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A Representação da Mulher no Cinema Neorrealista de Roberto Rossellini com Ingrid Bergman

 

Ingrid Bergman como "Karin" em Stromboli

Roberto Rossellini, com Ingrid Bergman, produz um cinema que enaltece a mulher. "Viagem à Itália", "Stromboli" e "Europa 51" combinam temáticas neorralistas com uma estética do cinema de estrelas.

Texto por: Bia Amorim

Analisarei aqui a representação da mulher no cinema de Rossellini, com um foco em filmes feitos com a atriz, e sua esposa, naquele período, Ingrid Bergman: Viagem à Itália (1954), Europa 51 (1952) e Stromboli (1950). Com a moderna direção de Rossellini e a bela interpretação de Bergman, a atriz personifica mulheres fortes que se destacam no mundo masculino: é a representação de um determinado papel feminino, seja ele o de mãe e de uma mulher que busca mudar sua vida em um sentido social, como em Europa 51, quanto o de esposa, como em Viagem à Itália, aliada à realidade de determinada classe social daquele contexto histórico, que traz o caráter neorrealista dos filmes e destas personagens.

Iniciando a análise por Viagem à Itália, o filme aborda um casal britânico que viaja para a Itália para tentar vender uma propriedade. Entretanto, ao passarem esse tempo juntos, eles logo notam que não suportam a companhia um do outro e que o casamento estava prestes a acabar. Ingrid Bergman interpreta a personagem Katherine Joyce, enquanto o marido, Alex Joyce, é interpretado por George Sanders.

André Bazin, em um belo texto no qual ele tece um elogio ao cinema de Roberto Rossellini, pontua a relação que o diretor estabelecia entre o espaço e o personagem, de modo que um não pode existir sem o outro. O espaço que vemos em Viagem à Itália é moldado a partir da perspectiva da personagem de Ingrid, o pequeno fragmento de Pompeia que vemos na cena em que eles visitam a escavação, mostrando muito pouco no espaço e focando nos mortos do lugar, representam a sensação sufocante da personagem tanto naquela situação pontual quanto em seu casamento como um todo.

Analisando o final do filme, no qual o casal acaba redescobrindo o seu amor e ficando juntos, Bazin escreve:

“ É o que ocorre com o milagre da Viagem à Itália, invisível para os dois heróis, quase invisível até mesmo para a câmera, e aliás ambíbuo (pois Rossellini não pretende que seja um milagre, mas apenas o conjunto de gritos e empurrões que é assim chamado), mas cujo choque contra a consciência dos personagens provoca inesperadamente a precipitação de seu amor”. (Bazin, p. 371, 1955)

Rossellini discute, em Viagem a Itália, o papel da esposa da classe alta europeia e ao fazê-lo dirigindo sua própria esposa como protagonista, ele cria uma mulher forte, que ao mesmo tempo, se adéqua aos padrões de classe da época, mas se mostra decidida e independente. Uma cena bastante simbólica desta direção de Rossellini que logo anuncia que Bergman não se prestaria ao papel de uma mulher submissa e sem voz, é a primeira cena, na qual o casal está chegando na Itália e quem dirige o carro é Katherine. Poucos momentos depois, ela para o carro e troca de lugar com o marido, demonstrando um certo equilíbrio na relação.

O final demonstra essa proposta de Rossellini de trazer para a tela um casal em equilíbrio, em que não há o domínio de um sobre o outro, apenas situações em que um é mais forte do que o outro, o que acaba sendo um dos motivos para que no final o milagre do amor ocorra.

Por ser um filme dos anos 50, o protagonismo da mulher ao lado do marido é desenvolvido de maneira a questionar os relacionamentos da época e principalmente o papel da mulher como esposa de classe alta. Se o marido flerta com mulheres italianas durante viagem, ela também flerta com homens italianos. Se o marido dirige o carro, ela também dirige o carro, inclusive pega as chaves e sai sozinha, em uma bela cena em que, ao passar pelo centro da cidade, os homens a observam com estranhamento.

Em Europa 51, Rossellini traz para a tela uma bela análise da sociedade Italiana da época, abordando questões políticas, psicológicas e familiares e novamente tendo como protagonista sua esposa, Ingrid Bergman, que interpreta a personagem Irene. Em uma história evidentemente trágica, a protagonista é uma mãe de uma família tradicional de classe alta que valoriza apenas futilidades. O filho, um garoto de 12 anos, é constantemente descrito no filme como uma criança sensível, e ele sofre com a negligência de uma mãe que não dá muita importância a ele. Logo no início do filme, durante uma festa de jantar da família, na qual a mãe é a anfitriã, o garoto tenta se suicidar se jogando de uma escadaria. O garoto sobrevive à queda, mas morre poucos dias depois por conta de uma embolia pulmonar.

A partir deste ponto, que em uma curva clássica poderia ser considerado o incidente incitante, a vida da protagonista muda por completo e, em uma tentativa de se curar da dor da perda do filho e em um processo de reconhecimento dos seus erros, ela se volta para causas humanitárias, se aproximando de classes mais baixas e conversando com uma mãe de 6 filhos interpretada por Giulietta Masina. O encontro destas duas personagens é fundamental para o desenvolvimento de Irene, pois ela está entrando em contato com um universo completamente novo para ela e ela vê naquela mãe tudo que ela não conseguiu ser para seu único filho. Ali, Irene aprende o que é de fato ser mãe e o que é de fato ser uma mulher italiana e a partir deste contato e com as consequentes transformações pelas quais a personagem passa, ela já não pode mais retornar a sua vida antiga.

A personagem de Bergman sai de um universo fechado e individualista e parte para um outro oposto, no qual ela entra em contato com as mulheres do povo, as quais são representadas pela personagem de Masina. Assim, em sua missão humanitária, a curva de Irene é construída em conjunto com as mulheres de Roma, apesar de sua curva espiritual se desenvolver no protagonismo da narrativa, o papel das mulheres das classes mais baixas de Roma se destaca e elas participam da curva da protagonista, como uma forma de fazê-la enxergar a verdadeira mulher italiana e o que é, verdadeiramente, ser mãe.

Este papel das mulheres fica evidente na última cena, na qual Irene está presa no sanatório acenando através das grades da janela para mulheres que ela ajudou, senhoras italianas simples e humildes, entre elas a personagem de Masina, que são as únicas personagens que acreditam na inocência e na sanidade de Irene, lamentando o final triste da personagem.

Rossellini discute a hipocrisia católica e a verdadeira humildade: Irene representa a verdade. Não é preciso ser cristão para ser humilde, ajudar os outros não está diretamente aliado a uma pauta política comunista e inclusive, ao ser questionada de suas atitudes, no final do filme, ela nega qualquer motivação política ou religiosa. Irene traça uma jornada espiritual, na qual ela se redime através da ajuda ao próximo.

É notável o contraste da personagem no início do filme e no final. Na cena do jantar, no início do filme, ela fala que o personagem Andrea era de esquerda e fala ainda que ele era algo pior do que um socialista, indicando que ele era um comunista e que ela desprezava a ideologia política da esquerda. Ao longo do filme, ela se vê cada vez mais próxima de ideais comunistas e inclusive se aproxima de Andreas, de modo que ele se torna um conselheiro e até mesmo um amante.

Apesar de valorizar Irene ao longo de todo o filme, além de promover uma empatia do público para com a personagem e com todas as outras mulheres do filme, a última cena traz a realidade daquela sociedade: em nenhum momento as mulheres que defendem Irene são ouvidas, a palavra final sobre o destino da protagonista é dada pelos homens da classe alta. Assim, uma personagem tão forte como Irene, que traça sua própria trajetória e seu próprio desenvolvimento espiritual sem depender de homem algum, tem seu final tragicamente determinado por um grupo de homens. Rossellini enaltece a mulher, mas sem perder o realismo da sociedade que retrata.

Há uma grande diferença no estilo e no próprio uso do neorrealismo entre os filmes de Rossellini mais imediatos ao pós guerra, como “Roma, Cidade Aberta” e “Alemanha Ano Zero”, por exemplo, e os três filmes aqui analisados. E é com “Stromboli”, o primeiro dos três filmes no qual Ingrid Bergman estrela, que Rossellini faz essa ponte de estilos. O aspecto de denúncia social se mantém presente ao longo de todos os filmes, mas há, neste momento, um uso mais estético da fotografia que se vincula justamente à presença de Bergman.

“Stromboli” se inicia com uma cena na qual diversas mulheres de diversos países encontram-se em um quarto conversando em idiomas diferentes sobre seus respectivos homens que estavam voltando da guerra. Em seguida, a personagem de Bergman, Karin, nos é apresentada e vemos que ela tem uma relação com um soldado, com o qual ela se encontra somente através de uma cerca. O homem logo a pede em casamento e ela pergunta se ele não se preocupa com o fato de não conhecê-la. Ele afirma que não, e que se ela saísse da linha, ele bateria nela. Com uma risada, ela parece não o levar muito a sério, mas com essas primeiras cenas já é possível prever o rumo que o relacionamento tomará.

O casal se muda para a terra natal do rapaz, uma pequena ilha vulcânica isolada no mar mediterrâneo. Logo ao chegar nesse novo ambiente, Karin se desespera e se arrepende de sua decisão. O arrependimento vem de imediato com o choque da sua nova realidade. Aqui, a relação com as outras mulheres se dá de maneira oposta ao que ocorre em Europa 51, no qual as mulheres apoiam a protagonista, em Stromboli, as mulheres da ilha se voltam contra Karin ao longo de todo o filme, fazendo-a se sentir cada vez mais deslocada naquele lugar hostil.

Apesar da situação que Karin se coloca, ao lado de um marido extremamente bruto, ciumento e machista, ela reforça constantemente o fato de ser uma mulher forte e livre que não deixaria o homem fazer o que quisesse com ela. Na cena em que ela fala para o marido que irá deixá-lo pois não aguenta mais a ilha, ela fala que não tem medo de enfrentar a vida enquanto for livre para se defender e em seguida, dá um tapa na cara do marido.

Karin é excluída pelos moradores da ilha, principalmente pelas mulheres, justamente pelo fato de não ser uma mulher que seguia os padrões tradicionais daquela sociedade e ela sabe disso, ela sabe que é uma mulher diferente, mas ela parece ter orgulho disso e se recusa a mudar quem ela era para se encaixar naquela sociedade. Inclusive, na última cena, em que ela está no alto da ilha olhando por sobre a fumaça vulcânica, Bergman faz um belo monólogo, no qual ela afirma que não poderia voltar para aquele lugar e que todas aquelas pessoas estavam erradas.

Como já vimos com a análise de André Bazin, Rossellini estabelece uma relação íntima entre o personagem e seu espaço e em “Stromboli” isto fica evidente, pois a curva da personagem é ditada pela ilha e por sua relação com ela. Toda vez que Karin resolve dar uma chance para a ilha para tentar extrair algo de bom daquele lugar que tanto a rejeita, ela acaba sofrendo uma consequência ruim: quando ela leva sua saia para costurar, homens da ilha a observam experimentando a roupa e seu marido aparece e tem um ataque de ciumes. Quando ela entra no mar com garotos da ilha para procurar com um polvo, ela se encontra com um rapaz, com o qual ela parece flertar, e as mulheres da ilha a observam. Na cena seguinte, vemos Karin ser espancada pelo marido.

Assim, a ilha e a personagem vão se tornando cada vez mais um bloco inseparável. No início a relação com o espaço tem um caráter mais simbólico, quando Karin se desespera e deseja a todo custo fugir da ilha, ela se vê caminhando em um espaço que se parece com um labirinto. Já na última cena, quando Karin está tentando atravessar a ilha para fugir, ela desaba chorando na terra e percebe que não conseguirá sair dali, ela tenta se reerguer, mas no final, a personagem e a ilha já estão unidas e o filme termina com Karin caída na terra vulcânica pedindo ajuda para Deus.

Rossellini faz aqui uma análise da mulher italiana no período pós guerra, estabelecendo um contra-ponto entre a mulher moderna, representada por Karin, e a mulher tradicional, representada por todas as mulheres da ilha, em um cenário no qual a primeira está presa no universo da segunda, ou seja, apesar de todas as mudanças e crescimentos da sociedade italiana, os vestígios de uma tradição bruta e ultrapassada continuam sendo dominantes.

Há, nos 3 filmes, uma trajetória espiritual das personagens interpretadas por Ingrid Bergman, tais trajetórias são traçadas principalmente pela relação íntima da personagem com o meio em que a história se passa. Em “Viagem à Itália”, o casal é levado a questionar o seu relacionamento pelo fato de terem de passar aquele tempo juntos e em um lugar que foge de suas rotinas. Katherine passa por uma autoanálise psicológica que fica evidente na cena em que eles visitam o sítio arqueológico de Pompéia, e o próprio milagre da cena final, o despertar de um amor que parecia já não existir mais, se dá por conta da relação psicológica de Katherine com o espaço. Ao ser levada pela multidão, ao cair nesse mundo de desconhecidos e incertezas, Katherine se desespera e seu primeiro impulso é chamar por Alex, de modo que ambos percebem o amor que sentem um pelo outro.

Em “Europa 51” a trajetória espiritual de Irene se dá, como já foi dito, em paralelo com o contato da personagem com mulheres de classes mais baixas, e também através do contato com a própria cidade de uma maneira diferente de como ela experienciava esse espaço antes. Irene, que antes conhecia somente a parte mais rica de Roma, passa agora a explorar a pé os bairros mais pobres, entrando em contato com a verdadeira Roma, a Roma popular degradada no pós guerra.

Em “Stromboli”, a trajetória espiritual de Karin é evidentemente desenhada pela relação cada vez mais indiscossiável entre ela e a ilha, todo o seu psicológico é moldado a partir dessa relação. E é, possivelmente, por conta dessas trajetórias psicológicas e espirituais das protagonistas tão vinculadas ao meio, que Mariarosaria Fabris, ao categorizar os temas abordados na filmografia neorrealista italiana, agrupa estes 3 filmes em uma mesma categoria: “A indagação psicológica e a relação do homem com a religião”.

Por fim, concluo esta análise trazendo a entrevista com Martin Scorsese, na qual ele fala sobre esses três filmes de Rossellini, para analisar uma característica da fotografia e sua relação com a representação de Ingrid Bergman. Scorsese afirma que há, com os 3 filmes que Rossellini faz com Bergman, uma quebra no seu estilo neorrealista mais documental, mais voltado para a denúncia social do pós guerra e com isso, Rossellini se utiliza de uma estética que se aproxima do melodrama hollywoodiano. A fotografia nestes 3 filmes não é mais tão crua e documental quanto em seus filmes anteriores, há um trabalho de luz, principalmente em Bergman que remete à fotografia hollywoodiana utilizada em filmes com grandes estrelas, ou seja, Rossellini busca essa nova estética para retratar Bergman como uma estrela, o enaltecimento das personagens por ela interpretadas se dá, além da direção, do roteiro e de sua própria atuação, pelo trabalho fotográfico realizado sobre a atriz.

Essa nova estética de Rossellini não significa o abandono da estética neorrealista, há, principalmente em “Stromboli” fortes traços documentais, principalmente pelos enquadramentos e movimentos de câmera utilizados, o que fica evidente na cena em que a câmera é colocada em um barco no meio do mar para registrar a cena da pesca.