41ª Mostra - O Clamor da Natureza em Uma Espécie de Família, de Diego Lerman

Uma Espécie de Família (2017), de Diego Lerman, é uma coprodução com diversos países, dentre eles, o Brasil. O novo filme de Lerman, cujo roteiro é assinado por ele e por María Meira, pode ser classificado como um road movie heterodoxo, que investiga o instinto materno e as agruras da maternidade .

Dos road movies, o filme empresta a estrada enquanto imagem tanto para a deriva quanto para o processo, para a transformação. A heterodoxia da obra advém, sobretudo, da linguagem contemplativa adotada em vários trechos e da abordagem de temas essencialmente femininos. Quase todos os primeiros planos do filme apresentam Malena (Bárba Lennie) dentro de seu carro, indo a não se sabe onde. Mas, mesmo depois que ela chega a seu destino - um hospital de poucos recursos localizado numa província da Argentina -, seus objetivos permanecem obscuros.

Aos poucos, e não sem algum espanto, nós começamos a entender que Malena está envolvida numa rede de adoção ilegal, uma rede que envolve médicos, enfermeiras, advogados e cartórios. A tragédia de que todos esses profissionais se aproveitam é a de que, na região, muitas mulheres, como é o caso de Marcela (Yanina Ávila), são miseráveis demais para criar todos os filhos que têm. Em contrapartida, mulheres mais abastadas que não podem ter filhos, ou que possuem algum trauma relativo ao parto, como é o caso de Malena, acabam adotando as crianças que aquelas mulheres não podem criar.

Os dilemas vividos por Malena, portanto, são essencialmente morais. O filme, por sua vez, não julga as decisões da protagonista, todas as suas ações, por pior que pareçam, apresentam uma justificativa que o público é levado a aceitar. Da divergência entre as ações questionáveis de Malena e a identificação que somos levados a ter com ela, nasce o mais profundo incômodo e as mais instigantes perguntas colocadas pelo filme.

É verdade, por outro lado, que se nós como público não somos levados a julgar tão prontamente Malena, o universo do filme, através das forças do acaso, parece querer puni-la por cada passo dado rumo à adoção. Todo tipo de empecilho se coloca entre a mulher e seu objetivo final, desde empecilhos práticos e relativos ao trâmite da adoção, até as emoções de Marcela, passando por imprevistos da natureza.

A certa altura do filme, enquanto procura vender seu carro para arcar com as despesas obscuras que os ‘profissionais’ da adoção exigem, Malena perde o controle de seu veículo, que acaba com o pneu furado. Desacredita, ela vai em busca de ajuda, mas, quando está voltando para seu veículo, uma enxurrada de insetos começa a se formar, até se tornar tão intensa que ela se vê obrigada a retornar para dentro do automóvel. De algum modo, até mesmo a natureza parece querer advertir a protagonista sobre o ato, digamos assim, ‘anti-natural’ que ela está prestes a realizar. O caráter anti-natural do ato, nesse caso, não reside na sugestão de que a adoção, em qualquer caso, seja uma violência imoral contra laços sanguíneos ‘naturais’. A questão aqui é que as circunstâncias nas quais a tal adoção seria levada a cabo são tão violentas e degradantes, sobretudo para o lado mais fraco da corda - incorporado por Marcela -, que chegam a se tornar anti-naturais.

De fato, olhando uma segunda vez, a opção de Lerman e María por realizar um road movie ganha uma nova camada. Em Uma Espécie de Família não é apenas a estrada, enquanto imagem para a transformação e para a deriva, que desempenha um papel importante. Os derredores da estrada talvez sejam ainda mais importantes nesse caso, isto é, a natureza ao redor da estrada faz um clamor constante e central durante todo o filme. De alguma maneira, é como se Malena estivesse realizando uma viagem em busca de seus instintos mais primevos, de sua intuição mais primordial. É bastante significativo, portanto, que aquilo que inicialmente ela cria ser seu instinto materno mais profundo acabe se revelando, enfim, o exato oposto do que parecia ser.

A opção por realizar um road movie, é claro, também tem a ver com a determinação em revelar o lado miserável e esquecido da Argentina. Neste sentido, Uma Espécie de Família é um filme gêmeo de Pauline (2015), de Santiago Mitre e produzido por Walter Salles, com o qual também divide questionamentos profundos sobre a maternidade e sobre a condição feminina na contemporaneidade. Vale a dobradinha, ainda que ela exija um belo preparo emocional.

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários