O Delírio Amoroso de Severina

Por João Nobrega

Severina (2018), de Felipe Hirsch, investiga a relação entre amor, literatura e delírio.

Severina (2018) é o segundo longa-metragem dirigido pelo dramaturgo Felipe Hirsch, que havia dividido a tarefa da direção com Daniella Thomas (Vazante, 2017) em seu primeiro filme, Insolação, de 2009. Agora, sozinho na direção e assumindo o roteiro, Hirsch pode trilhar um caminho mais próprio, mas também se vê capaz de sedimentar muitos dos elementos de linguagem que já se encontravam em Insolação.

Em linhas gerais, Severina nos apresenta R. (Javier Drolas), um livreiro melancólico e aspirante a escritor, que passa seus dias organizando leituras e saraus com seus amigos poetas. Num dia qualquer, a indecifrável Ana (Carla Quevedo) entra em sua loja e rouba um livro, delito que ela volta a repetir algumas vezes. O livreiro vai tolerando os roubos até que, mais atraído pela moça do que indignado com sua conduta, encurrala-a. A partir daí, a relação entre eles se estreita, mas também se torna cada vez mais absurda.

Pelo fato de Flipe Hirsch ter construúdo uma sólida carreira no teatro, não é de se estranhar que tanto Insolação como Severina transitam entre a literatura e o cinema. O primeiro filme de Hirsch inspirava-se livremente em contos Russos do século XIX para abordar a problemática do amor. Severina, por sua vez, é baseado no livro homônimo do guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, para abordar... a problemática do amor. Porém, mais do que beber na fonte da literatura e compartilhar uma preocupação comum, o que une a breve filmografia do diretor é um forte senso de abstração que acaba por desembocar num tratamento surrealista dos acontecimentos.

Algo que contribui para esse senso de abstração em ambos os filmes é a atemporalidade e uma espécie de desterritorialização do espaço. A Brasília apresentada em Insolação, e que acaba por revelar a decadência de certo projeto modernista, é uma cidade ríspida e árida e serve mais como imagem interior para a impossibilidade do amor florescer nos personagens, do que como uma localização geográfica e determinada. Da mesma forma, a Montevidéu de Severina deixa-se entrever em apenas alguns espaços muito específicos (a livraria, a pensão, a rua em frente à livraria, etc.), nos quais a arquitetura moderna se mescla com construções antigas, trazendo a sensação de atempoiralidade. A pouca “mobilidade” que nos é permitida e o fato de boa parte da narrativa se desenvolver no interior da livraria são expedientes que funcionam como uma espécie de claustro. Não deixa de ser sintomático que o mais longe que se possa chegar seja ao hospital – ou à cova.

É interessante, porém, observar que, se a atemporalidade e a desterritorialização em Insolação visavam um universalismo absoluto, buscando uma espécie de tese geral sobre o amor, Severina é movido por um sentimento um tanto diferente. Basta traçar um mapa das nacionalidades dos envolvidos nos filmes: O primeiro filme de Hirsch era uma adaptação de contos russos, feita por dois dramaturgos americanos e executado por uma equipe brasileira na capital de nosso país. Severina, por sua vez, resulta de uma pesquisa que Hirsch vem fazendo sobre a literatura latino-americana e se inspira numa obra guatemalteca, além de contar com atores argentinos, passar-se na capital do Uruguai e ter sido realizado por uma equipe oriunda de diversos países da América Latina. Há, nesse segundo filme, portanto, a afirmação de uma identidade e, provavelmente, de um modo de amar.

Certa concepção do que é o amor, entretanto, não deixa de perpassar os dois filmes de Hirsch. As duas obras associam o amor à prostração, à febre, à doença, ao delírio e, enfim, à morte. Em Insolação o amor era como o sol, iluminando e castigando todos indistintamente e isso se refletia inclusive na arte e na fotografia do filme, ambas muito luminosas e amareladas/esbranquiçadas. Em Severina, o amor desenvolvido pelo próximo se confunde com o amor aos livros, à palavra e seus mistérios, de modo que a realidade e a lógica que a ordena misturam-se à arbitrariedade abstrata que a palavra permite. Esse sentimento “livresco” aliado ao suspense surreal que a trama apresenta, contamina também o universo sensível de Severina através da fotografia, que recorre a luzes duras e sombras profundas, e da direção de arte, que joga, sobretudo, com tons de marrom e azul. O filme, portanto, em contraste com o primeiro do diretor, apresenta um visual bastante obscuro. Essa obscuridade toda, isto é, a tensão entre o claro e o escuro (chiaroscuro), na verdade, manifesta todo o jogo de decifrar e desvendar - próprio de qualquer leitura e, principalmente, do suspense - o significado oculto, nos livros ou na pessoa amada. Esse movimento, o de desvendar - ou desvelar, desnudar - é também um movimento erótico, movido pelo desejo de conhecer os segredos do Outro, as emoções do Outro, o corpo do Outro, o Outro por inteiro, enfim. Nessa confusão entre realidade e ficção, o amor surge como delírio.

Parece-nos, então, que, para Hirsch, amar é adoecer, é enlouquecer e aspirar ao impossível. Insolação e Severina transmitem um fluxo de acontecimentos que parecem estar ligados antes ao seu significado último, a sua simbologia última, do que a um verossímil desenrolar dos fatos. Tudo parece significar uma outra coisa – dos nomes dos personagens ao cenário. E esse é um procedimento típico da escrita, pois, por seu maior grau de abstração, a palavra se encontra mais afastada da realidade do que as imagens. A escrita, então, e a literatura acima de tudo, aproxima-se com muita facilidade das associações livres e do delírio. Quando lemos algo nossa imaginação pode concretizar o que lemos da forma que melhor nos apetecer. A literatura, como o amor, também parece ser uma espécie de delírio. Talvez por isso ambos se confundam em Severina.

 

João Victor Nobrega  é formado em Cinema, ex-colaborador da revista online O Grito! e diretor e roteirista de três filmes universitários