusão,
assim como a instância semiótica, que nos forneceria detalhes
sobre a estrutura significante e sua lógica de representação,
mas não nos fornece, efetivamente, a razão pela qual é
possível combinar estes elementos. A instância puramente
física no fornece apenas semelhanças paradigmáticas,
em que podemos relacionar sons agudos com formas finas, ou dispostas no
alto de um plano, e sons graves com formas grossas e rasteiras. Mas vimos,
nesta análise, exemplos contrários, como escala ascendente
cuja imagem movimenta-se para baixo (compasso 503 do Primeiro movimento),
ou imagem de relâmpago sem batida no tempo rítmico (compassos
64-65 da Tempestade), ou mesmo utilização de planos abertos
em forte (compassos 37-40 do Primeiro movimento) e mais adiante,
planos abertos de imagem com dinâmica piano na música
(compasso 493-497 também do Primeiro movimento), sem que, efetivamente,
haja uma perda de significação em ambas estruturas. Portanto,
há um equilíbrio entre os termos, entre ponto e contraponto,
imagem/música, de tal maneira que, como foi lançado no início
da introdução, há uma relação simbiótica
(e não parasitária, uma vez que o objetivo formal da arte
é o equilíbrio), regida pela harmonia dos termos.
Em outras palavras, ao unirmos som e imagem num suporte qualquer, o fator
determinante para sua plena simbiose leva em conta aspectos estruturais
paradigmáticos, mas não se encerra neles. Como disse Platão,
a escolha de um modo musical é proporcional à intenção
que se quer dar à música feita neste modo, sendo melhor
quanto mais próximo estou formalmente do meu objetivo conceitual.
Assim, Disney procedeu, utilizando uma das possíveis interpretações
formais da música, respeitando em cada fotograma a intenção
original de Beethoven, não apenas na estrutura, mas também
no conceito. Pois Beethoven, em seus escritos, sempre deixou claras suas
posições filosóficas e políticas, como no
Testamento de Heiligstadt, em que dizia: "Quem sou eu perto
do Universo?". A música de Beethoven, impregnada com o espírito
de liberdade e fraternidade de seus próprios ideais, encontra paralelo
direto no espírito da imagem de Disney, tornando assim a associação
extremamente satisfatória.
Entretanto, sendo um fator muito subjetivo, o caráter, o sentimento
ou a própria harmonia (no sentido pitagórico) de cada obra,
é normalmente tratada como elemento de estrutura, de forma. É
preciso estabelecer a diferença, e admitir este elemento, que não
é palpável, que não está escrito nas notas,
mas inscrito na intenção. Este, só pode ser alcançado
com a sensibilidade, quando nos colocamos em harmonia com a obra a ser
apreciada, e então o caráter da obra se torna concreto,
palpável, verossímil. É como disse Kandinsky:
Por
fim, a arte nunca provém apenas do cérebro. Conhecemos
grandes pinturas que nasceram unicamente do coração.
Em geral, o equilíbrio entre o cérebro (momento consciente)
e o coração (momento inconsciente, intuição)
é uma das leis da criação, uma lei tão
antiga como a humanidade. (Kandinsky, 1996:247) |
Concluo,
portanto, este estudo, encontrando na razão entre a associação
música/imagem uma confluência de paradigmas. Há instâncias
representativas similares que nos fazem reconhecer uma arte na outra (dissolução
dos limites estáticos entre as artes), bem como reforçá-las
segundo algum critério estético. Mas, o mais importante,
é que tais associações, ainda que se valham de elementos
formais, como os descritos no capítulo 4, não servem de
nada se não estiverem imbuídos de um objetivo, que vai reger
o caráter e a conseqüente harmonia do conjunto, qualquer que
seja ele. A clareza de objetivos e a sensibilidade advinda do espírito,
juntas nortearão os termos para uma associação audiovisual
que sirva a cada necessidade proposta.
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Filipe Salles
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