O Colecionismo 2: De Tati Aos Anders(s)ons

Por João Nobrega

Jacques Tati é a fonte em que bebem os Anders(s)ons para constituir seus respectivos colecionismos

Os dois cineastas que foram objeto da primeira parte desse artigo devem, sem dúvida e declaradamente, muito de seu colecionismo a um cineasta francês que produziu entre as décadas de 1930 e de 1970.

Relativamente pouco lembrado hoje em dia, Jacques Tati foi um grande jogador de rugby antes de adentrar o mundo das artes e do entretenimento. Neste mundo, ele começou sua carreira como mímico e mágico. Em 1932, Tati começou a roteirizar e atuar em curtas-metragens, e em 1947, Tati lançou seu primeir longa, o vencedor do pêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, Jour de Fête (Dia de Festa). Com seu gracioso e atrapalhado personagem Mr. Hulot, presente em todos os seus longas, Tati fez dois de seus maiores sucessos: As Férias do Senhor Hulot (1953), e Meu Tio (1958). Depois veio seu filme mais inventivo, e também o mais mal recebido à época, o grandioso Playtime (1967),em que se construiu praticamente uma cidade cenográfica inteira.  O último filme de Tati foi Traffic (1971), um pouco melhor recebido que Playtime e novamente nos trazendo Hulot.  Assim Tati se tornou um dos grandes nomes da comédia, por seu humor tipicamente "mímico", e do cinema, por sua linguagem única.

O estilo "mímico" de Tati  era fazer filmes com pouquíssimas falas e  permeados por gags visuais, o que, aliado ao aspecto gráfico de seus filmes, fazia com que seus filmes se parecessem muito com uma "animação live action". Não à toa, uma recente homenagem feita ao diretor, o filme O Mágico (2010), que tem por base um roteiro até então não realizado de Tati, é uma animação dirigida por Sylvain Chomet, aquele de As Bicicletas de Belleville (2010). A premissa básica de O Mágico é que um ilusionista, no filme nomeado como Jacques Tati (não mais carregando o nome do clássico personagem Mr. Hulot) vai perdendo, assim como outros artistas do Music Hall*, espaço para as então insipientes bandas de rock 'n roll. Tati, assim, deixa Paris, e vai para Londres, mas lá as coisas vão igualmente ruins para sua classe. Tati começa então a fazer shows pelo Reino Unido, até que , num pub escocês, ele encontra uma jovem que lhe permite rever sua vida. Há aqui qualquer coisa melancólico sobre ver um mundo desaparecer no horizonte, um horizonte até então próximo, mas furtivamente afastado.

Este sentimento melancólico permeia toda a obra de Tati, é bem verdade que de maneira mais acentuada em O Mágico, que perde quase toda sua aura de comédia, justamente por tratar do minguar de um tipo de humor e de um modo de ver a vida. Mas também em Meu Tio, Tati de alguma forma opõe uma Paris antiga, cheia de verdes e ruínas, onde Hulot mora, à casa super moderna e estéril dos cunhados de Mr. Hulot, o industrial Charles Arpel e sua mulher, Madame Arpel. Da mesma forma, Playtime é um comentário irônico sobre a modernidade arquitetônica de Paris, e novamente Hulot aparece perdido, mas sempre triunfante, em meio à esse espaço insípido e mecanizado. Bem, em linhas gerais já é possível perceber o sentimento colecionista de que estamos tratando. Mas não é apenas num plano temático que Tati remete à este sentimento, a linguagem de Tati também se demonstra extremamente colecionista.

Como já disse, a cidade de Playtime foi interamente construída de modo artificial, e não era raro que muito dos cenários de Tati também o fossem. Essas eram as caixas de colecionador de Tati, também povoadas por seus tipos, colhidos nas ruas de Paris, assim como um Daumier** fazia para realizar suas caricaturas. Mr. Hulot era o maior dos tipos, o próprio colecionador, lutando contra o sumiço de um mundo em constante ameaça. Bem, este é o sentimento maior de grande parte dos protagnoistas de Wes Anderson, notadamente de  Mr. Gustave em O Grande Hotel Budapeste (2014), assim como este sentimento sustenta todo o questionamento que Roy Andersson lança aos males contemporâneos, de maneira bastante benjaminiana***.

Não apenas isso, mas a investida teatralizante de assistir uma ação à distância, de modo a contemplá-la como um quadro, tal como acontecia nos filmes do Primeiro Cinema (aquele produzido entre 1895 e 1915),  que Roy utiliza para dividir suas crônicas e reforçar a contemplação necessária a seus filmes, e que Anderson, com seu impulso de espetacularização, transforma em seus planos longos e complexos, durante os quais os personagens entram e saem do camp ode visão, como fazem no palco do teatro, é uma característica que remete a linguagem de Tati. O estilo de gags visuais próximas à animação, e que deve muito  à própria mímica, em Tati, também é utilizado por Wes Anderson e Roy Andersson (embora este transforme-o num humor negro) , de modo a realizar um movimento de reavaliação e revalorização de um tipo de humor que Jacques Tati acreditou estar praticamente morto. Há todo um resgate de elementos de linguagem ligados ao início do cinema.

É importante dizer que não se quer estabelecer uma relação mágica entre esses cineastas, mas sim uma espécie de vínculo histórico, uma vez que ambos (Roy e Wes) já declararam que bebem na fonte de Tati, principalmente Roy.  O que busquei fazer foi evidenciar o impulso colecionista desse olhar que os Anders(s)ons lançam à Tati, e que está presente na obra do próprio Mímico. Talvez se trate de algum tipo de magia, então. Dispor os semelhantes numa caixa de colecionador é um movimento quase alquímico. Salvar, pela criação de imagens, um mundo que parece constantemente ameaçado, na verdade já em ruínas, como fazem esses três cineastas, é a tarefa do colecionador.

* Espécie de teatro popular do Reino Unido muito semelhante ao teatro de revista brasileiro e ao Vaudeville norte-americano e que foi muito popualr entre 1850 e 1960. Mágicos, Ilusionistas, Trapezistas, Dançarinos e outros artistas costumavam se apresentar no Music Hall.

**Honoré Daumier (1808 - 1879) foi um pintor, ilustrador, caricaturista e chargista francês. Ficou conhecido como "Michelangelo da Caricatura".

*** Relativo à obra de Walter Benjamin, filósofo alemão já citado na primeira parte deste artigo

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários