logo mnemocine

blowup.png

           facebookm   b contato  

Orfeu: do mito a realidade brasileira

 

A importância da trilha sonora na estratégia narrativa de Cacá Diegues e sua relação com o contexto sociocultural de uma época.

Se é verdade que a arte imita a vida, a ficção “Orfeu” de Cacá Diegues (1999) é um exemplo. Nele o diretor construiu uma história de ficção com base em dois documentários, “Santa Marta: Duas semanas no morro”, de Eduardo Coutinho (1987) e “Notícias de uma Guerra Particular”, de João Moreira Salles e Kátia Lund (1998). Cacá, mesmo tendo como referência a peça “Orfeu da Conceição” de Vinicius e Moraes e todos os aspectos míticos e trágicos da história de Orfeu, acrescentou uma dimensão realista à história e mostrou com acuidade a questão da vida na favela, da violência urbana e da cultura no Rio de Janeiro.

“Orfeu” é um filme que remonta a uma tradição realista muito vasta principalmente através da trilha sonora[1] e que é pouco comentada e debatida. A interação entre o som e a imagem é utilizada para retratar a realidade da favela carioca. A música, ou simplesmente a percussão de alguns instrumentos, faz com que o espectador localize geograficamente onde transcorre a cena e nos traz informações sobre o espaço cultural em que acontece através da combinação desses sons. Elementos auditivos e visuais se complementam entre si.
Michel Chion em seu livro Le son (2004) comenta sobre a imagem e o som no caso das narrativas cinematográficas, dizendo que este é tão importante quanto à imagem visual na composição da narrativa fílmica.
A construção de sua trilha sonora é repleta de diferentes gêneros musicais e sons que representam o país e que acabam os endereçando a um público específico. A maior parte da trilha musical do filme é formada por canções compostas e executadas por artistas ligados ao movimento do morro e outras interpretadas pelo próprio Orfeu (Toni Garrido), que é no filme um cantor popular de sucesso no morro e que com seus sambas leva a escola Unidos da Carioca a ser tri-campeã do Carnaval.
Uma forma identitária que compõe a narrativa fílmica e reveste de credibilidade ainda mais o discurso construído por trás da história dramatizada na tela, evocando efeitos no telespectador com relação à representação da chamada “vida real”.
O gênero musical como expressão cultural reúne aspectos do imaginário social, emocional e político da sociedade. Reflete desde valores mais ou menos abstratos desse imaginário até aspectos bem determinados do seu universo simbólico e utilitário. Dessa forma, certos gêneros e estilos musicais- inclua-se aí desde seus elementos básicos formais (melodia, harmonia e ritmo), até a instrumentação e a forma de tocar- relacionam-se a classes sociais, grupos raciais e práticas sociais. (TRAGTENBERG, 1999:34-35)

 

 

A TRILHA SONORA DE “ORFEU”

 

“Música de destaque no morro na época de Orfeu é o hip-hop e o funk”

Cacá Diegues (2008)

 

“Orfeu” propõe a descoberta de novas formas, de novas misturas e miscigenações que marcam tanto a música como os próprios costumes brasileiros. As canções têm grande importância na estrutura do filme e fazem parte de toda a narrativa. A todo o momento elas expõem o regionalismo e o modo de viver de uma comunidade, como no caso de Orfeu, onde o hip-hop e o samba dominam a favela do Morro da Carioca. É a maior tradução deste grupo social e do lugar onde vivem. É através das canções e dos efeitos usados que Cacá mostra o espaço da favela e do Carnaval se realizando, ampliando o que a fotografia já nos oferece.

Segundo BETTON (1987:38), “o som destina-se a facilitar o entendimento da narrativa, a aumentar a capacidade de expressão e a criar determinada atmosfera. Ele completa e reforça a imagem.”

Os sons e ruídos envolvem o espectador em espaços sonoros que indicam tensão, paixão, violência e alertas. O som tem uma função comunicativa explícita, revelando e indicando informações ao telespectador por meios sonoros diversos (desde o ruído de uma pedra batendo na janela, mostrando que jogaram ou para indicar que estão chamando alguém, até os tiros e fogos de artifício, que revelam que a polícia está subindo o morro), exemplos em “Orfeu” que serão destacados adiante. Ou seja, uma grande quantidade de informações é colocada em cena através de ruídos e efeitos, enriquecendo ainda mais o processo narrativo e o desenvolvimento de uma cena.

Em “Orfeu” podemos ouvir também assobios que fazem parte da comunicação e sinal entre os traficantes do morro além (como já foi comentado), dos fogos de artifício que avisam que a polícia está na favela. Não necessariamente o som está à vista do espectador, onde podemos ver de onde vem a fonte sonora. Um exemplo é quando temos a chegada da polícia no morro e como acompanhamento no fundo ouvimos um berimbau que cria tensão e suspense, voltando sempre durante o filme em cenas de violência, tristeza, polícia ou referente aos traficantes.

Alguns efeitos sonoros aparecem em determinados momentos de maneira totalmente participativa da narrativa fílmica, como por exemplo, um “passarinho/ uirapuru” que ouvimos ao fundo de algumas cenas dando a sensação que algo esta para acontecer, um suspense no ar, algo relacionado ao amor de Orfeu e Eurídice.

Os ruídos, efeitos e a presença da voz over, além de fazerem referências ao espaço e ao tempo em que ocorrem, são usados também fora do espaço visual da cena, como nestes casos, mas que tem a ver diretamente com ela interferindo no andamento da narrativa. A rádio local, com o locutor over, apresenta o Morro da Carioca e saúda a comunidade logo no início do filme e volta sempre participando de alguma maneira da narrativa, seja para se despedir de uma família que está indo embora da favela, tocando músicas que apresentam em suas letras o clima e a vida do morro ou mesmo para acalmar a comunidade depois de um tiroteio entre a polícia e os traficantes. A trilha de ruídos funciona no filme, muitas vezes, como trilha musical.

“A trilha musical tem função estética e psicológica de altíssimo grau, criando um estado onírico, uma atmosfera, choques afetivos que exalam a emotividade e que dá ao espectador a sensação de uma duração efetivamente vivida.” (BETTON, 1987:47).

Quando Cacá vai ao encontro da realidade procura absorver elementos do real e incorporá-los ao discurso ficcional. O espectador diante das cenas em que a polícia sobe o morro, a guerra com os traficantes, é obrigado a rever seus conceitos de gênero diante de uma cena que lhe pareça não uma dramatização, mas um fato extraído do cotidiano do morro. A intenção é produzir um som com a finalidade de causar uma determinada impressão nas pessoas que estão assistindo.

Um som pode ser expressivo na medida em que visa atingir, envolver, persuadir, conduzir, advertir, enfim, provocar uma certa reação ao ouvinte. O som produzido para criar suspense, para pontuar o desenvolvimento dramático e para aumentar a impressão sobre um determinado conflito, não é, senão, o som diretamente voltado para as emoções do telespectador, como se tudo fosse feito com a intenção de impressioná-lo. (CAMARGO, 2001:102)

 

O diretor usou um cenário contemporâneo mostrando de perto como é o convívio com o tráfico de drogas, os tiroteios, a violência policial, sem rodeios e relacionando tudo isso com a identidade nacional. O som é verossímil e o espectador se sente como se estivesse dentro da ação.

Em relação à distinção entre ruído e música, Michel Chion (2002) afirma que elementos sonoros podem ser percebidos como “música” se possuem uma periodicidade rítmica e enumera os critérios de descrição desse conceito: uma “tonalidade” (não somente no sentido musical), que ele vê também como “base” ou “fundo” (por exemplo, o ruído dos fogos e tiros seria a tonalidade dos dias na favela), marcas sonoras características de um local. “Orfeu” através do berimbau e de ruídos usados, como os instrumentos de percussão, tentou passar uma sensação de total continuum sonoro por meio de um ritmo comum a um ruído e a uma música ou a utilização de sons parecidos aos da música. Os ruídos formariam também o que o Robert Murray Schafer chama de “paisagem sonora” (soundscape) e que, no jargão técnico de som de cinema é conhecido como “som ambiente”.

A trilha musical do filme, com a inclusão do rap, do hip-hop e do samba como ambientação da favela, exerce papel fundamental em todo o contexto fílmico. A música instrumental, também muito presente no filme, acompanha a narrativa variando de acordo com cada cena e cada acontecimento, servindo muitas vezes de leitmotiv durante a história e como tema romântico ao casal Orfeu e Eurídice. Uma variedade de versões orquestrais das próprias canções apresentando ritmos e andamentos adequados para cada momento no plano extra-diegético.

A realidade é evocada a partir de índices reconhecíveis pelo público gerando assim o efeito, ou a ilusão de realidade desejados pelo diretor. Notamos também uma proximidade através dos diálogos dos personagens e que deriva muito também da contribuição dos co-roteiristas do filme: o sociólogo Hermano Vianna e o escritor Paulo Lins. Ambos se basearam em suas vivências na favela. Os diálogos dos traficantes, dos evangélicos, dos sambistas e dos próprios policiais, com as gírias utilizadas no morro, são de um realismo marcante. Pode-se ouvir na tela o que se ouve nos morros e nas ruas.

Desde as primeiras cenas temos elementos que irão compor a intenção realista do diretor durante todo o filme. Começando pelas imagens aéreas do Rio de Janeiro e em seguida da favela mostrando o contraste entre as classes sociais da cidade.

Devidamente atualizada e idealizada pelo excesso de simpatia, essa favela se destina a oferecer uma base realista ao mito. Já nas seqüências iniciais, tomadas aéreas de um Rio de Janeiro deslumbrante são intercaladas por planos do extenso amontoado de barracos de uma favela encravada no coração da cidade, revelando o contraste das classes sociais. Ecoa, aqui, a célebre abertura de Rio 40 Graus, no qual a cidade é introduzida como name before the title, ou seja, o ator principal. Trata-se de técnica realista por excelência, destinada a contextualizar o drama e oferecer um fundo social às relações individuais. (NAGIB, 2006:134)

O som do hip-hop tocado na rádio local do Morro da Carioca (favela fictícia criada para o filme) apresenta o lugar ao som da batida do rap, estilo que se destaca nos morros e com a voz OFF do locutor saudando Orfeu e localizando a época em que vai ocorrer a tragédia, o Carnaval.

Segundo NAGIB (2006:134-135):

...os planos do morro são cortados em ritmo rápido de videoclipe, acompanhando a voz over do locutor da rádio-pirata Voz do Morro, combinada a um rap. O videoclipe, produto essencialmente comercial, tem aqui dupla intenção: por um lado, ressaltar a agressividade do morro, com cortes bruscos entre planos cada vez mais próximos, que são como que “atirados” aos olhos do telespectador e, por outro, louvar a criatividade de uma comunidade pobre, mas capaz de ditar a moda musical. Ao longo do filme, o uso do rap contrasta com os sambas suaves de estilo bossa nova, contrapondo uma novidade agressiva à passividade de um ritmo consagrado.

A estética audiovisual usada por Cacá logo no início do filme em forma de videoclipe nos faz destacar como CHION (1994:21) define o ato de ver/ouvir:

...o esforço mental em fundir imagem e som produz uma “dimensionalidade” que faz a mente projetar o som “por trás” da imagem, como se ele emanasse da imagem em si. O resultado é que nós vemos algo na tela que existe somente na nossa mente. (...) Ou seja, nós não vemos e depois ouvimos um audiovisual, nós ouvimos/vemos.

A música de “Orfeu” foi dirigida por Caetano Veloso e é um painel eclético de várias tendências da música popular brasileira contemporânea e também uma homenagem aos grandes mestres do passado. Na composição da trilha sonora entraram três canções da peça. Um tema só de Vinícius – “Valsa de Eurídice” e duas de Tom e Vinícius: “Eu e meu amor” e “Se todos fossem iguais a você”. Duas que foram compostas especialmente para o filme “Orfeu Negro” de Marcel Camus. “A Felicidade”, de Tom e Vinícius e “Manhã de Carnaval”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria.

Outras quatro canções são expressas homenagens ao samba clássico do morro carioca, nas pessoas de Nelson Sargento (que canta seu samba-enredo “Cântico à Natureza”- Primavera em cena com Zezé Motta), Cartola (que ouvimos cantando “Amor Proibido”) e Dona Ivone Lara (de quem Caetano Interpreta, em cena, “Os cinco Bailes da História do Rio de Janeiro”, composto por ela, Silas de Oliveira e Bacalhau para o desfile da Império Serrano em 1965. Abrindo espaço para as clássicas marchinhas de carnaval, uma gravação antológica de “Dama das Camélias”, de João de Barro e Alcir Pires Vermelho para o carnaval de 1940, na voz de Caetano Veloso. (Press Book Orfeu, 1999: 27)

Pela primeira vez foi colocado num filme brasileiro o hip-hop, misto de música e protesto violento e cru contra a situação das favelas e sua população, gênero que se propagou velozmente pelo Rio de Janeiro e conquistou a juventude dos bailes funk e dos shows nas próprias favelas.

A ida do hip hop brasileiro para as ruas criou condições para que ele passasse a assumir cada vez mais uma postura política de confronto em relação às condições de vida dos negros brasileiros. O hip hop passou a assumir a luta contra o racismo, o preconceito e a discriminação social, como tema das letras de seus raps. (FELIX, 2005:175)

Representantes do movimento, os Racionais MC’s cantam “Jorge da Capadócia”, de Jorge Benjor. Além desses, comparecem incidentalmente vários outros integrantes do movimento, que apesar de desconhecidos na cidade já são heróis nas favelas cariocas, como Mr. Catra, do Borel, que canta “Vacilão” e “Bonde do Justo”, MV Bill, com “Traficando Informação” e Mr. Zoy, “Pela Paz”.

De certo modo tributários do movimento hip-hop, algumas jovens bandas da chamada MPC (Música Popular Carioca) também estão no filme, como Marcelo D2 interpretando “Batucada” e “Samba de primeira” e a Banda Boato com o “Rap do Cartão Postal”.

O que faz a ligação entre isso tudo e engrandece a trilha sonora do filme são as duas obras inéditas de Caetano, escritas especialmente para o filme: “Sou você”, canção de amor interpretada por Toni Garrido e que serve como leitmotiv em várias cenas, e o samba enredo da escola Unidas da Carioca, composto em molde clássico e acrescido, em determinado momento, de uma interrupção em forma de rap, escrito por Gabriel o Pensador.

Quando eu comecei a trabalhar em 80 com o início do roteiro de Orfeu, uma das idéias era fazer tudo novo, o Vinicius dizia sempre. Aliás, tinha uma rubrica na peça que ele diz que cada vez que ela for interpretada tem que ser adaptada a linguagem da época: a música e a linguagem da época. O que era uma sabedoria do Vinicius, ele era um sábio realmente. Mas quando eu fui fazer mesmo o Orfeu eu não poderia deixar de usar determinadas canções do repertório original de Orfeu. Uma homenagem minha ao próprio Vinicius. As músicas novas eu chamei um compositor que eu acho que corresponda ao tempo em que eu estou vivendo. E chamei o Caetano. (DIEGUES, 2008)

Quando uma canção se insere no texto fílmico, a força emocional pode ser bastante significativa e valida o seu uso como qualquer outra forma de composição. A canção, por conter palavras (letra e música), acaba direcionando o público quase que imediatamente para o sentido do discurso musical e sua relação com o filme. O público acaba prestando mais atenção naturalmente ao que está sendo dito através das palavras.

A canção representa uma objetividade maior que a música instrumental, pois a música pura amplia seu grau de interferência na narrativa possibilitando várias interpretações e associações com a imagem. A palavra atua mais diretamente descrevendo a situação dentro do filme e limita o espectador quanto ao número das possibilidades associativas. (CARRASCO, 1993:112)

Em entrevista concedida por Cacá Diegues, ele também destaca a importância da canção em um filme:

Eu não saberia fazer um filme sem música, sobretudo porque eu acho que a música é um elemento que contempla e completa aquilo que não esta na imagem. Eu adoro filmes que tem canções, filmes com trilhas de cancioneiro, porque a canção não só acrescenta uma coisa a imagem, mas também te dá quando aquilo esta sendo feito, qual é o espírito daquilo que esta sendo feito, a época que esta ocorrendo. A canção nos acrescenta mais alguma coisa que a trilha original não lhe dá. (DIEGUES, 2008)

O crítico do “New York Times” A.O. Scott destaca a importância das canções no filme de Cacá e, apesar de criticar alguns personagens, acaba concordando que o filme é um retrato muito próximo do real:

No final, a música, a cidade e o fervor de Diegues para com sua história, com todas suas contradições e confusões, elevam Orfeu acima de todas as falhas. Pode não ser bem-sucedido em se aprofundar na vida contemporânea ou em alçar vôos alegóricos, mas acha um meio termo vívido em algum lugar entre documentário e mito- um lugar que talvez seja o verdadeiro Rio de Janeiro no fim das contas.

Mas não é só a violência que é representada. Cacá trata de um tema poucas vezes levado as telas que é o Carnaval. Outro aspecto realista que chama atenção é um insert de uma cena do filme Carnaval Atlântida de 1952. Na televisão da sala onde as costureiras fazem as fantasias temos Grande Otelo sambando. Nessa cena percorremos um pouco da história do Carnaval no cinema brasileiro. Além, é claro, do próprio samba-enredo de Caetano: “Quando Hilário saiu/lá da Pedra do Sal/ Rei de Ouros surgiu/ é carnaval![2]- que fala do baiano Hilário Jovino Ferreira, que trouxe o rancho da Bahia para o Rio e em 1893 fundou o Rei de Ouros, embrião das escolas de samba do Rio.

Um elemento que deve ganhar destaque é o modo como é representada a importância do desfile de Carnaval e da música na vida dos moradores. Apesar de toda a violência, eles ainda têm tempo para cantar e se divertir. Temos uma representação do popular através da música e do Carnaval com rodas de samba e pessoas reunidas alegres e cantando.

O verdadeiro samba, expressão rítmica de um povo, a eclosão dos sentimentos de uma alma que categoriza o Brasil. O samba domina durante o ano e extravasa sua potencialidade no colorido das escolas de samba. Empolga o brasileiro e encanta o estrangeiro como expressão viva da cultura popular de uma nação (ALVES, 1968:176/177)

Cacá inclusive seguiu as rubricas de Vinicius de Moraes em sua peça, onde pede que sempre atualize “Orfeu” para a sua época mantendo-se fiel à cultura dinâmica dos morros cariocas, uma teia complexa de relações sociais e criatividade. O paradoxo que ele expõe é:

Sendo a favela uma vergonha social para o país, o resultado de um regime de exclusão que gera miséria, injustiça e violência, ela também é um tesouro cultural e de relações humanas [...] esse tesouro tinha que ser descoberto, estimulado e integrado ao conjunto da cultura brasileira. (MORAES, 2006:19)

Uma cena em que o som tem uma interação muito grande com a imagem é quando Lucinho (Murilo Benício) anda pela favela enquanto o desfile acontece. Um senhor da comunidade, pai de Piaba (que pertence ao grupo do tráfico) assisti o desfile pela TV com as crianças e notando a presença de Lucinho fecha a janela. Lucinho se irrita e quebra a mesma, destaque para o ruído da janela se quebrando e caindo e ao mesmo tempo em total sincronia entra a bateria ao fundo com o enredo de Orfeu em ritmo lento, demonstrando tristeza, o drama de Lucinho e acompanhando a imagem da TV que esta em câmera lenta também.

Quando Orfeu mata Lucinho, o berimbau surge novamente no fundo, junto a assobios dos traficantes imitando bichos, clima de total suspense e tensão. Orfeu mata Lucinho e ouvem-se trovões longínquos. O som do tiro é cercado apenas por um som bem longe do vento ao fundo, conseguindo dessa forma, maior intensidade dramática e ao mesmo tempo o dia vira noite.

Para finalizar, vale destacar e descrever também a última cena do filme e o tamanho da força que ela tem musicalmente. A trilha sonora é muito importante e ganha destaque dando o tom dos acontecimentos finais.

Na TV a voz de Pedro Bial apresenta a apuração do resultado do desfile das escolas. Mira (Isabel Fillardis), Carmem (Maria Ceiça) e outras mulheres bêbadas se divertem. Maicol (Silvio Guindane) pinta um quadro e canta o funk ‘’Pela paz’’. Orfeu chega ao topo do morro na frente da tendinha, ao fundo novamente ‘’Sou você’’. Policiais sobem ao som de foguetes e tiros. Sargento Pacheco (Stepan Nercessian) atira no alto-falante interrompendo a música. Som ambiente de gritos, mulheres bêbadas falando. Mira corre até o corpo de Orfeu e o mata com uma lança. Ruído da lança e silêncio em seguida destacando o momento. Maicol chocado começa a gritar e produzir sons sem sentido, agonizantes. Chorando Inácio (Milton Gonçalves- pai de Orfeu) apita demonstrando angústia com apito de ouro de seu filho, primeiro sem força, depois aumenta aos poucos no ritmo das palmas. Mira bate os pés, de joelhos Mano acompanha o ritmo de Seu Inácio. Todos acompanham uns aos outros como uma chamada rítmica. A série de tiros, sirenes junta-se ao som dos gritos de Maicol e ao apito agudo de Seu Inácio: uma música carregada de agonia e desespero, transfigurada pelo que estava acontecendo e como cenário do drama.

A tragédia final é transformada em música por Maicol e Seu Inácio, o sambista regenerado que neste momento volta as suas raízes. Segundo NAGIB (2006: 138) “Com seus gritos ritmados intercalados por um apito, eles também inventam uma nova canção, um samba - rap que promove a fusão de velho e novo, ideal e real.”

A socióloga Myriam Sepúlveda dos Santos aborda o tema da realidade do filme de outra forma. Em seu ensaio, “Orfeu negro: entre fantasia e realidade”, ela fala sobre um distanciamento da realidade de Cacá. Para ela, “as imagens de violência, pobreza e conflito urbano, mais do que um retrato fiel do que seja o Brasil, constroem um estereótipo de um país de Terceiro Mundo assolado por seus problemas sociais”. (SANTOS, 2000:37).

Enfim, a realidade foi construída e sua legitimidade é dada pelos pressupostos estabelecidos no filme. Ele mostra em certos momentos um realismo quase documental e com seus códigos de representação destacam uma impressão muito próxima da realidade através das imagens e da sonoridade expostas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, Henrique. 1968. Sua excelência o samba. São Paulo: Editora Palma.

BETTON, Gerard. 1987. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes.

CHION, M. 1994. Audio-Vision: Sound on Screen.New York: Columbia University Press.

CHION, Michel. 2002. La Musique au Cinéma - Le chemins de la musique.1995: Paris: Fayard.

_____________ . 2004. Le Son.Paris: Nathan.

CAMARGO, Roberto Gill. 2001. Som e cena. Sorocaba, São Paulo: TCM-Comunicação.

CARRASCO, Claudiney. 1993. Trilha Musical: Música e articulação fílmica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Eca/USP.

CARRASCO, Ney. 2003. Sygkhronos: A formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Lettera.

FELIX, João Batista. 2006. Hip Hop: cultura e política no contexto paulistano. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP/ FFLCH.

MENDES, Eduardo Simões dos Santos. 1994. A trilha sonora nos curta-metragens de ficção realizados em São Paulo entre 1982 e 1992. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP/ECA.

MORAES, Vinicius. 1960. Orfeu da Conceição: tragédia carioca. 2ª edição. Rio de Janeiro: Livraria São José.

___________________ .2003. Cancioneiro Vinicius de Moraes, Orfeu: songbook/músicas de Antônio Carlos Jobim & Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Jobim Music.

NAGIB, Lucia. 2006. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: COSACNAIFY.

PRESS BOOK DO FILME ORFEU. 1999.Rio Vermelho e Globo Filmes.


Entrevista:

DIEGUES, Carlos. Rio de Janeiro, 06/11/2008. Entrevista concedida a Fabiana Quintana Dias gravada em vídeo no estúdio Luz Mágica.

Filmografia:

Orfeu de Carlos Diegues (Roteiro: Carlos Diegues, Paulo Lins, Hermano Vianna, Hamílton Vaz Pereira e João Emanuel Carneiro), 1999.


Fabiana Quintana Mestranda Multimeios UNICAMP
Orientador: Ney Carrasco


[1] Convém lembrar que quando falamos de trilha sonora nos referimos a diálogos, ambientes, música instrumental, canções e efeitos/ ruídos sonoros.

[2] Trecho do samba-enredo da Unidos da Carioca no filme.