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O Ato de Matar: Um Segundo Genocídio?

Ao estabelecer um paralelo com outros filmes de temática similar, como “Botão de Pérola” e “Shoah”, analisa-se de que modo “O Ato de Matar” apresenta uma abordagem problemática sobre a ditadura militar da Indonésia.

Texto por: Bia Amorim

 

O Ato de Matar, dirigido por Joshua Oppenheimer, tem como protagonista Anwar Congo, um assassino em massa dos massacres de 1965 na Indonésia. No filme, Anwar reencena muitas cenas de massacre e explica como ele matava. Parece haver, no âmbito do filme como um todo, uma banalização da morte - como conceitua Hannah Arendt - a qual caracteriza tanto os eventos originais da década de 1960, quanto a reencenação de Anwar.

Ao demonstrar seus métodos de assassinato, Anwar sorri, dança, canta e fala sobre seus tempos de genocida como se fossem tardes no bar com os amigos. Ele nunca sofreu nenhum tipo de punição por seus atos e ao fazer esse filme, recebeu ainda a oportunidade de revisitar suas memórias de maneira sádica. Parece estranho que um filme que se propõe a culpabilizar os indonésios por seus atos aborde a morte e os assassinatos de maneira tão banalizada.

Patrício Guzmán, em seu documentário “Botão de Pérola”, de 2015, revisa a história chilena ao olhar para os mortos da ditadura de Pinochet com a humanidade que lhes fora negada na época em que foram jogados ao mar. Em um dado momento do filme um dos personagens afirma que a impunidade seria como um assassinato duplo, como matar o morto uma segunda vez.

Possivelmente, em uma contradição com sua proposta, seja exatamente o que aconteça com “Ato de Matar” ao conceder a Anwar a possibilidade de rememorar seu passado e abordar de maneira tão casual as atrocidades por ele cometidas. A impunidade de Anwar e a banalização da abordagem tornam o filme uma celebração sádica do genocídio da indonésia.

Tratando-se de uma temática similar, porém com uma abordagem diferente, “Shoah”, dirigido por Claude Lanzmann, busca expor os horrores do Holocausto conversando com sobreviventes e testemunhas e registrando imagens atuais de onde antes eram os campos de concentração. Com cerca de 10 horas de duração, o filme carrega uma imensa tristeza dominada pelo luto e pela relação daquelas pessoas com a memória de um momento tão cruel da história alemã. Assim, os relatos são muitas vezes sobrepostos a estas imagens de modo que somos convidados a revisitar o passado e a imaginar os horrores que ali ocorreram, tornando-se um filme cada vez mais denso e triste.

“Shoah” busca a verdade sobre o Holocausto. Ele busca romper com mitos e estereótipos que são propagados ao longo da história e desviam as memórias dos fatos. É certo que o “Ato de Matar” também busca expor a verdade sobre a história da indonésia, e é certo também que, assim como “Shoah”, ele o faz sem mostrar diretamente imagens reais da violência e da matança do período genocida. Entretanto há uma diferença ética fundamental entre ambas as abordagens que se dá entre explorar as memórias de um assassino sádico e que permanece impune, ou das vítimas e testemunhas que sofreram, e ainda sofrem, com as consequências de um genocídio.