Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente

Resenha do livro “O cinema no século” de Paulo Emilio Salles Gomes, organizado por Carlos Augusto Calil

 

Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977) é um personagem mítico da militância política, da crítica e da reflexão cinematográfica no Brasil. Agitador político, exilado no governo de Getúlio Vargas no rescaldo do levante comunista em 1935, embora envolvido desde jovem nos meios artísticos e culturais (recém-saído do colégio, com amigos de turma fundou a revista de cultura Movimento), não tinha o cinema em alta conta. Sua paixão pela sétima arte foi temporã, deveu-se primeiramente à amizade com Plinio Sussekind Rocha, importante cinéfilo e pesquisador de cinema brasileiro nos anos de 1930, e em seguida à estada em Paris.

Os anos que passou na capital francesa – uma primeira estada para fugir de Getúlio Vargas, pouco antes, pois, da eclosão da Segunda Guerra, e uma segunda após a libertação francesa em 1944 – são fundamentais para que se possa ter em vista sua “conversão” ao cinema. Em solo francês ele foi seduzido inicialmente pela efervescência dos anos da Frente Popular de Léon Blum, nos anos de 1930, que criou as condições para uma concepção de cinema – o Realismo Poético –, da qual surgiram cineastas como René Clair, Jean Renoir e Julien Duvivier.

Mais ainda, o ambiente francês lhe permitiu entrar em contato com um modo de crítica que tinha na tensão autoria artística e formação de público uma bandeira a ser empunhada. Sob esse aspecto, sua sensibilidade cinematográfica foi fortemente afetada por Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa (motivação que o impulsionou a fundar instituição similar aqui no Brasil), e por André Bazin, nome de proa da crítica nos anos após a Segunda Guerra e criador da prestigiosa revista Cahiers du Cinéma.

Escritor prolífico, sua escrita revela principalmente caráter de militância, quer, especificamente, no quesito texto político, quer na maneira de perceber o cinema como dimensão política. Assim, com impulso desbravador, Paulo Emílio ganhou notoriedade ao ocupar espaço nas páginas do Suplemento Literário do jornal Estado de S. Paulo, entre as décadas de 1950 e 1960. Mas Paulo Emílio não foi propriamente um espírito organizado; em decorrência, seus escritos se dispersaram e ele não teve paciência para publicar seu trabalho crítico em livro. Esta tarefa foi assumida por seus discípulos. Carlos Augusto Calil e Maria Tereza Machado organizaram a antologia intitulada “Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente”, publicada pela Brasiliense em 1986, cuja edição está esgotada.

Decorridos quase trinta anos daquela edição, sabedor da importância do legado de Paulo Emílio para as novas gerações, Calil agora assume a responsabilidade de organizar toda a sua obra. Assim sendo, traz à luz, sob o título “O cinema no século” (Companhia das Letras, 615 págs.), uma antologia de textos de Paulo Emílio dedicados a grandes cineastas e movimentos nacionais que influíram decisivamente na história do cinema e da cultura no século passado (o projeto editorial prevê em volume separado seus escritos sobre cinema brasileiro).

Calil dividiu o livro numa sequência um tanto arbitrária; ou, pelo menos, sem que se extraia de modo explícito um critério seguro de organização. Ele colheu e reuniu num bloco único textos que tratam da obra de determinado cineasta e utilizou o mesmo procedimento para textos temáticos. Mas o modo como cineastas e temas de caráter geral sobre cinema estão dispostos no livro não segue uma trilha que possibilitaria ao leitor seguir o que norteou o trabalho do organizador; ou pelo menos entender a disposição como reflexo de questões que mobilizaram o autor.

Assim, o bloco de textos que abre “O cinema no século” trata de Charles Chaplin, o seguinte de Georges Méliés e na sequência vem D. W. Griffith, Eric von Stroheim, John Ford, Sergei Eisenstein; mas, entre Eisenstein e Orson Welles um tema: Disney e a fantasia; e após Welles o acento em filmografias nacionais que marcaram a visão de cinema de Paulo Emílio; vale dizer, são apresentados na sequência, e em blocos temáticos, os cinemas na Espanha, Japão, Inglaterra e Alemanha.

Contudo, a ordem de entrada dos textos não perdeu de vista os grandes cineastas. De sorte que na sequência do livro se intercalam textos sobre Fellini, Rossellini, De Sica, o cinema italiano, Jean, Renoir, René Clair, Alan Resnais, o cinema francês. “O cinema no século” fecha com um bloco de textos no qual são reunidas reflexões gerais de Paulo Emílio sobre o fascínio que o cinema exerce nas pessoas, assim como sobre seu possível esgotamento e reinvenção a partir da formação de novos públicos.

A organização de uma coletânea de textos, claro, envolve decisões e escolhas. Nisso uma dificuldade de quem se propõe a dar forma de livro ao que não foi pensado e sequer sugerido para ter esse fim e, ainda, de um autor já morto. A se considerar a relevância do que foi escrito e encontrava-se disperso, em princípio qualquer critério seria válido: para o leitor ávido para ler textos poucos acessíveis de Paulo Emílio, o que importa, convenhamos, são os textos; o fato de que sua colaboração para o Suplemento Literário do Estadão não tenha se perdido nas brumas do tempo.

Ocorre que Calil não só organizou “O cinema no século” como assinou o prefácio. É indiscutível a importância dos textos, e louve-se o esforço de organização, mas um senão merece ser registrado, justamente com respeito ao prefácio: sem entrar em detalhes pontuais, Calil escreveu de maneira desnecessariamente laudatória e pouco explicativa, quando seria o caso. Ora, a escolha de Chaplin para abrir o bloco de textos do livro, assim como o uso da imagem de Carlitos na capa da edição não me parece ter seguido outro critério que não o de marketing, em conformidade com exigências editoriais.

A sujeição a exigências de marketing não traria problemas em si, e seria aceitável se não traísse o que é patente no corpo do livro: pela quantidade de textos e relevância no foco de discussão, a importância que Paulo Emílio dá a Eisenstein, Welles e Resnais e às filmografias italiana e francesa. Ora, não é o caso aqui corrigir, ou sugerir organização do livro alternativa a dada por Calil. O que se tem em vista é tão somente notar que em sua obra dispersa o exercício crítico a que Paulo Emílio se propõe – por isso de certo modo ele faz da militância no cinema o outro lado da moeda da militância política – concentra-se nos marcos que legitimam a obra de cineastas referenciais, tanto quanto na maneira como algumas filmografias nacionais lidaram com a tensão entre realização de ideal artístico e a formação de público no cinema.

De modo demasiado esquemático: todos os textos do livro giram conforme o acento se dê na identificação de elementos fílmicos que legitimem o cinema como expressão artística; ou conforme o acento se dê nas condições sociais, políticas ou culturais que possibilitem compreender a formação de público em filmografias nacionais. Calil é ciente dessa perspectiva, e com isso das possibilidades de leitura de Paulo Emílio, mas a esse respeito seu prefácio mantem-se na superfície.

Não obstante, tendo em vista este esquema geral, que enfeixa as preocupações de Paulo Emílio e forma uma espécie de espinha dorsal de suas intervenções, compreende-se que sua atuação não foi exatamente a de um crítico que acompanhava lançamentos de filmes e, assim, fornecia impressões casuais sobre obras descoladas de contexto. De fato, Paulo Emílio não assumiu o papel de crítico de plantão, escalado para cobrir este ou aquele filme, pois seus interesses pelo cinema eram outros.

Cabe então destacar que o cinema domina suas preocupações à medida que se ofereça, simultaneamente, como objeto de reflexão, no âmbito da criação artística, e como fenômeno de massa na indústria de entretenimento. Daí a exigência de que o leitor, cônscio dos propósitos do exercício crítico de Paulo Emílio, modifique o foco de atenção na leitura. Ou seja, tenha um horizonte distinto de expectativa conforme leia sobre a formação de Méliés, e com isso uma maneira de conceber o cinema no espetáculo de variedades, e sobre as inovações no uso de recursos de linguagem no cinema de Griffith.

Essa maneira de convergir os pontos norteadores de sua crítica, que escapa ao prefácio e poderia sugerir uma organização de textos diferente da que foi dada, leva a que se reflita sobre a atualidade do que Paulo Emílio escreveu. Ora, a leitura dos textos de um crítico de cinema dos anos de 1950 e 1960 pode soar estranha em certos momentos, deixar no ar a impressão de exercício de escavação arqueológica. Os textos de “O cinema no século”, no mais das vezes, fazem referência a hábitos que não se encontram nas experiências de hoje. Em várias passagens, Paulo Emílio lamenta não ter visto determinado filme porque não havia fita disponível às mãos. Em decorrência, sua pregação sempre manifesta da necessidade de formação de público. Com isso se subentende que o mercado exibidor seria pressionado a criar condições para circulação de obras cujo acesso era tão difícil.

Certo, desde o efêmero vídeo cassete, praticamente não se pode lamentar a impossibilidade de se ver um filme quantas vezes quisermos, pois dispomos hoje dos mais variados suportes. Assim sendo, Paulo Emílio se referiria a outro tempo, na mesma medida em que se equivocaria ao subentender que as meras condições de circulação forjariam um público predisposto para ver, digamos, Welles ou Resnais. Mas, e nisso a relevância de atualizar sua leitura, a formação de público implica novos hábitos diante de uma fita; ou seja, uma nova maneira de ver, uma reeducação do olhar.

Vejamos: há quem pressupõe que ver um filme – como ocorria quando este era projetado apenas numa sala de cinema – é um comportamento que consiste em acompanhar as imagens de modo ininterrupto desde os créditos de abertura até os de encerramento. Para quem parte desse pressuposto, o vídeo cassete ainda não chegou. Essa maneira de postar-se diante de um filme, comum a muitos hoje, é mais antiga que as inquietações de Paulo Emílio.

Em suma, se não há reeducação do olhar, a circulação de filmes não vai além da de meras mercadorias. E nesse sentido Paulo Emílio e seus escritos não passariam de velharias. Mas, embora nas entrelinhas ele sugerisse propor vaticínios, seus escritos antes instigam a reflexão sobre cinema. Lê-lo, portanto, é um desafio, um caminho que se abre para o leitor, independente de se filiar às suas convicções, perceber o quanto, no contingente, nas circunstâncias oportunas, ele esteve adiante de seu tempo. Espírito livre, suas considerações sobre cinema em “O cinema no século” são extemporâneas.

 

*Humberto Pereira da Silva é professor de filosofia e semiótica na FAAP, crítico de cinema na Revista de Cinema, colunista do site Cinequanon e autor de “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editora)

 

Título: O Cinema No Século


Autor: Paulo Emílio Sales Gomes

Organização: Carlos Augusto Calil


Editora: Companhia das Letras

Edição: 1

Ano: 2015

Idioma: Português

Especificações: Brochura | 596 páginas

ISBN: 978-85-3592-553-1