As Feridas Abertas de Berço Esplêndido

Por João Nobrega

Berço Esplêndido, selecionado para a última edição da Mostra Tiradentes (SP), é o primeiro longa de Lucas Acher e explora, com melancolia sutil, as angústias de nossa geração

Berço Esplêndido (2018), selecionado para a última edição da Mostra Tiradentes (SP), é o primeiro longa-metragem de Lucas Acher e da produtora Balcão Filmes. O filme explora, com uma melancolia sutil, mas muito típica, as angústias de nossa geração.

O filme gira em torno da figura de Alex Alonso, amigo e parceiro de criação artística do diretor. Muito embora a figura de Alex tenha sido a inspiração primordial para o projeto, o filme não é exatamente um documentário. Filiando-se a uma tendência estética muito presente no cinema brasileiro contemporâneo, Berço Esplêndido é um filme híbrido, sempre brincando com as fronteiras entre realidade e ficção. Exemplo disso é o vasto material de arquivo do qual o filme lança mão. Através deste material, vemos vídeos caseiros que Alex produziu ao longo de sua vida. É também através desse material que conhecemos muitas das características e obsessões do protagonista, inacessíveis pela narrativa ficcional. O material de arquivo, portanto, costura as situações ficcionais, de modo que a narrativa se dá pela tensão entre essas duas linguagens, a do filme enquanto tal, e a do material previamente existente.

Como o próprio Acher coloca, Alex é “exótico”, está fora de muitos padrões: ele é adotado, obeso, homossexual e ávido consumidor e produtor de gore, um gênero de cinema ultraviolento e excessivamente trash. Todas essas características compõe o Alex “de verdade”. A questão é que não se pode falar aqui de um Alex “de verdade”. Novamente ficção e realidade se confundem, é como se Alex vivesse uma realidade ligeiramente diferente da sua, porém tivesse de lidar com os mesmos deslocamentos que de fato vive. O projeto declarado do filme, aliás, é desmistificar o “exotismo” de Alex, é mostra-lo como essencialmente humano, como ser que sofre e que sente.

Enquanto filho adotado, o protagonista surge como um incômodo para sua família, mesmo para sua paciente e adorável mãe que, contundo, não consegue apreender as vontades reais de seu filho. Todos os outros familiares de Alex o subestimam e o estigmatizam. O único que parece não se importar é seu primo Daniel, que está sempre muito ocupado jogando jogos online. Sua dor se agudiza ainda mais quando até mesmo seu grande ídolo do cinema gore, Mauro Palmeira, demonstra não compreender seu longa-metragem, ou mesmo suas aspirações.

O gore em Berço Esplêndido é mais do que um acessório, é mais do que uma das razões, dentre tantas, para os deslocamentos sofridos pelo protagonista. O gore é a imagem mais acabada das feridas que os deslocamentos provocaram e provocam em Alex. E essa é a precisa razão pela qual Mauro Palmeira não consegue entender o filme do jovem produtor. A consciência que Alex tem do profundo significado que as imagens de mutilação possuem é, ela mesma, assustadora. Seu longa-metragem é uma espécie de filme-ensaio que discorre, em termos existenciais, sobre os efeitos práticos (essencialmente a maquiagem que simula mutilação) necessários à produção de filmes gore. Paradoxalmente, nada está mais distante do gênero tão apreciado pelo jovem, do que seu filme imóvel, reflexivo e com ar de tutorial.

Berço Esplêndido se aproxima muito de filmes do sub-gênero mumblecore*, pela sinceridade, pelo caráter semidocumental e naturalista, pelo baixo orçamento e por se concentrar nas interações humanas. Principalmente entre jovens. Como deixei claro no começo desse texto, Berço Esplêndido é um filme fortemente atrelado a uma geração. As feridas expostas de Alex são as feridas expostas de muitos de nós.  Em maior ou menor grau. Sua paralisia diante da vida (materializada na dificuldade em dirigir carros), seu ar esvaziado e desacreditado (embora não exatamente blasé), seu cinismo e sua ironia, tudo isso esconde um desespero causado não só pela incompreensão que gera nos outros, mas também pela iminência de um fracasso sem volta.

Mais do que só pela linguagem naturalista, é também daí que vem certa sensação de “tempo de vida” transmitida ao longo da exibição.  O tempo e a falta de significados para se atribuir a ele pesam sobre Alex. E é mais do que necessário que o espectador sinta esse peso. Seria um erro, no entanto, dizer que o filme é “arrastado”. O roteiro (também assinado por Acher) e a direção conseguem desarticular essa possível sensação de “arrastamento” através da inserção de um humor pontual e eficiente. Um humor, inclusive, muito próximo do cinismo e da ironia de seu personagem.

Finalmente, é preciso apontar, Berço Esplêndido é um filme da deambulação, seguindo também certa tradição de nosso Cinema Marginal. Acompanhamos, sempre que possível, os deslocamentos, agora físicos, de Alex. Sobretudo as caminhadas e as viagens de metrô. Afinal, trata-se de uma geração cujo corpo se metamorfoseia na cidade e a cidade, sobretudo a de São Paulo, nem sempre é generosa com nossas feridas. Principalmente as expostas.

 *Sub-gênero do cinema alternativo, surgido nos EUA no começo dos anos 2000, cujas principais características estão citadas no texto. Curioso notar também que há uma fusão entre o mumblecore e o gore, muito motivada pelo caráter caseiro e pelo baixo-orçamento de ambos os gêneros.

 

João Victor Nobrega  é estudante de cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários