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Vênus, Um Filme Irrelevante

O documentário Vênus (2016), de Lea Glob e Mette Carla Albrechtsen, foi exibido em São Paulo no mês passado pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Colocado na categoria Mostra Novos Diretores, o filme tinha pouca chance de chamar atenção, já que não chegou a ser exibido em grandes festivais, não foi muito comentado pela crítica, nem colocado nas listas do que assistir na Mostra, feito por jornais como a Folha de São Paulo.

Em meio ao mar de filmes disponíveis na Mostra, Vênus era um filme irrelevante. Os cinéfilos tinham outras prioridades, como o novo filme de Ai Wei Wei ou de Ágnes Varda.

Mas o documentário Vênus não era apenas irrelevante no comparativo da Mostra. Um filme tão simples que beira o banal dificilmente chamaria a atenção. Não é um documentário sobre guerras, tragédias ou personalidades públicas, mas um filme extremamente delicado sobre um tema quase abandonado: a sexualidade feminina.

Pode parecer absurdo chamar o tema de abandonado em meio à onda feminista que vem se formando nos últimos tempos, mas a verdade é que a abordagem sobre a sexualidade feminina ainda parece muito restrita ao debate sobre assédios e abusos que as mulheres sofrem todos os dias. E não à toa já que é um assunto tão urgente.

Mas por isso mesmo continua pairando uma dúvida sobre do que de fato as mulheres gostam. O que satisfaz as mulheres? O que elas pensam e sentem como sujeitos ativos da troca sexual ou em relação ao seu próprio corpo quando estão sozinhas?

Vênus atinge o tipo de simplicidade que só anos de entrevista e pesquisa podem conferir a um documentário, a simplicidade característica de um Coutinho (Eduardo Coutinho, documentarista brasileiro).

Trabalhando quase o tempo todo com closes no rosto das entrevistadas e dirigindo o olhar delas para a entrevistadora (atrás da câmera), o filme nos coloca como espectadores de uma sessão de terapia. E passados por volta de uma hora e meia ouvindo os relatos dessas mulheres sobre suas experiências sexuais, ou sobre a falta delas.

Essa sensação é quebrada apenas por alguns raros momentos em que planos gerais tomam conta da tela e evidenciam o corpo completo daquela que antes era só um rosto. Passamos da parte cerebral do sexo, do pensar e fantasiar sobre ele, para nos deparamos com o físico. Com que corpos essas mulheres vivem e se relacionam? E como isso muda as suas experiências? Toda a complexidade da discussão é transmitida através da construção minimalista das imagens.

O ambiente neutro e vazio, composto apenas por uma cadeira, além das roupas também neutras das entrevistadas não nos dão muitas pistas a respeito de onde vem cada uma. Ao contrário dos filmes de Coutinho, nesse a classe das locutoras não transparece ao público e não é colocada como questão básica para entender o depoimento de cada mulher.

 Em entrevista as diretoras declararam que este era o filme que gostariam de ter visto em suas aulas de educação sexual na escola. E talvez por isso o documentário pareça ter sido todo feito com amigas de uma mesma vila.

A intimidade que sentimos pelas personagens vem em grande parte da naturalidade com que se colocam, mesmo quando parecem um pouco constrangidas com o assunto. Entrevistadas e entrevistadoras parecem se entender perfeitamente e não sentimos em nenhum momento o incômodo que grandes distâncias sociais de classe, etnia ou gênero podem causar nesse tipo de obra.

As diretoras chegaram a retirar falas do corte final por pedido de algumas entrevistadas que se arrependeram do que falaram frente às câmeras. O que demonstra mais uma vez o porquê da segurança das personagens em se abrir. O dilema ético do documentário muitas vezes só pode ser resolvido na montagem e as artistas foram muito coerentes com seu projeto.

O recorte colocado pelo filme não é muito amplo em diversidade social de fato. Mas a obra não se pretende universal, tanto que as diretoras já anunciaram uma continuação do documentário, reconhecendo o quanto ainda se pode explorar sobre o tema.

Vênus é então um filme completo em si mesmo, um documentário feito em conjunto entre diretoras e personagens onde as dicotomias sexuais, ainda que de um grupo restrito, são colocadas à vista e a totalidade do termo “mulher liberada” é desconstruída. O documentário é irrelevante porque trata do banal e é apenas repensando aquilo que consideramos banal e cotidiano que podemos nos transformar de fato.

 

Julia Gimenes é  formada em cinema e trabalha como montadora e fotógrafa desde então. Apesar do amor por fazer cinema, pensar sobre ele também sempre a encantou.