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Não é Culpa Minha! - Uma visão sobre o documentário A Torre das Donzelas

Por Julia Gimenes

Tendo estreiado no 51º Festival de Brasília, o filme  desvenda o cotidiano como forma de resistência na experiência das presas políticas do presídio de Tiradentes.

 Em tempos de sequestro da subjetividade das minorias e oposições (esquerda) através do discurso político de ódio, mais do que nunca devemos nos questionar se as cenas de violência gráfica valem a pena. Além de estarem extremamente banalizadas, quando são retratadas sob um viés ideológico ou inseridas em discursos de ódio muito bem construídos e direcionados aos mesmos bodes expiatórios que a sociedade sempre atacou, podem causar o efeito contrário ao de alerta ou denúncia.

Quantos homens colocam cenas chocantes de estupro em seus filmes? Quantas mulheres o fazem? Adoraria ter números exatos sobre o tema, mas como não tenho, vamos nos pautar apenas pela sensação já muitas vezes verbalizada de que esse tipo de cena de violência é muito mais comum em filmes dirigidos por aqueles que, em geral, não são alvo de ações violentas na vida real.

O que isso quer dizer?

A arte é em geral espaço de sublimação de nossos desejos, medos e tantos outros dilemas, servindo como espelho invertido de nossa experiência. Assim, talvez seja mais interessante para quem já sofre com a violência na vida real procurar meios de se defender dela. E por isso a defesa simbólica é o tema principal de A Torre das Donzelas, documentário de Susanna Lira que mostra através de entrevistas e reencenações a vida de antigas militantes presas pela ditadura militar brasileira no presídio feminino de Tiradentes, que tinha por apelido o mesmo título do filme.

O filme começa alto e emocionante com fotografias dos anos 60 de pessoas sendo levadas pela polícia, acompanhadas pelo depoimento da ex-presidente Dilma Rousseff em off, no qual ela afirma se orgulhar de ter mentido durante as sessões de tortura, pois isso acabaria salvando a vida de seus companheiros de luta.

Os espectadores vão sendo apresentados às memórias das antigas detentas sobre a arquitetura e o cotidiano do lugar - como elas chegaram lá? Todas vieram depois de semanas de tortura realizadas no DOI CODI. Quando essa informação é revelada, o clima na sala de cinema pesa e ninguém parece respirar. As descrições de torturas, ainda que não se atenham a detalhes técnicos, nos colocam na pele das entrevistadas, nos mostram por alguns momentos o que sentiram, como o sentiram, o que seus inimigos faziam para tentar quebrar sua força mental, como deslegitimavam sua dor, como as isolavam e as deixavam indefesas.

Mas, em um segundo momento, o tom do filme abaixa, e ainda que os depoimentos sobre as atrocidades do momento continuem chegando a nossos ouvidos, eles vêm em pinceladas cada vez mais espaçadas. Passamos a entender - depois de conseguirmos voltar a respirar - como essas mulheres foram capazes de sobreviver a níveis inimagináveis de violência. Como se uniram, criaram um cotidiano, uma rotina para si, individualmente e em grupo. Como precisaram ler, cozinhar, jogar, costurar, rir e conversar.

Esteticamente um pouco óbvio, o filme foi criticado por flertar com a norma televisiva, e não sem motivo. Talvez para fugir da forma às vezes entediante das “cabeças falantes”, ou seja, do documentário constituído apenas por pessoas dando seu depoimento, a diretora procurou se apoiar em reencenações para incrementar a montagem da obra.

Porém, especialmente nos momentos em que entramos em contato com o dia-a-dia das mulheres na cadeia, essas reencenações, quando não são discretas e quase totalmente fora de foco, para somente insinuar uma ação, se tornam fora de propósito e pasteurizam de alguma forma o discurso.

As cenas ficcionais quebram a verossimilhança dos discursos reais sem propor nada de novo, parecem apenas uma ilustração mais simplificada do que a nossa mente poderia criar sozinha a partir dos relatos. Essas interferências me incomodaram principalmente porque as atrizes em cena estavam todas caracterizadas de maneira muito feminina, enquanto as personagens reais do documentário claramente não eram mulheres que *performavam seus gêneros dessa forma.

Mas se a discussão sobre a violência está amenizada no filme pelas reconstituições, não acredito que essa mesma crítica valha para a estrutura geral do documentário. A escolha bastante consciente de Susanna em encaminhar o longa para a experiência cotidiana da cadeia (mais do que para as lembranças de dor física) nos coloca em contato com aspectos psicológicos bastante aprofundados do isolamento e nos ensina sobre como sobreviver a situações limite, sem grandes heroísmos e sem se jogar de cabeça na figura da mártir.

Como muito bem colocado pela ex-presidente Dilma, o que elas conseguiram foi fugir de uma visão penitente da prisão. A violência não acontecia por causa nem por culpa delas - pelo contrário, elas estavam ali para lutar contra ela.

  • “performance de gênero” - é um termo da teoria queer que se refere a maneira como um sujeito se apresenta ao mundo, ou seja, como é sua corporeidade em relação ao que se espera de seu gênero biológico - Mulher = vagina, feminilidade / Homem = pênis, masculinidade - mas que pode não corresponder a essas predefinições sociais.

 

Julia Gimenes é  formada em cinema e trabalha como montadora e fotógrafa desde então. Apesar do amor por fazer cinema, pensar sobre ele também sempre a encantou