O Colecionismo 1: Os Anders(s)ons e O Colecionismo Trágico

Por João Nobrega

Grande Hotel Budapeste (2014), de Wes Anderson

Wes Anderson e Roy Andersson, em que pese suas especificidades estéticas, buscam examinar a tragédia humana em suas miniaturas de colecionador

Se há algo de que estou convencido é de que deve have algum tipo de paradigma cármico determinante para o talento cinematográfico: Três grandes cineastas da atualidade carregam Anders(s)on no nome: Wes, Paul Thomas, e Roy.  

Talvez uma conjunção astrológica explique, talvez seja uma questão genealógica e todos guardem um grau secreto de parentesco, ou talvez seja apenas uma justaposição mágica de letras. Enfim, à parte determinações místicas (e míticas), dois dos três Anders(s)ons são o assunto desse texto, Wes Anderson e Roy Andersson.

Wes Anderson é um cineasta norte-americano, de seus 40 e poucos anos, conhecido por sua linguagem livresca e nostálgica, cujos três últimos filmes (O Fantástico Senhor Raposo, de 2009, Moonrise Kingdom, de 2012 e O Grande Hotel Budapeste, de 2014) lhe renderam prestígio na Academia e algum sucesso, além de ter galgado, já há alguns anos, o status de ícone da juventude indie (o que quer que o vago termo indie signifique). Roy Anderson é um cineasta sueco, de seus 70 e poucos anos, que realizou alguns longas-metragens, sendo que seu primeiro filme (A Swedish Love Story, de 1970) foi um grande sucesso na Suécia. Além disso, Roy possui vasta trajetória na publicidade, na qual realizou comerciais comicamente surreais. Ele ficou mais conhecido recentemente por sua Trilogia Sobre Ser Um Ser Humano, cuja última parte, Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência (2014) venceu, entre outros, o festival de Veneza.

Como ficou claro, o que separa esses dois cineastas é mais  do que um "s" no sobrenome. Assim como o que os une é mais do que a  prosaica coincidência de um sobrenome em comum. Para começarmos a partir de primeiras impressões: ambos os cineastas são reconhecidos por criarem uma sensação de reconhecimento imediato de suas obras, o poder gráfico de suas imagens é tão grande que elas funcionam como assinaturas de si mesmas, como quando reconhecemos o traço e as cores de um pintor da estirpe de um Picasso, de um Matisse ou de um Van Gogh. Roy e Wes, aliás, apelam para uma linguagem muito pictórica em geral, ou seja muito próxima das pinturas: os quadros abertos, pontos de fuga centralizados ou muito bem definidos (o que se chama de rigor formal), paletas de cor constantes durante todo o filme e semelhantes entre as obras. É bem verdade que, se as cores predominantemente quentes  (amarelos, vermelhos, rosas, laranjas, etc.) e os tons pastel de Wes Anderson evocam aconchego e uma atmosfera de livro infatil, os cinzas esverdeados, marrons e azuis de Roy Andersson evocam tristeza e apatia. De qualquer forma, o que ambos atingem com esses recursos é uma atemporalidade notável, Wes transporta elementos dos anos 60, 70 e 80 indistintamente para dentro de seu universo farsesco, enquanto Roy apresenta uma contemporaneidade envelhecida e desbotada, com elementos pontuais de um passado recente.

Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre A Existência (2014), de Roy Andersson

Outro ponto de contato entre os cineastas é a criação de personagens e a direção de atores. Roy e Wes criam personagens sempre cheios de manias e trejeitos, sempre fora da curva, marginais de algum modo, muitas vezes por estarem fora de seu tempo, por serem antiquados. Além disso, cada um a seu modo, o que os Anders(s)ons parecem buscar em seus atores é certa indiferença, certa apatia, ou o que os antigos chamariam de fleuma. Tanto nos filmes de Roy como nos de Wes os personagens parecem se deixar arrastar pela narrativa, como se não houvesse outra escolha, como se estivessem anestesiados. Roy reforça esta sensação com uma maquiagem que empalidece seus atores,  fazendo-os parecer mortos-vivos (de fato um dos filmes da trilogia tem o irônico nome de Vocês, Os Vivos - 2007). 

Dessa junção de atmosferas muito próprias e atemporais com atuações que chamei generiamente de "apáticas" e ao mesmo tempo excêntricas, surge o que gosto de nomear de uma linguagem do colecionismo. Mas por que uma linguagem do colecionismo? Porque o colecionador é uma figura que reune elementos do presente ou do passado, indiferiencidamente, e organiza-os segundo semelhanças, manipulando-os à vontade numa caixa, assim como os Anders(s)ons fazem com os personagens-tipo e objetos de cena de seus universos atemporais.

O filósofo alemão Walter Benjamin, ele mesmo um colecionador, definiu a tarefa do colecionador como a daquele que retira um objeto de seu tempo, despindo-o de sua utilidade imediata para torná-lo um objeto de acesso ao tempo de onde foi retirado, o objeto passa a valer por ele mesmo, enquanto memória histórica. Por exemplo uma coleção de lâmpadas não serve de nada para iluminar sua casa, mas talvez revele uma espécie de genealogia das lâmapadas, e até mesmo alguns aspectos do contexto em que foram criadas. Há algo de melancólico no colecionismo, ele luta contra a passagem natural e inevitável do tempo. Em linhas bastante gerais, e espero que sem grandes alterações, esse é o pensamento de Benjamin.

Wes e Roy fazem um cinema carregado dessa melancolia do colecionista: Wes quase sempre olhando para uma infância desvirtuada em meio a famílias desajustadas, e Roy em seus painéis sobre as  infindáveis mazelas contemporâneas. Entretanto, nos filmes acima ilustrados, os cineastas parecem ter encontrado mais um denominador comum. Roy, na conclusão de um movimento que já vinha se realizando em sua trilogia, e Wes inspirado pela vida do escritor - e colecionador - vienense Stefan Zweig, trazem a História como elemento vivo de seus filmes. O último filme de Wes remonta ao entre-geurras (visando novamente certa atemporalidade) e apresenta Zubrowka, um país fictício do leste europeu, em que se passa uma narrativa farsesca sobre herança e roubo de quadro no interior. Essa narrativa aparentemente despretensiosa vai esbarrar na ascenção do nazifascismo, e somos levados a uma reflexão sobre a barbárie na civilização ocidental e sobre a necessidade de preservação de memória histórica, simbolizada pelo próprio Hotel do título (talvez a maior caixa de colecionador que Wes já criou). Roy Andersson, narrando a história de uma dupla de apáticos vendedores de artigos de diversão traz a História em diversos momentos, mas há uma sequência em que isso se torna particularmente claro:  enquanto os vendedores param num bar, o rei Carlos XII e sua tropa surgem do nada, vindos do passado. Carlos XII é um símbolo de glória para o nacionalismo fascista da Suécia, e na sequência aqui citada, o rei aparece frágil e mimado, além de ficar insinuada sua homossexualidade, em óbvia afronta aos valores conservadores dos nacionalistas.

Ainda que com ênfases bastante distintas, Wes Anderson e Roy Andersson buscam, através de seus colecionismos, atentar para as tragédias da humanidade, mas não sem algum elemento satírico, seja condensando os embates históricos entre a Europa cosmopolita e o nacionalismo fascista numa comédia farsesca, seja tirando sarro de alguma figura importante para certa Historiografia sueca. Assim também é possível, para nós, colecionar semelhanças cinematográficas, como todo colecionador que procura os semelhantes para catalogá-los em seus arquivos.

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários