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A Imagem Fílmica e sua Importância Histórica

 Sabemos que a imagem, ao longo de seu tempo adquiriu uma importância vital em nossa sociedade. Desde nossas origens, buscamos a compreensão por meio delas, já que a palavra propriamente dita não nos satisfaz completamente deixando pequenas lacunas e dificuldades de entendimento.

Com a imagem isso não é diferente, porém, ela nos traz uma certa satisfação, um certo entendimento “claro” perante as coisas, as situações, os momentos. No jogo dos signos propicia-se associações, quaisquer que sejam, certas ou erradas elas acontecem. O ser humano tende a lidar com a imagem de forma subjetiva, tratando da mesma e tecendo relações de acordo com a sua concepção de mundo, entendimento de valores, de regras sociais, etc. Agora fica o questionamento que não se cala. O que é uma imagem? Qual o seu papel de representação dentro da sociedade contemporânea? Qual o seu valor histórico e como entende-la como tal? A questão em si soa muito complexa, mas não é impossível de ser questionada, já que podemos analisar e ao menos tentar buscar algum significado. Partindo do significado em parte simplório, mas que nos ajudará a dar início a essa jornada, Martine Joly[1] diz que “uma “imagem” é antes de mais nada algo que se assemelha a outra coisa (JOLY, 2008. p. 38)”

Isso sempre aconteceu na humanidade, vemos o primeiro vestígio nas pinturas rupestres, na pintura de quadros de movimentos artísticos como o Renascimento, no século XIX a dinâmica da imagem toma força com o nascimento da fotografia, logo depois do cinema e em última instância a mídia e a internet. Trabalhamos de alguma forma com representações, coisas que se assimilam, que nos fazem vivenciar o mundo das mais diversas formas.

É necessariamente o cinema que será tratado nesse artigo, mais especificamente sua parte ficcional.O cinema, por si só, vem ao longo do tempo ganhando cada vez mais espaço na sociedade, vemos cada vez mais releituras de clássicos, festivais de filmes, prêmios, adaptações. Isso mostra que, o cinema por tem grande importância histórica, já que como diz a historiadora Mônica Almeida Kornis:

 

Filmes a programas de televisão são, por sua vez, documentos históricos de seu tempo, inclusive os títulos cujo conteúdo volta-se para o passado uma vez que são produzidos sob um olhar do presente.[2]

 

O filme como disse a historiadora acima, tem papel central na história, por ser imagem movente e conter conteúdos intrínsecos a sua época, moldando formas de pensar e de agir de sociedades sem sequer darmos conta disso. O cinema como modalidade de imagem, mostra naturalmente um fragmento do período mesmo sendo depois do mesmo ocorrido, existe nele uma concepção de algo, até dentro de sua estética de filmagem, para darmos um exemplo um tanto vulgar do realismo buscado pelos cineastas do neo-realismo italiano ao intimismo dos franceses da nouvelle vague. Olhar e Câmera não se separam, o “real” é mostrado de várias formas. E é nisso que o artigo se prontificará em discutir.

Usarei o conceito cinema-história cunhado por Marc Ferro na década de 60, e será basicamente em sua perspectiva que discutiremos o tema. E como eixo temático, serão usados filmes do cinema nacional.

 

O Cinema Nacional: Diferentes olhares do mesmo Período

 

O cinema nacional passou pelas mais diversas mudanças, estéticas e temáticas, diferentes buscas aconteceram ao longo de sua história, olhares se entrecruzaram. Pensamentos às vezes opostos se entrechocam. Sua dinâmica é notória, pois, de suas origens ao surgimento dos ciclos de cinema vemos várias experimentações estéticas. Mas é justamente na década de 60 que vemos diferentes “olhares” sob o mesmo período prismas de situações completamente opostas que nos servem como catalisadores do tempo. A partir do movimento conhecido como Cinema Novo Brasileiro que tem suas origens no início da década de 1960 vemos, novos cineastas que, influenciados pela política de “autor” vinda principalmente dos franceses da Nouvelle Vague e pelo engajamento político do Neo-Realismo Italiano buscam, cada um a seu modo, revisar criticamente o cinema brasileiro, buscando mudanças. É na ascensão desse movimento cinematográfico que aparece a figura de Glauber Rocha e sua constante epopéia pela nossa cultura vê-se um cinema de conteúdo explicitamente social no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol oposto ao estilo despojado e um tanto lacônico de Júlio Bressane em Matou a Família e foi ao Cinema diretor surgido do chamado Cinema Marginal[3] que tem suas origens a partir do ano de 1968 com o surgimento do filme O Bandido da Luz Vermelha com direção de Rogério Sganzerla, ou ao niilismo carregado de Walter Hugo Khouri em Noite Vazia também de 1964 no mesmo ano do filme de Glauber Rocha, porém, com uma diferença estética e temática muito grande. Isso se deu devido a sua vivência “a margem” dos grupos e pela ser influenciado pelo cinema do sueco Ingmar Bergman. Esses cineastas, como percebemos, existem buscas diferentes sob um mesmo período que é o da Ditadura militar. Com certeza, pode ser questionado qual a importância desses três olhares até então opostos? E como relacionar esses mesmos três olhares em épocas um tanto diferentes[4]? Essa fragmentação e sensibilização da percepção já vêm de tempos anteriores e é típico da sociedade capitalista industrial que, tem como característica a aceleração de tudo. Nicolau Sevcenko nos ilustra bem isso em sua origem no seguinte trecho:

 

Esses dois novos fatores associados – a aceleração dos ritmos do cotidiano, em consonância com a invasão dos implementos tecnológicos, e a ampliação do papel da visão como fonte de orientação e interpretação rápida dos fluxos e das criaturas, humanas e mecânicas, pululando ao redor – irão provocar uma profunda mudança na sensibilidade e nas formas de percepção sensorial das populações metropolitanas. A supervalorização do olhar, logo acentuada e intensificada pela difusão das técnicas publicitárias, incidiria no refinamento da sua capacidade de captar o movimento, em vez de concentrar, como era o hábito tradicional, sobre objetos e contextos estáticos.[5]

 

Mais adiante o autor também enfatiza:

 

Nesse novo mundo em aceleração sempre crescente, o grande ganho adaptativo, em termos sensoriais e culturais, consiste em estabelecer nexos imediatos com os fluxos dinâmicos. Esse aguçamento da percepção visual deveria ocorrer tanto no nível subconsciente como no da compreensão racional da sistemática das energias e elementos em ação dinâmica.[6]

Como vimos, a percepção e captação do olhar se tornou fragmentada e frágil no mundo contemporâneo, como um grande quebra-cabeça esperando para ser montado. O que possibilita a maior gama de manipulações possível. Desde assuntos não abordados até de temporalidade. Essa cultura da visibilidade abarcou certo patamar de responsabilidade que de certo ganha cada vez maior legitimidade perante formadores de opinião, críticos, tendências estéticas, etc.

Isso se encaixa muito bem no que o historiador Marc Ferro menciona em relação ao papel do Câmera-man que está a serviço de uma ideologia mesmo que pessoal, de uma causa e eles são capazes de qualquer embate para defender suas idéias. [7] O cinema adquire um tom contestador, crítico e denunciador. Torna-se um verdadeiro agente histórico.

No Brasil isso se torna evidente na história do cinema e podemos observar os discursos existentes nesses filmes o filme de Glauber mostra um universo até então ocultado pelo Brasil o universo do sertanejo, denunciando sua exploração, seu sofrimento, as mazelas sociais que até então eram ocultadas pela política brasileira. As contradições são mostradas de forma clara e colocando e deixando no ar uma possibilidade utópica de revolução.

O filme de Júlio Bressane já mostra pequenas histórias entrecruzadas, tiradas de casos reais de tiras de jornal, uma delas dá o nome ao filme. Onde o filho premedita a morte dos próprios pais e sai logo em seguida para ver um filme no cinema. É uma crítica a patrulha ideológica existente mostrando o lado oculto do ser humano. Os tratamentos dos temas diferentemente do cinema novo são crus chegando a causar uma dose de repugnância, não se existem heróis e nem todo ato pode ser explicado.

Já o filme de Walter Hugo Khouri mostra a noite onde dois amigos saem em busca de algo, encontram duas prostitutas, o quarto se torna um palco de descontroles mostrando o vazio existencial de cada personagem.

Se colocarmos em questão, os filmes estão em períodos diferentes, mas, se passam num período em comum o da ditadura militar. Cada diretor, com sua ideologia pessoal, sua perspectiva de análise busca um fragmento da realidade a sua forma, mostrando o que para si lhe convém. Tecendo suas idéias em questão a nossa sociedade, cultura, período. Do lado assumidamente militante de Glauber, a crítica sarcástica, mas descompromissada de Júlio Bressane ao niilismo existencial de Walter Hugo Khouri percebemos as diferentes visões e concepções da realidade social brasileira.

Como lidar historicamente com as idéias pospostas dentro dos filmes? Os filmes usados como exemplo caem na mesma armadilha que é ser imagem para o outro, a de como são representadas as idéias.Como lidar com estas imagens a partir do momento que temos plena noção de que vivemos em um mundo espetacularizado e que existem imagens já acabadas. Portanto, ausentes de discussão. Andréa França situa essa questão no contemporâneo, mas com certeza podemos usar também no cinema da década de 60. Ela diz:

Ser imagem para o outro inclui o outro que, de espectador coletivo das imagens do cinema, do teatro, das manifestações políticas, se torna uma espécie de testemunha individual: das webcams, televisões, celulares, micro-câmeras. Não há distinção entre sujeito e objeto como problema a ser proposto (questão cara ao documentário moderno) e a tarefa que se apresenta hoje para aquele que trabalha com imagens e de que modo e quais são as possibilidades de desarranjar visões e idéias estabelecidas à revelia de nós mesmos, como criar mecanismos – técnicos, espaciais, temporais, sensitivos, visuais – de produção de experiências diversas.[8]

 

Como representou no texto da autora acima, vimos que corremos sérios riscos de cair numa espécie de diacronia de um entendimento falho das imagens não possibilitando entrar na linha tênue dos discursos que cada obra representa e da sua relação com o período. É de ser pensado que cada obra tem suas particularidades, suas idiossincrasias. E isso implicaria em uma gama de análises certamente diferenciadas. Cada diretor transforma e lapida a realidade de forma diferente, porém, não menos, ilusória. O “real” nesse sentido é questionável.

Essas questões mostram que cada diretor pode ter, a sua forma, visões arranjadas, dadas de mundo, de forma que isso possa prejudicar um pouco o entendimento de fato de algumas coisas que aconteçam. Não quero colocar em xeque a criatividade ou concepção de cada diretor, porém, é necessário situa-los mais precisamente já que estão em diferentes estágios da história brasileira e da própria ditadura militar.

O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha é o filme que originou o movimento do cinema novo, portanto o compromisso dos cineastas desta época era, justamente mostrar o Brasil que não era mostradoo filme data de 1964, data que daria inicio a ditadura e também aos movimentos de repressão aos grupos revolucionários. Nessa época Glauber demonstrava por sua forma de pensamento claramente ligada ao marxismo, não é à toa que vemos uma visão um tanto romântica em seus filmes o sertanejo é visto como pessoa ideal para a revolta, massa com potencial revolucionário. Portanto vemos a dicotomia, homem-revolucionário clara e única para ser o combustível das mudanças sociais do país.

O filme de Matou a Família e foi ao Cinema de Júlio Bressane data de 1969, exatamente um ano depois da polêmica lei do AI-5, que extinguia toda e qualquer liberdade de opinião, fato que acarretou sérios problemas para a vida artística do país, colocando muitos artistas na clandestinidade quando não ao exílio. Pode-se dizer que o filme de Bressane, diferente do de Glauber traz um certo desencanto da época onde seus personagens, resultantes de situações limites, se apegam a um romantismo débil, carregado, sem possibilidade de mudança, o descaso é tanto que não se vê opiniões políticas dos personagens. Vemos apenas pífias discussões sobre o corpo, mulheres falando de namorados, um homem que chega estressado do trabalho e, portanto, alcoolizado acaba numa briga por matar sua própria esposa, etc. O apelo ao popular também é forte já que os cineastas do período de Júlio Bressane mostravam uma profunda simpatia pela chanchada, sem a erudição dos cineastas do cinema novo.

Já o filme Noite Vazia de Walter Hugo Khouri data também de 1964, porém como disse anteriormente é uma outra visão do mesmo período. Walter Hugo Khouri foi muito marginalizado pelos diretores da sua época considerado “alienado” por não tratar diretamente das situações políticas do país. É fato dizer que dentro do filme e mostrado o universo que cada diretor coloca por uma possível identificação ou até por querer retratar, no filme Walter Hugo Khouri relata a vida de dois homens Luiz e Nelson. O primeiro um pai de família, com estabilidade financeira, buscando nada mais que prazer, o segundo está só e não consegue se identificar com ninguém. Ambos saem pela noite paulistana em busca de um prazer fortuito que possa de alguma forma superar o vazio existencial até encontrarem duas prostitutas, passam a noite com elas e descobrem que elas nutrem o mesmo sentimento em comum. Poderíamos dizer que o filme de Walter Hugo Khouri reflete a repressão do período, só que de uma forma silenciosa, os personagens sofrem, mas não sabem o porque, buscam alguma coisa, mas não sabem o que. Resumindo, o filme retrata a decadência moral dos valores burgueses e o clima de repressão sentido pela classe burguesa de forma surda, causando tédio, pois como vimos, os personagens são movidos a prazeres fortuitos, casuais, pífios. A noite é vazia, porque é nela onde se há maior vigia e aconteciam os casos de repressão.

Podemos observar nesses três filmes que, cada um, a sua forma, mostra uma possível forma de discussão da realidade. Cada diretor procura a sua forma discutir o que é viver no Brasil nesse período, mesmo que de forma bem ampla e de focos completamente opostos. De Glauber vemos os contrastes dos brasis que vivem cada um a sua forma, onde cada pessoa vive como pode, aprendendo a lidar com o sofrimento e, de alguma forma, esperando uma possibilidade de redenção. Já em Walter, vemos o contraste moral da burguesia, suas dificuldades de lidar com isso, seu poderio inflamado quando se fala em dinheiro, uma rebeldia quase que saudosista quando vemos a noite paulistana ainda com músicas características dos anos 50 à burguesia que Glauber não procura retratar.Já em Bressane há o escracho, o popularesco, o escárnio, personagens puramente urbanos buscando apenas um consolo, seja ele qual for. O tom da linguagem e as músicas que compõe a trilha sonora complementam e afirmam as questões dos personagens os amores não correspondidos, instintos são louvados, mostrando que onde quer que seja, independente da situação social há sempre personagens que vivem a margem do que se ocorre e sofrem claramente os sintomas de uma mesma sociedade, inconscientemente.

 

Considerações Finais

 

Como pretendi, mostrei de inicio o quão é importante o papel do cinema dentro da sociedade. Seu papel como agente da história e, como o mesmo serve como instrumento de interpretação de uma sociedade ou de um determinado período histórico. Marc Ferro diz que no cinema existe o visível e o não visível, e foi justamente seguindo esse parâmetro que procurei ressuscitar os discursos existentes que se chocam, nas falas, nos comportamentos, nos debates. O cinema é uma coisa viva, um processo de produção[9]. A partir do momento em que há interferência de produtores, diretores, o meio de produção encontra-se completamente intrincado e ajustado cada qual a sua forma. O discurso cinematográfico encontrará permeado de idéias em conjunto, sendo assim, é certo dizer que devemos separar e tentar entender o que se esconde em cada gesto, cada consciência, cada fala exposta, procurar descobrir o visível e o invisível por trás de cada imagem.

E é a partir dessa possibilidade de descoberta do invisível que buscamos uma realidade. Andréa França mais enfatiza isso por meio da citação de Jean-Luc Comolli em que diz:

A idéia de uma experiência de realidade pura e imune às linhas de força, livre de estratégias, fora de rede de relações, é uma postura ingênua, idealista, pois parte do pressuposto de que existiria um real não contaminado pelas mediações.[10]

 

Como na citação acima também foi enfatizado o quanto à realidade pode ser mudada e mediada de acordo com a visão pessoal de cada autor, como cada artista vê e como cada um busca e articular suas idéias e linhas de raciocínio. O real em si não existe, mas sim, as interferências que acontecem resultam que tudo se transforma num mero fragmento, mutilado, deformado, que talvez haja alguma capacidade de compreensão a partir dele. Cada cineasta é um autor, e cada autor tem a concepção formada, cabe a nós discutirmos e entendermos cada posição e cada idéia que é defendida.

 



[1]

[2] KORNIS, Mônica Almeida. Cinema, Televisão e História. 1ªEd. São Paulo. Jorge Zahar. 2008. p. 10.

[3] Também conhecido como cinema de invenção, cinema de poesia, cinema udigrudi.

[4] Esse exemplo vale mais especificamente para o filme Matou a Família e foi ao Cinema de Júlio Bressane que foi feito no ano de 1969, já que, os demais filmes foram produzidos no ano de 1964.

[5] SEVCENKO, Nicolau. A Corrida Para o Século XXI: No loop da montanha-russa. 1ª Ed. São Paulo.Companhia das Letras. 2006. p. 64.

[6] Ibid. p. 65.

[7] FERRO, Marc. Cinéma et Histoire. S/ed. France.Gallimard. 1993.

[8] MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes Davi et al. Imagem, Visibilidade e Cultura Midiática. 1ª Ed. São Paulo. Editora Sulina. 2007. p. 49.

[9] Tenho que enfatizar que não procurei me aprofundar nessas questões da industria cinematográfica da época. Já que isso implicaria em uma análise mais minuciosa, o que não é o compromisso do artigo.

[10] FRANÇA, apud COMOLLI. et al. Imagem, Visibilidade e Cultura Midiática. 1ª Ed. São Paulo. Editora Sulina. 2007. p. 50.