Estômago: um ponto de partida para uma análise sócioeconomica

Este texto propõe uma analise reflexiva sobre os fatores sociais e econômicos que constituem o enredo do filme ESTÔMAGO e as suas implicações no cotidiano urbano, e pode ser também um projeto de estudo para alunos do Ensino Médio.

 

É de suma importância que se observe os elementos que constituem as características sociais do nosso país, tais como a migração, o subemprego e falta de mão de obra qualificada para atender um mercado de trabalho que se expande constantemente e que esta sujeita ao dinamismo do processo de globalização da economia. 

O filme supracitado pode ser um ponto de partida seguro para estas analises, sendo uma ferramenta valorosa para discussões históricas, filosóficas e sociológicas em classes do Ensino Médio. Os alunos do 1º, 2º ou 3º ano, podem estudar o acesso migrações, analfabetismo, falta de mão de obra especializada, Ensino Técnico, prostituição, e o sistema penitenciário, apoiados nas cenas do filme, desenvolvendo projetos de pesquisa para investigar as origens, características e consequências destas questões.

 

O ENREDO E NOSSA SOCIEDADE

Observamos com facilidade que a narrativa tem seu início com a chegada do personagem principal Raimundo Nonato (sendo que mais tarde ele mesmo se autobatiza como Raimundo Canivete e posteriormente é “batizado” novamente como “Alecrim”), interpretado pelo ator João Miguel em uma cidade grande, que se mostra complexa, tornando-se um labirinto urbano frio e excludente.

Santos (2008) afirma que a recente explosão demográfica provocou um excedente de população que não encontra emprego suficiente na zona rural. Talvez tenha sido o caso de Raimundo, pois no filme a razão de sua vinda para cidade grande não é mostrada.

Segundo Glaeser (2011) existe um mito que diz que mesmo que as cidades aumentem a prosperidade, elas ainda fazem as pessoas infelizes. E foi algo próximo disso que ocorreu com Raimundo, aprendeu ofício, ganhou algum dinheiro, mas perdeu a cabeça e matou uma mulher, tornado-se um homicida. Conforme Souza (1980) as cidades são o destino final da maioria das pessoas.

A esperança de uma vida melhor é marcada por enfrentar o estranho, rumo ao total encontro com o desconhecido, pois as expectativas são incertas e abstratas. A realidade encontrada em um  espaço completamente diferente e diferenciado é um ponto de partida para a tomada de consciência de que algo  novo está nascendo. É a  maturidade da sua cidadania e de sua identidade pessoal e profissional.

Após consumir um salgado em um bar e dizer que não possui dinheiro para o pagamento, sem perceber, sem querer, sua vida ganha uma nova dimensão, pois para pagar a conta, tem que lavar a cozinha e sendo assim, inicia seu processo de aquisição de uma profissão. Zulmiro, o dono do bar, percebe que esta diante de uma oportunidade, passando a explorar a credulidade, a fragilidade e o medo de Raimundo Nonato, fazendo-o trabalhar mais e mais, nunca pagando a conta (que era o valor de uma ou duas coxinhas) e  subjugando-o em algo que pode ser descrito como semiescravidão.

Segundo as informações do Ministério do Trabalho e Emprego, consultadas no endereço  http://portal.mte.gov.br/trab_escravo, no estado de são Paulo, que possui a maior renda per capita e também um dos melhores indicadores sociais do país, em 2013 foram realizadas 17 operações de fiscalização após denúncia de trabalho escravo, e 419 trabalhadores foram resgatados.

Como podemos pronunciar a palavra cidadania e democracia no Brasil após estarmos cientes destes fatos absurdos que ocorrem em nossa sociedade?

O filme nos mostra como surge e se desenvolve uma fração deste câncer que insiste em manter suas raízes na mentalidade de muitas pessoas no Brasil, tanto no campo e na cidade. Se o Raimundo não podia pagar a conta, seria justo que fizesse algum serviço em troca, aliás, quantos minutos uma pessoa deve trabalhar para outra para pagar o consumo de uma ou duas coxinhas de carne? Foi uma oportunidade que Zulmiro encontrou para poder solucionar sua necessidade de mão de obra barata, e consequentemente, sem nenhum direito trabalhista, mesmo porque o bar de Zulmiro gera baixo faturamento.

Raimundo Nonato então passa a ter a oportunidade de mostrar as competências/habilidades que estavam adormecidas dentro de si e foram abruptamente despertadas, então ele se torna um bom aprendiz de cozinheiro, pois “tem mão para cozinhar” ,  percebendo  a essência  de seu novo  trabalho , assimilando com facilidade as características  dos ingredientes, suas técnicas de preparo, suas combinações e  os   métodos e processos necessários.

Segundo Oliveira (2000) aprender é sermos capazes de fazer alguma coisa que não fazíamos antes, é desenvolver uma habilidade, um conhecimento, uma atitude. E foi exatamente isso que Raimundo fez, criando-se, movendo-se e tornando-se um grande profissional.

Consegue fazer bons salgados, que são vendidos com facilidade, a renda do bar aumenta, e, neste ínterim, duas pessoas surgem em sua vida, uma prostituta por quem se sente atraído e um dono de restaurante que prova sua comida e enxerga nele um profissional mal aproveitado, com grande potencial para ser aperfeiçoado.

Raimundo Nonato, à  convite, muda de emprego, passa a trabalhar em um restaurante  requintado, com bom salário e demais direitos trabalhistas , ao mesmo tempo,  se envolve sentimentalmente  com Iria, prostituta que ele não vê como prostituta , e sim como uma mulher que ele ama e então a pede em casamento, que para ela , é uma proposta  complexa demais, completamente fora de seu contexto, de seu cotidiano ,e sobretudo da  vontade de seu coração ,ideal de vida  e interesse pessoal .

Iria quer ser prostituta, mas Raimundo não entende isso, não separa o fogo que lhe consome o sangue da frieza do sexo pago, ele está completamente cego de emoção. E ela apenas fazendo o que  decidiu fazer, sem se envolver emocionalmente com ninguém .

Sobre prostituição, Gaspar (1985) afirma que estudá-la visa lançar uma luz sobre um horizonte que não se restringe somente à prostituição, mas pretende também contribuir para o estudo da sedução e do comportamento humano.

Porem, suas causas são complexas de serem estudadas, interpretadas e analisadas, mas podemos afirmar que através de um levantamento feito pelos jornalistas Kaio Diniz, Vinícius Júnior e Tiago Costa, 48,8% da prostituição no Brasil é motivada pelo uso de entorpecentes, em especial o crack, segundo informação extraída do site http://www.recantofonteluz.com.br/488-da-prostituicao-no-brasil-e-motivada-pelo-uso-de-drogas.

 

A CELA E O SABER

Após ver Íria com o dono do restaurante em que trabalha na cama, Raimundo mata o casal com uma faca, e então, após ir para um presídio, sua vida tem uma nova reviravolta e ele precisa agora saber viver e sobreviver entre criminosos, em uma cela superlotada e dormindo no chão.

Conforme Pastrana (2009) no Paraná foi construída a primeira penitenciaria terceirizada do Brasil, em 1999, e era elogiada por oferecer trabalho, estudo assistência jurídica e medica par aos detentos de forma humana e democrática, alem de não sofrer rebeliões , já que não havia superlotação.

A prisão em que Raimundo foi cumprir pena era um antro de corrupção, sujeira de degeneração  humana e ele sofre com isso, é claro, porem ele tem uma arma, que é sua própria profissão, seu conhecimento em culinária, e que servirá como tabua da salvação naquele lugar imundo. Saber cozinhar será o passaporte natural que lhe garantirá uma vaga, no mínimo, no purgatório, porem, do inferno ele sairá.

Segundo Neto (2000), a pena de prisão, famosa segregação de liberdade, apesar dos pesares, é um mal necessário. Mas isso não justifica as péssimas condições de higiene que são vistas nos presídios por todo o Brasil, onde muitos detentos que cometeram crimes de baixíssima periculosidade são transformados em animais e isso contribui para o aumento da criminalidade.

  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme possui uma grande riqueza temática, pois vários assuntos podem ser analisados e é uma oportunidade de fazermos mais uma leitura do que é o Brasil, com suas características, sua cultura, seus avanços, retrocessos e particularidades.

O nosso sistema de colonização deixou marcas profundas em nossa sociedade, pois o latifúndio, a escravidão, a monocultura, o racismo e o preconceito forjaram atitudes e mentalidades que excluem grande parte da população dos direitos civis mais básicos e da democracia mais elementar. Cabe aos cidadãos honestos buscar as transformações necessárias neste país, pois muitos políticos só estão interessados em legislar em causa própria.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SANTOS, Milton. Manual de geografia urbana. São Paulo, EDUSP, 2008.

GLAESER. Edward Ludwig. Os centros urbanos. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2011.

SOUZA, Itamar. Migrações internas no Brasil. São Paulo Editora Vozes, 1980.

OLIVEIRA, Marco. O novo mercado de trabalho. Rio de Janeiro Senac-Rio  Editora,2000.

GASPAR. Maria Dulce. Garotas de programa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

PASTRANA, Débora Regina. Justiça penal no Brasil contemporâneo. São Paulo, UNESP, 2009.

NETO, Pedro Rates Gomes. A prisão e o sistema penitenciário. Ji Paraná, Editora Ulbra, 2000.

 

Oswaldo Henrique Nicolielo Maia - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.