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Um método perigoso (2011), de David Cronenberg

O filme relata a história da relação entre Sigmund Freud, Carl Jung e Sabina Spielrein, reconstituindo momentos decisivos da história da psicanálise.

Cronenberg, que ao longo da década de 80 ficou conhecido como o cineasta da escatologia e da insanidade (o que lhe rendeu o apelido de “o barão do sangue”), lança mais um filme com uma abordagem naturalista. Ao mesmo tempo em que essa abordagem foge desse primeiro Cronenberg, a temática psicanalítica retoma uma constante em seu trabalho desde sua primeira produção, o curta Transfer (1966), no qual já tratava da relação entre um analista e seu paciente.

No início de Um método perigoso Sabina, que está tendo crises histéricas, começa um tratamento com o psicanalista Jung, que testará nela um tratamento inovador, a “cura pela fala”, desenvolvido anteriormente por Freud. Ambos passam a se encontrar e tentam estabelecer uma parceria, porém com o tempo Jung manifesta desacordo em relação à teoria de Freud sobre a sexualidade humana, o que posteriormente culminará no afastamento de ambos.

O roteiro do filme teve uma base dupla. Em 1993 John Kerr escreveu o livro A Most Dangerous Method: The story of Jung, Freud, and Sabina Spielrein, que serviu de inspiração para Christopher Hampton escrever a peça The Talking Cure em 2003. Ele escreveria, em 2011, o roteiro de A dangerous method. Na introdução de A most dangerous method John Kerr escreve:

“In providing an account of the founding period of the psychoanalytic movement, this study joins a small number of understanding to psychoanalysis. (...) By surveying most carefully the ground upon which psychoanalysis was built, critical history can provide a map for those who wish to renovate it or build extensions. This book is written in hope that it will significantly improve the prospects for psychoanalysis, now murkily hopeful at Best.”

Vê se como uma espécie de crise atual do discurso psicanalítico que anima o texto vincula-se com uma abordagem com uma consciência histórica bastante particular. Como veremos, trata-se de uma “objetividade” histórica, factual mas que não elimina de todo um direcionamento incisivo em termos de discurso.

De fato, o filme é unanimemente aprovado por autorizados da área pela sua absoluta fidelidade histórica. Nesse sentido, não é de se surpreender que esse filme tenha sido feito por um canadense – a escola canadense de psicanálise, fundada num primeiro momento por Ernest Jones, é notável pela forma particular de se fazer história da psicanálise que privilegia certa objetividade biográfica e cronológica em detrimento da análise exegética dos textos fundamentais do movimento. É, de certa forma, nessa chave que se sustenta certa desautorização das especulações de Jung, que insiste que “nem tudo se reduz à sexualidade” enquanto tem um caso com uma paciente. Apesar disso, a “objetividade-histórica” do filme não permite que ele tome partido. É evidência disso a cena em que a “mise-en-scène” não desmente a tese do “fenômeno catalítico de exteriorização” que Jung apresenta ao cético Freud. No entanto, o que o filme faz é enraizar as noções de interioridade, autonomia e individualidade ao protestantismo de Jung que, afirmando sua autonomia luterana de aluno, “mata o pai”.

A elaboração histórica do filme realiza-se dialeticamente na idéia de que trata simultaneamente de uma história sobre o início da psicanálise e sobre seu fim, ou melhor, sobre seus limites. Aqui o conflito central é representado pelo embate entre Freud e Jung. O conformismo rigoroso, cético e quase cientificista de Freud (para quem “o mundo é como é, e compreender e aceitar isso é o caminho para a saúde psíquica”) contrapõe-se ao descontentamento de Jung, que aponta para fora desse sistema, mas na direção de especulações metafísicas postas com certa ingenuidade.

A possível resolução figura-se na forma de Sabina Spielrein. Ela é, vale dizer, a personagem que mais sofre transformação ao longo do filme. Como bem disse Christian Dunker, “Jung é genial porque percebe que a espasmódica e enlouquecida Sabina tem o grão de ousadia necessário para se tornar psiquiatra. A ‘loucura’ de Sabina é a causa eficiente do filme. Alerta para a insanidade das fronteiras e para a força criativa que acompanha a destruição da individualidade”.

Na abertura do filme, vemos, do lado de fora, Sabina chegando de carruagem para ser tratada; no desfecho, a vemos do lado de dentro de uma mesma carruagem, dessa vez partindo. De louca, Sabina não passa apenas a normal, mas a analista. Sua trajetória delineia um movimento central na epistemologia psicanalítica: partir do patológico para o normal, esfumaçando as fronteiras entre os dois. Como analista, Sabina apresentará uma teoria que, segundo Freud, teria provocado um dos debates mais estimulantes na sociedade psicanalítica – a ligação entre sexualidade e morte já anteciparia a teorização sobre a pulsão de morte que Freud desenvolverá uma década depois, em Além do princípio do prazer. Trata-se de pensar a “pulsão sexual como força demoníaca e destrutiva”, e simultaneamente como “força criativa, no sentido de que pode produzir, com a destruição de dois indivíduos um novo ser.”

A sua maneira, a tese de Spielrein aponta para o tema cronenbergiano da dissolução do eu – uma das poucas constantes a se manterem com a passagem à dita nova fase de Cronenberg, iniciada no século XXI com Spider (2002). Essa idéia de síntese através da dissolução é claramente ilustrada no pôster de divulgação do filme: Sabina aparece entre Freud e Jung, no centro e à frente, como síntese superadora do conflito posto pelos dois pilares Jung e Freud. Em duas das três versões, Sabina aparece semitransparente, de forma que as figuras de Jung e Freud se sobrepõem à dela ilustrando a idéia de fusão através da dissolução – nas palavras da própria Sabina: “produzir com a destruição de dois indivíduos um novo ser.”

Na mesma linha, parece interessante que nos dois momentos em que Freud e Jung discutem explicitamente sua relação (ambos nos jardins de Belvedere, em Vienna) o plano se encerre num enquadramento que privilegia uma curiosa estatua antropomórfica de uma leoa. Como nos dois planos de Sabina na carruagem, estes dois também são espelhados enfatizando o movimento de conflito.

É como se a resolução desse conflito só pudesse aparecer na sugestão dessa figura que não é um homem, primeiro porque é uma mulher, mas principalmente porque também não é exatamente humana, pois esse conceito já fora hipostasiado em ideologia através do desgaste da noção de individualidade – uma lógica de figuração que lembra a do “caráter destrutivo” de Walter Benjamin.

A “objetividade histórica”, no entanto, não deixa de cobrar seu lugar ao narrar o triunfo da racionalidade instrumental através do pano de fundo das guerras mundiais. Aqui segue uma análise mais detida da última cena. Sua abordagem despretensiosamente naturalista esconde uma estrutura discursiva extremamente precisa através da mediação de uma psicopatologia no interior do diálogo. O jogo entre conteúdo latente e manifesto é posto logo de início quando Jung começa relatando um sonho – a dita “via régia” ao inconsciente – a Sabina:

Jung: Não tenho dormido muito bem, e fico tendo esse sonho apocalíptico. Uma inundação terrível do Mar do norte até os Alpes. Casas arrastadas. Milhares de corpos flutuando. Às vezes ela bate no rio com uma onda, e a partir daí, a água que vem descendo como uma grande avalanche, se tornou sangue. O sangue da Europa.

Sabina: O que acha que isso significa?

Jung: Não tenho idéia, a não ser que esteja prestes a acontecer. Quais são seus planos?

Sabina: Estamos pensando em voltar para a Rússia.

Jung: Contanto que saia de Viena.

Desse “pressagio místico” de Jung, os dois seguem conversando sobre a disputa de Jung com Freud. O paternalismo parece ser o elemento central da recusa de Jung ao fundador da psicanálise. Toda interioridade protestante de Jung exterioriza-se num grande discurso humanista. Aqui ganham força os paralelos desse dialogo com às conversas de Freud e Jung no navio (as duas cenas ocorrem à beira da água, e é durante a viagem que Freud recusa-se a compartilhar seu sonho com Jung) já que é ao chegar nos Estados Unidos, diante da estátua da liberdade que Freud fala sua famosa frase, citada mais tarde a Lacan, por Jung:

Jung: Na minha opinião, o que estamos vendo é o futuro.

Freud: Acha que eles sabem que estamos a caminho, levando a praga a eles? A imagem da estátua da liberdade é extremamente forte pois remete diretamente à matriz discursiva, cunhada sob a revolução francesa, dessa noção liberal de liberdade: centrada no indivíduo, na escolha e na noção moderna de autonomia. Esse mundo que será vítima da “praga” representada pelas contradições identificadas pelo desenvolvimento incipiente da psicanálise.

Talvez seja por isso que logo em seguida, a conversa entre Jung e Sabina passe a tratar da nova amante de Jung. Aqui ele aparece como vitima de certa esquizofrenia que o divide entre a amante e o núcleo familiar – como evidência da insustentabilidade da “indivisibilidade” do indivíduo. Quando sua nova amante, Toni, é identificada como uma repetição da sua relação com Sabina, a atenção passa ao filho de Sabina. Aqui Jung encerra a cena com a última frase do filme:

Jung: “As vezes você tem que fazer uma coisa imperdoável só para poder continuar vivendo.”

A construção alegórica desse último diálogo permite extrair significados mais profundos dessa frase forte. Em seguida vemos intertítulos que nos informam do destino dos personagens: na esteira do marido, também judeu, Sabina morre fuzilada com os filhos pelos nazistas. Freud, expulso pelos nazistas da Alemanha, morre de câncer em Londres – a referencia aos nazistas no caso e Freud parece claramente diegética, pois não é exatamente necessária. Se isto não causou estranhamento, o próximo intertítulo, sobre Jung, certamente causa: o ariano teria sobrevivido não só aos dois colegas psicanalíticos, como também à sua esposa e sua amante (judia também) para tornar-se o “maior psicólogo do mundo”, morrendo em paz em 1961. Tudo isso, só depois de sofrer um “colapso nervoso prolongado durante a primeira guerra”. Tudo se passa como se a lógica do indivíduo, para sobreviver como tal, teve de passar por duas “imperdoáveis” guerras mundiais, para suprimir esse potencial crítico da dissolução do eu. Pois, como já teria dito Sabina, “Mas o indivíduo deve sempre superar a resistência por causa da natureza auto-destrutiva do ato sexual.”

Dessa forma, esse esboço de síntese dos dois representado por Sabina é fuzilado junto com seus filhos. Assim, fazem mais sentido as contínuas referencias sobre judeus, arianos e protestantes, já que, ao menos na tese da Dialética do esclarecimento, a lógica do anti-semitismo representa a pedra de toque da metafísica da identidade. Por isso, ao apresentar seu trabalho a Freud, Sabina dirá, expondo sua principal preocupação: “Eu só acho que se vocês dois não acharem um jeito de coexistir, vocês acabarão atrasando o progresso da psicanálise talvez indefinidamente!” Aqui a referencia à suposta crise na psicanálise (apontada por Kerr) é evidente. Com o filme, vê se como o século XXI cristaliza-se com uma “cultura psicanalítica”.

Evidência performativa disso é a existência de um filme histórico sobre o nascimento da psicanálise feito em padrão hollywoodiano de indústria numa produção milionária. O que se vê, em Um método perigoso, é a forma pela qual a incorporação do potencial crítico da dissolução do eu presente na experiência da psicanálise se manifesta através da transformação do discurso psicanalítico em núcleo ideológico de reposição de estruturas materiais.

 

Algumas referências:

ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar: 2006.

BENJAMIN, Walter. O caráter destrutivo. Em: BOLLE, Willy. (ORG.) Documentos de cultura, documentos de barbárie: textos escolhidos. São Paulo, Cultrix: 1986.

DUNKER, Christian. Entrevistado por Anna Carolina Lementy Jezebel: Um método realmente perigoso. 31 mar, 2012, www.jezebel.com

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). Em: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Volume VXII. Rio de Janeiro, Imago: 1996. pp.11–85.

SPIELREIN, Sabina. Über den psychologischen Inhalt eines Falles von Schizophrenie (Dementia Praecox). Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen (1912): 3:329–400.

KERR, John. A most dangerous method: the story of Jung, Freud and Sabina Spielrein. New York, Vintage Books: 1994. (e-book)

LAPLANCHE, Jean. & PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins Fontes: 2001 Artur Renzo, Abril, 2012

* Artur Renzo é graduando em Filosofia (USP) e Comunicação Social com habilitação em cinema (FAAP). Atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica pela FAPESP com o título “Sobre a espetacularização da imagem em Stanley Kubrick: dialética de forma e conteúdo em De olhos bem fechados.”