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Um Ritmo Encontrado

O texto do presente artigo tem como objeto os filmes musicais que foram produzidos no Rio de Janeiro, entre o começo da década de 1930 até o final dos anos 1940 do século XX. E seu objetivo é tanto assinalar como discutir os elementos e as referencias da cultura e da produção cultural brasileira e internacional que forneceram temáticas e recursos narrativos incorporados e utilizados nos filmes.

 

Assim, localizamos e analisamos os filmes como parte de uma produção que tem seu lugar histórico e social.

Orientado pela perspectiva apontada acima, observa-se que o carnaval foi acontecimento ostensivamente presente nos registros cinematográficos das três primeiras décadas. Se primeiro documentalmente, depois ficcionalmente, à medida da mudança de tratamento operada nos filmes a partir do começo dos anos 30.

O rádio foi também parceiro constante e fiel dos filmes musicais, tendo sido focalizados os seus bastidores em algumas das tramas desses filmes. No entanto, a melhor contribuição do rádio foi sem dúvida alguma os seus cantores, ou melhor o seu casting. É preciso entender que o rádio daqueles anos não atuava como o faz contemporâneamente. Ele não era apenas o espaço das gravadoras, ou da iniciativa privada com seus reclames. Medida todas as diferenças em relação à televisão, o rádio fora o lugar dos artistas, não só dos cantores, mas de toda a classe. Então, para o rádio, o cinema, na sua versão cômico-musical, tornara-se apenas mais um lugar natural de atuação do seu elenco.

Também o teatro de revista nunca perdeu sua importância como fornecedor de inspiração e argumento para o "filmusical", além de ter propiciado ao cinema nacional dois atores do mais alto nível, como foram Grande Otelo e Oscarito, formando a dupla de cômicos de maior sucesso em toda a história do cinema nacional. Da burleta, das comédias ligeiras, do vaudeville, do circo, eram desses lugares que vinham os variados componentes e influências para estes filmes. Os aspectos de composição desses espetáculos foram muitas vezes apropriados, deslocando-se o referente original e fazendo surgir na tela um resultado de efeito, talvez, mais novo que inusitado (1) .

Os "filmusicais" dos anos 30 levaram para a tela um pouco de toda esta mistura, eram o resultado de um cinema menos erudito e nobre, no entanto mais possível e brasileiro, resultado das condições de produção e não de um projeto de intelectuais ou mesmo dos realizadores naqueles anos. A consciência adquirida por produtores e realizadores frente aos problemas e dificuldades de industrialização do país levara-os, forçosamente, a olharem de frente para a sua própria realidade e encontrar nela os componentes para as histórias contadas na tela. Divertidas, confusas, povoadas de tipos comuns, cheias de "jeitinhos", narradas sempre ao ritmo, se não do carnaval, certamente ao da música popular.

Este olhar que, a princípio, fora lançado forçosamente sobre a cultura brasileira possibilitou ao cinema carioca a apropriação, pode-se dizer bastante eficaz, do carnaval e da música popular com seus intérpretes. Esta eficácia pode ser observada na consagração dos artistas do radio anos 30, potencializada a partir nos anos 40, momento no qual outros aspectos da cultura carioca e do país começavam também a estar presentes nestes filmes, adicionados aos musicais numa representação de pura "folia" e de total nonsense. Era a possibilidade de festa coletiva a qualquer hora que aqueles filmes representavam.

No entanto, para a crítica, existia a frustração da expectativa constante de um cinema nacional que lançasse mão de temáticas e estéticas universais. Estes episódios não eram específicos do cinema nacional, mas, no Brasil, deixavam expostos os sérios problemas não só de produção, como também os da já sempre lembrada condução narrativa. Certamente, estes índices podiam ser lidos como voltados para os aspectos constituidores do gosto do público carioca e, porque não dizer, do público brasileiro. Sendo assim, aquilo que aparece como os primeiros problemas para a atividade cinematográfica nas décadas anteriores não havia sido superado na década de 40.

Em sua comicidade desviada do simples humor a partir da década de 40, os filmes musicais e musicais carnavalescos começaram a se definir por uma abordagem que ultrapassava aquela da junção de um enredo simples a números musicais mal integrados à trama. À medida que estes filmes iam deixando de ser apenas pontuais para se tornarem um gênero, começam a ser trazidos para a sua composição princípios da cultura popular medieval européia, ainda reminescentes na sociedade brasileira devido à colonização. Mas é preciso considerar sempre que este riso de origem medieval, ressurgido nos "filmusicais" cariocas, produz-se contemporaneamente sob o filtro de uma estética fundada na modernidade, para a qual as formas têm de necessariamente serem limpas.

Os filmes musicais carnavalescos, e depois as chanchadas, foram produções prenhes de personagens e situações de caráter popular, voltadas para um público popular, sempre revelando a ambivalência do mundo. Estes filmes davam à sociedade no caso, a brasileira uma organização cômica, diversa da forma séria concebida pelo projeto oficial do Estado, à qual prontamente aderiram a elite social, econômica e intelectual. A festa, o carnaval apresentado nas telas por estes filmes em muito se diferencia dos festivais primitivos e medievais, mas, mesmo destituído de sua forma primeira, estavam nele presentes os princípios de transgressão, do grotesco, do riso, do excesso de todas as naturezas. Esta produção cinematográfica conseguiu também colocar a sociedade carioca em comunhão, tendo sido um sucesso de público, pois, como todo ritual, o ritual de ir ao cinema tem potência de festa (2) .

Considerando para uma compreensão mais ampla dos "filmusicais" tanto a teoria antropológica da festa, quanto a teoria literária sobre a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, pode-se afirmar que a festa e as situações carnavalizadas aparecem nas culturas primitivas, medievais e renascentistas como possibilidade para uma segunda vida social. É também neste momento que se manifesta o riso popular, que é um riso renovador, não apenas irônico ou crítico, pois ri-se de tudo, inclusive de si mesmo, ri-se fundamentalmente do absurdo do mundo. Ao riso, juntavam-se o grotesco e o excesso, enfim, o universo da festa popular está ainda hoje ligado ao material e ao corporal, que são princípios também renovadores e criadores, pois suas formas de representação estão sempre em mutação ou em esbanjamento, nada é fixo ou retido (3) .

A grande festa popular é uma revivência do caos da origem, contendo em si a dimensão da ordem, da continuidade cotidiana e, por isto mesmo, da temporalidade. A festa institui um tempo mítico, de excepcionalidade, fazendo fronteira com o ritmo normal da vida e contaminando-o. Assim, ela atua no indivíduo através da produção coletiva do delírio, que cria obstáculos ao mundo profano, oficial, à sua preservação como uma verdade inabalavelmente séria, com objetivos estabelecidos e racionalizados. A festa coletiva prioriza o efêmero, pois nele exprime-se o eterno inacabamento da existência.

A festa é um momento de extraordinariedade, é um período de efervescência coletiva não necessariamente ligada aos ciclos da produção material, mas contendo mesmo ainda hoje algum tipo de referência a eles. Por outro lado, pode-se compreender a festa como uma experimentação de sentido religioso, pois ela reinstaura o sagrado, dobrando-o sobre o profano o cotidiano e, ao mesmo tempo, mantendo-se separada dele não por exclusão, mas por confusão. Pois, ao se debruçar sobre a vida cotidiana e o seu repertório de direitos e deveres, o sagrado que a festa institui não se distancia do indivíduo, mas atua nele e em todas as coisas da existência, revelando suas diferenças (4) .

No ocidente, a grandes festas populares tiveram lugar com o florescimento das cidades e da vida urbana, com o incremento das atividades comerciais, políticas e religiosas no período medieval. Para o Brasil, esta também vai ser a condição que possibilitou o desenvolvimento das tradicionais festas populares, com grande fluxo de pessoas. A cidade do Rio de Janeiro foi sempre o palco de festas famosas, como as da Penha e da Glória, e o carnaval, manifestação maior da capacidade de riso da sociedade não só carioca, mas brasileira.
Nas décadas de 30 e 40, no Brasil do século XX, o Estado tinha ocupado quase todos os espaços da sociedade, policiando-a na tentativa de implantar o seu projeto disciplinador de forma mais competente que a "Regeneração" no período da administração Pereira Passos.

O carnaval, como ritual sempre conseguiu encontrar saídas que mantivessem a integridade da sua vocação primeira de ser uma festa popular possuidora de qualidades como a ousadia da invenção. Ele permite associar elementos heterogêneos, a liberação do ponto de vista dominante sobre o mundo e de todas as convenções e dos elementos banais e habituais, além do que permite olhar o universo com novos olhos, compreender até que ponto é relativo tudo o que existe e assim admitir a possibilidade de uma ordem totalmente diferente do mundo.

O carnaval conseguiu resistir ao tempo e suas mudanças, não como uma forma congelada, mas com sua capacidade de manter e comunicar os princípios da festa popular às suas novas formas, entre elas podem-se considerar os filmes musicais carnavalescos, e os musicais que, muito mais que desfilar as folias de Momo na tela, incorporaram prontamente o princípio de carnavalização.

O Rio de Janeiro, na década de 1940, teve uma produção desses filmes muito mais intensa do que na da década de 30. É claro que o estabelecimento da Atlântida foi fundamental para o aumento da produção daqueles filmes, sendo a sua contribuição mais importante o aperfeiçoamento do gênero musical.

Já como chanchada, estes filmes apoiaram cada vez mais seus argumentos em paródias sobre os acontecimentos da vida nacional e internacional, assim como sobre suas personalidades. Como estímulo de fundo para toda esta produção, estava o deboche ao festejado cinema americano. Mas, de forma alguma, o "filmusical" foi apenas o resultado de paródias centradas nos aspectos negativos dos fatos de cinema. Parece, que os realizadores concebiam os filmes balizados por uma idéia de paródia mais ampla: considerado o distanciamento histórico, o sistema estético construído na modernidade e a própria especificidade do cinema, a paródia feita pelos filmes musicais se diferenciam da paródia medieval, mas, certamente, se filiam a esta tradição, pois nestes filmes vê-se convertido num jogo alegre e totalmente desenfreado tudo que é sagrado e importante aos olhos da cultura de elite. Os realizadores do cinema carioca usaram um recurso que não continha nenhuma novidade, pelo menos desde o século XIX o teatro de comédia brasileiro fazia uso da paródia, mas é inegável que criaram um estilo para o cinema brasileiro muito mais original e importante devido à sua qualidade de categoria de compreensão da cultura nacional.

Nas décadas de 30 e 40, as pessoas envolvidas com a produção cinematográfica carioca talvez não tivessem percebido a extensão da conversa estabelecida entre as paródias dos filmes e os parodiados. Diálogo no qual se revela a força do referencial, pois este costuma ocupar uma posição superior na escala de valores culturais estabelecidos, aliás posição sem a qual não se poderia parodiar. Por outro lado, ela também revela as fraquezas e a menos valia de quem parodia. O que necessariamente não significa apenas o reconhecimento da superioridade do cinema hollywoodiano. Antes, pode ser um reconhecimento do Brasil.

Se é possível afirmar que produtores e diretores cariocas não foram capazes de captar esta outra dimensão da relação paródia/parodiados, não se pode afirmar o mesmo quando se tratava de apreenderem o país de certa maneira, pela forma de interação do carioca na vida social.

Em 1943 é filmada a primeira comédia da Atlântida, Tristezas não pagam dívidas, sendo também a primeira das treze fitas da dupla Oscarito e Grande Otelo. No mesmo ano a Cinédia retoma a produção com Lulu de Barros, que dirige duas comédias musicais, Samba em Berlim (1943) e Berlim na Batucada (1944). Os dois filmes exploravam tanto a II Guerra Mundial como a Política da Boa Vizinhança do presidente Roosevelt. Ainda em 1946, Adhemar Gonzaga produz O Ébrio, que foi sem dúvida alguma um dos maiores êxitos do cinema brasileiro e o filme mais célebre da Cinédia.

Em fevereiro de 1947, a Atlântida lança o único filme carnavalesco daquele ano, Este Mundo é um Pandeiro, dirigido por Watson Macedo. O filme contava com a magistral seqüência de Oscarito travestido de Rita Hayworth, parodiando a famosa seqüência de "Put the blame on Mame", do filme Gilda de 1946 dirigido por Charles Vidor, na qual a atriz despe as luvas por ela usadas e que ficou consagrada pelos vários teóricos e críticos de cinema como metáfora de um streeptease. Oscarito tangência o máximo do efeito cômico, ao reproduzir com perfeição o jogo de ombros da atriz (5) .

Este Mundo é um Pandeiro significou o começo de mudança na concepção cinematográfica das comédias musicais. A partir dele, os filmes do gênero começaram a ter uma integração maior entre as suas partes e entre estas e os números musicais. Os dois filmes do ano de 1948, É com este que eu vou e Falta alguém no manicômio, dirigidos por José Carlos Burle, foram laboratório de teste para as possibilidades de recursos cômicos como a duplicidade e a inversão da ordem do mundo.

Quando, em 1949, a Atlântida lança Carnaval no Fogo, fica estabelecido o modelo definitivo das chanchadas, conseguindo reunir todos os recursos de composição narrativa das fitas anteriores, já testadas com sucesso e com garantia da aceitação do público. Carnaval no Fogo foi uma espécie de fórmula mágica, na qual os ingredientes apreendidos dos filmes musicais das três décadas anteriores foram misturados a um galã como Anselmo Duarte, uma mocinha como Eliana e um vilão com o charme e a competência de José Lewgoy, que imortalizou o pérfido "Anjo". Estava pronta a estrutura que se manteria em quase todos os filmes do gênero, até o seu desaparecimento.

Os anos 50 iniciam com o país em compasso de mudança. Se a política sofre transformações, a produção cultural mais do que nunca se alia ao novo, ao moderno, sem, no entanto, abrir mão dos seus princípios mais conservadores e fortemente ligados a uma identidade oficial. Já nos primeiros anos da República, a cidade do Rio de Janeiro transitava nesta ambivalência, em um lugar entre a modernidade e a tradição. Talvez devido a isso, as formas artísticas que daí resultaram foram tão marcantes na cultura nacional. O cinema, no seu gênero musical carnavalesco ou só musical, em que pese ser identificado apenas como paródia do competente cinema americano, foi sem muitas dúvidas o cinema de linguagem mais carioca e, contudo, muito brasileira.

Estes filmes também foram para aquele período o ritual e a festa com características polissêmica, entendida não somente como pluralidade de sentidos, mas fundamentalmente como a particularização de uma cultura específica a partir do ponto de vista dos atores sociais concretos, e como a tradução da particularidade desta cultura no nível da generalização, do entendimento ampliado. O que não cabe para estes filmes é reduzi-los à idéia de terem servido como propaganda indireta de um tipo de mentalidade oficial que deveria ser legitimada e aceita pela população. Mais do que um bom exemplo é Berlim na Batucada, que, no auge da guerra, não apenas debocha de Hitler, que então começava a perder posições para os aliados, como também debocha dos americanos, e de Vargas, que a esta altura tinha se alinhado a esses. O filme é o mundo daquele período revisitado. Era a cidade do Rio de Janeiro, que, com tantos escombros, devido às obras da administração pública, podia ser comparada à Berlim bombardeada, o que de fato faria do Rio uma Berlim na Batucada.

* Mestre em História – FAFICH-UFMG - Doutoranda em História Social da Cultura - FAFICH –UFMG


Notas:

1. AUGUSTO, Sérgio. Este mundo é um pandeiro. São Paulo. Cia das Letras. 1989
2. CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa. Edições 70. 1988.
3. “Para os parodistas tudo, sem a menor exceção, é cômico; o riso é tão universal como a seriedade; ele abarca a totalidade do universo, a história, toda a sociedade, a concepção de mundo. É uma verdade que se diz sobre o mundo, verdade que se estende a todas as coisas e à qual nada escapa. É de alguma maneira o aspecto festivo do mundo inteiro, em todos os seus níveis, uma espécie de segunda revelação do mundo através do jogo e do riso.” BAKHTIN, Milkail. A cultura popular na Idade Média e o Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo. Hucitec. 1987.p.73
4. “Compreende-se que a festa, representando um tal paroxismo de vida e rompendo de um modo tão violento com as pequenas preocupações da existência quotidiana, surja ao indivíduo como um outro mundo, onde ele se sente amparado e transformado por forças que o ultrapassam. A sua atividade diária, colheita, caça, pesca, ou criação de gado, limita-se a preencher o seu tempo e a prover as suas necessidades imediatas. É certo que ele lhe dedica atenção, paciência, habilidade, mas, mais profundamente, vive na recordação de uma festa e na expectativa de outra, pois a festa figura para ele, para a sua memória e para o seu desejo o tempo das emoções intensas e da metamorfose do seu ser.” CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa. Edições 70. 1988. P.96-97
5. VIEIRA, João Luiz. A chanchada e o cinema carioca. In: RAMOS, Fernão (Org.) História do cinema brasileiro. São Paulo: Arte Editora. 1987


Data de publicação: 26/01/2006