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Midsommar: uma análise cinematográfica da comunicação e da moral religiosa contemporânea

Através de uma análise cinematográfica, o artigo discute questões morais e religiosas no contexto pós-moderno e pontua aspectos sintomáticos da influência que os meios comunicacionais digitais exercem sobre a forma como se dá, na atualidade, o consumo de produtos midiáticos, tomando por objeto o filme Midsommar

 

INTRODUÇÃO

Lançado em setembro de 2019,“Midsommar”, traduzido para o português como “Midsommar: O Mal Não Espera a Noite”, é um filme de terror folk dirigido por Ari Aster, diretor de “Hereditário (2018)”.

O filme aborda a jovem norte-americana, Dani, que acabara de perder seus pais e sua irmã de maneira trágica e que se encontra em um relacionamento desgastado e tóxico com seu namorado, Christian. Seis meses após a morte de sua família, Dani decide se juntar a Christian e seus amigos em uma viagem para uma remota comunidade na Suécia, a comunidade Harga, onde ocorreriam celebrações do solstício de verão. Entretanto, o que parecia ser somente um belo festival com flores e roupas brancas, acaba se revelando um conjunto de tradições bastante bizarras e perturbadoras, que conduzem os personagens a finais trágicos e catárticos.

ANÁLISE DA NARRATIVA

O filme possui uma estrutura bastante evidente, sendo possível dividi-lo em duas partes distintas e contrastantes. Além disso, a narrativa segue uma linha guiada pelo destino de cada personagem que se relaciona com a própria estrutura da vida no entendimento da pequena comunidade sueca. Nesta, a vida é como as quatro estações do ano: a infância seria a primavera e duraria até os 18 anos, dos 18 aos 36 seria o verão, no qual o indivíduo passa por um período de peregrinação, dos 36 aos 54 seria o outono, a fase do trabalho, e por fim, dos 54 aos 72 seria a fase final, o inverno, no qual a pessoa se tornaria um mentor e morreria aos 72.

Assim, esta estrutura bastante definida, determina o destino de uma pessoa desde seu nascimento, não havendo muitas possibilidades para que o indivíduo escape a ele. O mesmo se dá com a curva dos personagens de “Midsommar”, o destino de cada personagem nos é apresentado logo no primeiro segundo de filme. O primeiro plano é uma pintura no estilo da comunidade sueca abordada e, olhando superficialmente, esta pintura que introduz o filme parece cumprir apenas papéis estéticos, mas ao analisá-la, nota-se que se trata de uma sinopse imagética do filme.

Todas as pessoas presentes na pintura são representações gráficas dos personagens do filme e as cenas do desenho representam exatamente a narrativa do filme enfatizando seus principais pontos, de modo que toda a história do filme é entregue ao espectador logo no primeiro frame do filme. O destino é traçado no nascimento.

Há, ao longo do filme, diversos outros momentos em que os destinos dos personagens nos são apresentados através de signos que funcionam como índices. Em uma das primeiras cenas, no momento em que somos apresentados ao quarto dos pais de Dani, enquanto esta grava um recado na caixa postal, um movimento de câmera registra um porta-retratos com a fotografia de Dani e com um vaso de flores ao fundo em cima do criado-mudo. Por conta do ângulo do plano, as flores no vaso ficam posicionadas em cima do porta-retratos de modo a criar uma coroa de flores na cabeça de Dani, inclusive com flores bastante parecidas com as que são usadas por Dani no final do filme quando ela é coroada a Rainha de Maio.

O destino de Christian também é bastante anunciado ao longo do filme. Quando os personagens chegam na comunidade sueca e estão ainda conhecendo o novo ambiente, Simon e Connie observam uma pintura sobre o que seria considerado uma história de amor. Nesta, um travelling lateral para a esquerda gradualmente nos revela o processo de conquista do homem por uma mulher: os dois se conhecem, a mulher se interessa pelo homem e começa a se aproximar dele, em seguida ela serve para ele, sem que ele saiba, uma refeição contendo seus pelos pubianos e seu sangue menstrual, assim, enfeitiçado de amor, ele a engravida e eles ficam juntos.

Em um primeiro momento, a apresentação dessa história nos parece ser apenas mais um dos elementos bizarros de Harga, mas, mais para frente no filme, com a introdução da relação entre Christian e Maja, a pintura da história de amor ganha um significado mais forte para a narrativa, pois percebemos que é exatamente o que irá acontecer com Christian.

Outro momento em que o destino de Christian é posto em evidência se dá na cena em que ele está em uma pequena sala aguardando para conversar com Siv, a líder da comunidade, ele observa algumas pinturas na parede e ele foca justamente na pintura que retrata um urso pegando fogo, sem saber que, poucos momentos depois, ele próprio estaria tetraplégico dentro de um urso morto pegando fogo.

Muitos destes signos-índices passam despercebidos pelos espectadores, principalmente quando o filme é assistido pela primeira vez, de modo que, mesmo anunciando constantemente o final do filme, as cenas ainda são efetivamente angustiantes e chocantes. O filme já nos contou, logo nos primeiros segundos, a forma como os pais de Dani morreram, mas a cena em que os bombeiros entram na casa e revelam o ocorrido, é sufocante, carrega um intenso suspense e choca. O filme também já nos contou, mais de uma vez, que Dani seria coroada a Rainha de Maio, mas no momento em que ela dança drogada com as outras mulheres da comunidade, o espectador é jogado para dentro dessa confusão de sons e imagens distorcidas e ele não sabe mais o que esperar do final daquele ritual.

O aspecto chocante do filme funciona justamente porque Aster soube jogar com um sintoma da sociedade contemporânea: o multitasking, analisado pelo filósofo contemporâneo sul-coreano, Byung-Chul Han, em “Sociedade do Cansaço”. Os “easter eggs” de “Midsommar” não são observados pelo espectador que assiste ao filme pela primeira vez, pois fazemos leituras superficiais e desatentas dos produtos que consumimos atualmente.

Han afirma que estamos vivendo um momento de transição de uma era marcada por um excesso de negatividade – que seria o século XX analisado por Michel Focault, caracterizado pela disciplina, pela vigilância e por uma sociedade imunológica que estabelece uma relação de opressão com o outro – para uma era da positividade. Nesta, a opressão é internalizada no indivíduo, fazendo-o se culpar constantemente por não conseguir atingir os valores excessivamente positivos desta “sociedade do desempenho”.

Esta nova sociedade marcada pela positividade afirma que devemos ser felizes e obtermos sucesso em todos os aspectos das nossas vidas, de modo que os indivíduos busquem exercer seu máximo desempenho, o que, na maioria dos casos, se mostra falho e conduz à culpa, gerando problemas mais graves como a depressão, a ansiedade, o TDH, a síndrome de burnout e o distúrbio de personalidade borderline.

Neste cenário, há também um excesso de informações, estímulos e impulsos que fragmentam e destroem nossa atenção e leva o nosso cérebro a recorrer à técnica de multitasking para lidar com tudo que precisa e no tempo que precisa. Esta técnica é vista na sociedade contemporânea como positiva, devido à valorização do máximo desempenho, entretanto, Han explica que se trata, na verdade, de um retorno a uma estratégia selvagem.

A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem. (HAN, 2010, p. 31)

Com a atenção fragmentada, nos tornamos indivíduos hiperativos e incapazes de tolerar qualquer tipo de tédio e de praticar a contemplação de um mesmo objeto por um longo período de tempo através da atenção profunda. Assim, ao assistirmos a um filme ou a uma peça de teatro, ao lermos um livro, ao nos dedicarmos à execução de um desenho, enfim, no momento em que temos que direcionar nossa atenção a um único objeto por um período relativamente longo de tempo, nos entediamos, nossa atenção fragmentada e nossa hiperatividade nos leva a olhar para outras coisas, pensar em outras coisas, enquanto que, o objeto que deveria estar recebendo toda a nossa atenção, recebe apenas uma parte dela e acaba sendo lido de maneira superficial.

 Assim, podemos relacionar estes processos contemporâneos analisados por Han, com os diversos “spoilers” presentes em “Midsommar” que não são notados pelo espectador. Possivelmente, se ainda fossemos capazes de exercer uma atenção profunda e contemplativa, perceberíamos muitos destes elementos “easter eggs” do filme de modo que o efeito do suspense e do choque a cada cena poderia reduzir, mesmo que ligeiramente.

Como dito no início desta parte, o filme está dividido em dois momentos bastante distintos: em um primeiro momento, há o uso de elementos do terror clássico que criam uma ambientação fria e angustiante, e em um segundo momento, o qual caracteriza o filme em sua essência, traz aspectos de um terror moderno e inovador que pretende chocar. Em seguida, será traçada uma análise de ambas as partes, em seus aspectos cinematográficos, em paralelo com a narrativa e a linguagem do filme, tendo como foco a direção de Aster e a fotografia de Pogorzelski.

A DIREÇÃO DE ARI ASTER

O trabalho de direção realizado por Aster, com a escolha de determinados enquadramentos, o amplo uso de movimentos de câmera e de determinadas transições, realizadas na montagem, entre as cenas, exerce um papel indispensável na construção na narrativa e das reações confusas e catárticas que o filme pretende trazer.

Desde o início, movimentações da câmera no espaço são bastante utilizadas, com os mais diversos propósitos. No caso da cena em que a câmera entra na casa da família de Dani e gradualmente nos introduz naquele espaço frio e morto, a movimentação cria esta ambientação, levando o espectador do micro para o macro. No caso da cena em que os moradores da comunidade sueca dançam em uma roda enquanto os norte-americanos estão sentados ao lado bebendo cerveja, a movimentação acompanha o movimento dos personagens que estão dançando e envolve Christian, que resolve se juntar a eles.

Travellings laterais também são bastante usados no filme e, uma das cenas em que seu uso é fundamental, é na cena em que a pintura da história de amor é apresentada, pois o espectador toma conhecimento dela aos poucos e linearmente, como o próprio movimento da câmera propõe, criando um crescimento daquela pequena história que no final choca o espectador.

Finalmente, um movimento de câmera bastante simbólico e importante de ser analisado, e que se relaciona com o contraste mencionado entre a primeira e a segunda parte do filme, é a cena em que os 5 amigos estão no carro, já na Suécia, se aproximando da cidade de Hälsingland e a câmera vira de ponta-cabeça como se dissesse para o espectador: a partir desse momento, nada mais será o mesmo, o mundo destes 5 personagens vai ficar de cabeça para baixo. E é o que de fato acontece. A partir deste ponto, a estética mais clássica de terror é abandonada e a estética clara e colorida entra em cena trazendo junto toda a bizarrice que vai dominar a trajetória dos personagens.

Tratando-se agora de enquadramento e composição de quadro, há a cena em que, após irem a uma festa, o casal protagonista chega na casa de Dani e o enquadramento é realizado de maneira a demonstrar o distanciamento entre o casal. Neste plano, Dani e Chris entram no apartamento, a câmera permanece estática enquadrando a porta de entrada com um espelho ao lado a partir de uma perspectiva interna. Dani permanece parada na porta, sendo enquadrada em primeiro plano, enquanto Chris ultrapassa a câmera e se senta em uma cadeira posicionando-se de maneira que o vemos enquadrado através do espelho. Isto ressalta o protagonismo de Dani na conversa e a distância que existe entre o casal, já que, na perspectiva do espectador, uma conversa íntima está sendo mediada por um espelho. Um ponto interessante de ser observado nesta cena é que, apesar de Dani receber o foco, Chris não está completamente desfocado no espelho, sua figura ainda é bastante presente e é possível, inclusive, observar com clareza o cenário ao redor de Chris.

Nas cenas desta parte inicial do filme há uma exploração muito maior de enquadramentos mais fechados e de um jogo de distâncias focais curtas, usados para demonstrar o sufocamento e a angústia da protagonista, o distanciamento do casal e a própria aproximação com uma estética mais clássica de terror e suspense.

O movimento de câmera já analisado, que dá a transição entre as duas partes do filme, introduz um enquadramento aberto, bastante geométrico e equilibrado, o qual será exageradamente utilizado nas cenas que se seguem. A composição equilibrada e geométrica dos planos da segunda parte retratam a rígida organização da vida daquela comunidade, que busca sempre o equilíbrio. Além disso, os planos abertos em contraste com os planos mais fechados do início do filme, que produziam um ambiente sufocante, nos mostram que ali Dani pode respirar, ela pode ser livre para se curar de suas feridas, se livrar de seu namorado tóxico e encontrar uma nova família.

Algumas transições do filme, que podem ter sido pensadas logo na decupagem de Aster, ou que apareceram no trabalho final de montagem, trabalham para produzir significados novos entre cenas destoantes, utilizando-se da lógica do efeito Kuleshov para tanto. O efeito Kuleshov consiste em uma técnica básica de montagem na qual pretende-se influenciar o entendimento do espectador de determinada imagem através da justaposição de imagens que produzem o significado desejado. Assim, se quer se obter uma expressão de luto na face do ator, coloca-se antes, ou depois, uma imagem que remeta ao luto, como um cemitério, por exemplo.

Em “Midsommar” o uso dessa técnica é evidente em mais de um momento, entretanto, o que me parece mais marcante é o corte entre a cena em que Dani e Pelle conversam sobre o relacionamento de Dani com Christian e a cena seguinte que se inicia com um plano fechado do cadáver queimado da idosa que pulara do penhasco em algumas cenas anteriores. O contraste entre uma conversa íntima sobre um assunto comum e uma cena com um plano tão explícito de um cadáver destruído queimado é impactante e pode parecer não ter um sentido imediato, mas em nosso inconsciente associamos o relacionamento de Dani com a imagem perturbadora do cadáver e um significado maior surge a partir dessa simples soma de A + B.

A FOTOGRAFIA DE PAWEL POGORZELSKI

A fotografia no filme “Midsommar” assume um papel extremamente simbólico em todos os momentos do filme. Cabe aqui traçar uma trajetória geral e as principais características do trabalho fotográfico, além de analisá-lo em algumas cenas.

Nos primeiros segundos do filme, após a apresentação da pintura que contém toda a narrativa, planos de uma floresta nevada invadem a tela. A fotografia é extremamente cinza e fria. A característica mais fria da fotografia domina a primeira parte do filme, ou seja, todos os momentos em que eles ainda estão nos Estados Unidos. Após chegarem na Suécia, uma fotografia mais quente e a enorme exploração da iluminação daylight, caracterizam o filme até o final, que, em contraste com o início nevado, é ambientado no fogo.

Tratando-se de contraste, entraremos agora nas primeiras cenas a serem analisadas. Como já foi dito, o filme se inicia com planos de uma floresta nevada. São 10 planos estáticos e postos em sequência de modo a introduzir o espectador para este primeiro momento sufocante, frio e marcado pela morte.

Os primeiros planos da floresta são bem abertos, dando bastante teto para a floresta, de modo que somos inicialmente colocados em um ambiente amplo e aberto acima do ambiente frio e sufocante da floresta. Conforme os planos se sucedem, o teto vai se fechando cada vez mais, até o ponto em que chegamos a uma perspectiva do chão, do interior da floresta. Neste ponto, o espectador já foi posicionado dentro do ambiente frio e já não pode mais sair. Em seguida, planos mais fechados são apresentados. Este primeiro momento estabelece um contraste bastante evidente com os planos finais do filme, que são marcados pelo calor, pela morte sendo celebrada, diferentemente do início em que o luto prevalece.

Outra cena em que a fotografia exerce um papel fundamental para a construção da narrativa, é a sequência que apresenta a morte da família de Dani. A cena se inicia com um plano fechado de chaves na ignição de um carro e um bombeiro entrando em cena para desligá-lo. Através de um movimento de câmera, o espaço nos é gradualmente introduzido e percebemos se tratar de uma garagem e que o outro carro ao lado também estava ligado, pois há outros bombeiros desligando-o e abrindo a porta da garagem. Em seguida, há um plano detalhe dos escapamentos dos carros conectados a uma mangueira. Neste ponto, compreendemos o que aconteceu.

Nestes dois planos iniciais, a iluminação da garagem é completamente vermelha, o que tem uma relação direta e diegética com a própria luz do caminhão de bombeiros, mas que também exerce um papel muito forte na construção da tensão da cena, além de ser importante para o contraste presente no plano seguinte, no qual o bombeiro entra na casa e todo o interior recebe uma iluminação azul, relacionada ao ambiente de morte, enquanto vemos o contraste com o mundo exterior, vermelho, vivo.

Por fim, é interessante pontuar que todo esse contraste entre um início frio e um final quente, já nos fora apresentado, assim como toda a narrativa, na pintura inicial do filme, nela, há uma espécie de “fotoboard”, no qual, no canto esquerdo há uma lua, uso da cor azul e neve caindo, enquanto que no canto direito há um sol com fogo ao redor e a cor de fundo predominante é o amarelo.

ETHOS EM MIDSOMMAR

Deixando um pouco de lado a análise técnica e narrativa do nosso objeto, entro, a partir desta parte, na análise social e religiosa da comunidade do filme em paralelo com teorias de importantes autores que servirão de base para tais análises.

Clifford Geertz, falecido antropólogo e professor da Universidade de Princeton, lançou, em 1973, o livro “A Interpretação das Culturas”, no qual ele aborda, no quarto capítulo, a religião como um sistema cultural. Segundo o autor, o homem é um animal simbólico por natureza e se veria incompleto caso fosse destituido dos padrões culturais e, por cultura, Geertz compreende um conjunto de símbolos históricamente herdados que trabalham na formulação da estrutura moral de determinado povo.

Estes símbolos estão diretamente relacionados à religião e às crenças da comunidade em questão, as quais, juntas, determinam o que Geertz chama de ethos, conceito que define o caráter, a qualidade e o estilo de vida e a estrutura moral de um povo. Neste sentido, os sistemas religiosos seriam a base dos sistemas sociais e psicológicos que moldam os indivíduos inseridos na cultura em questão.

Como foi mencionado no início da análise da narrativa, a comunidade Harga entende a vida como as quatro estações, nas quais, em cada uma delas, o indivíduo deve cumprir com obrigações para a comunidade e para a natureza. Assim, o estilo de vida daquelas pessoas é bastante organizado e definido e sempre voltado para tais deveres. O próprio momento da peregrinação, que possui um aspecto mais individualista, tem como missão final que o indivíduo, em seu retorno, leve consigo pessoas para serem sacrificadas e participarem em seus rituais.

Além disso, é nítido que todos os rituais, crenças e práticas sagradas daquela comunidade possuem um vínculo íntimo com a natureza. Todas as celebrações a que assistimos no filme são dedicadas ao solstício de verão e principalmente ao Sol. Em uma das últimas cenas, quando Christian está tetraplégico em uma cadeira de rodas e está sendo organizado o último dos rituais do solstício de verão, a líder da comunidade explica que aquele era um momento de reciprocidade, de devolver ao “precioso Sol”, como ela o chama, tudo de bom que ele os deu, oferecendo a ele o sacrifício de nove indivíduos.

Com isso, é possível observar que eles têm o Sol como se fosse o Deus deles e, partindo desta ideia, por conta do sol da meia noite, pode-se dizer que Deus está sempre presente em Harga, já que o filme inteiro é constantemente banhado pela luz do Sol.

Além da valorização de elementos da natureza, há também uma importância bastante evidente do conceito de comunidade. Ali a comunidade não é apenas um grupo de pessoas que convivem no mesmo território e compartilham de costumes semelhantes, eles são um só. Os símbolos, bem como o próprio sistema religioso da comunidade os une de maneira a os tornarem uma unidade. Todos ali pensam da mesma forma, possuem as mesmas crenças e, muito provavelmente, terão o mesmo destino.

Esta questão da unidade fica evidente nas cenas em que um grupo de pessoas reage em conjunto à sensação de um outro indivíduo, como na cena em que Dani chora após ver Christian relacionando-se sexualmente com Maja e todas as mulheres que estavam com Dani imitam o som e os movimentos corporais de Dani. Ou ainda, de maneira mais marcante, na cena final, em que os nove sacrificados pegam fogo dentro da pirâmide amarela e todos os membros da comunidade assistem a cena reagindo à dor deles como se eles próprios estivessem pegando fogo, eles usam a dor dos outros para expurgarem sua própria dor.

Já é possível aqui, chegarmos a algumas conclusões acerca do ethos da comunidade. Eles doam suas vidas pelo que eles acreditam ser um bem maior: o bem da comunidade, que envolve o cumprimento de todos os deveres do indivíduo ao longo de sua vida, e o culto à natureza, que os faz pensarem o Sol como um Deus e a terra como um presente sagrado. Assim, cumprir com os rituais, zelar pela comunidade, respeitar as tradições e a natureza possui para eles um valor muito maior do que a própria vida humana, já que eles matam quatro pessoas externas à comunidade para oferecê-las ao Sol.

Neste ponto, cabe nos aprofundarmos em um aspecto específico do ethos, a moral. Considerando que eles vivem sempre buscando o equilíbrio com a natureza e com a comunidade e que o cumprimento dos rituais tradicionais é fundamental segundo suas bases morais, desenvolveremos na parte seguinte uma análise desta moral e seus possíveis conflitos com a moral do mundo secular contemporâneo.

MIDSOMMAR E A MORAL SECULAR PÓS-MODERNA

Na pós-modernidade, principalmente a partir da segunda metade do século XX e com o crescente processo de globalização, estabeleceram-se os direitos humanos como uma espécie de moral universal e com isso todos os outros sistemas morais que divergem dos direitos humanos passaram a ser questionados.

O direito à vida e a liberdade individual de expressão e de crença são valores defendidos pelos direitos humanos e que são entendidos atualmente na maior parte do mundo como direitos básicos dos quais todo ser humano deveria usufruir, mas é justamente por conta deste princípio que muitos defensores dos direitos humanos atacam práticas religiosas sem sequer considerar a possibilidade de que a base moral do outro não seja a mesma que a sua. Segundo Michael Sandel em “Justiça: O que é fazer a coisa certa?”:

“A ideia de que justiça significa respeitar a liberdade e os direitos individuais é, no mínimo, tão familiar na política contemporânea quanto a ideia utilitarista de maximizar o bem-estar. (...) E, por todo o mundo, a ideia de que justiça significa respeitar certos direitos humanos universais vem sendo cada vez mais abraçada”. (Sandel, p.29, 2008)

Assim, cabe aqui pensarmos de que forma a moral de Harga, a qual defende o sacrifício humano, o uso de pessoas externas à comunidade para seus rituais, a geração de crianças com deficiência mental para servir de ponte espiritual, conflita com essa noção de justiça apresentada por Sandel.

Muito provavelmente nenhuma das práticas acima citadas poderiam ser aceitas com tranquilidade atualmente, entretanto, ao condená-las, estaríamos violando o direito de liberdade individual e de crença religiosa. Por outro lado, Harga viola este mesmo direito ao utilizar pessoas de fora, sem seus devidos consentimentos, para os acasalamentos, rituais e até mesmo sacrifícios.

Aqui parecemos nos encontrar em um paradoxo como os propostos por Sandel em seu livro, e talvez seja justamente esse o caso, mas acredito que, nesse cenário, a chave para este dilema moral seja o consentimento. A liberdade religiosa de Harga termina a partir do ponto em que eles violam a liberdade dos estrangeiros, mesmo que isso seja aceito para a comunidade.

Tratando-se de moral, é importante pontuar o caráter moralista do título do filme em português: “Midsommar: O Mal Não Espera a Noite”. O filme é introduzido logo no título abordando aquela comunidade como sendo “o mal”, evidenciando a perspectiva secular e pós-moderna que se tem de Harga e não abrindo possibilidade para um relativismo moral como propõe-se aqui.

DANI E O SINCRETISMO

Em seu livro, “Religiões no Mundo Contemporâneo: Convivências e Conflitos”, Pierre Sanchis discorre sobre o conceito de sincretismo, o qual seria o resultado do encontro entre dois sistemas culturais diferentes, de modo a ressemantizar ambos. Sanchis afirma que costuma-se abordar tal conceito de maneira depreciativa, reduzindo- a simples misturas e degradações das religiosidades envolvidas, entretanto, segundo o autor, o processo do sincretismo se dá através das relações apreendidas no mundo do outro, as quais utilizamos para ressemantizar nossas próprias crenças e até mesmo moralidades. Sua definição de sincretismo seria, então:

O modo pelo qual as sociedades (os grupos sociais, aqui os grupos religiosos) são levadas a entrar num processo de redefinição da sua própria identidade, quando confrontadas com o sistema simbólico de outro grupo ou de outra sociedade (Sanchis, 1994)

Voltando-se agora para o objeto aqui em análise, não creio que haja em “Midsommar” um processo sincrético entre dois grupos religiosos como proposto por Sanchis, entretanto, sua definição de sincretismo funciona como uma base para analisarmos a ressignificação do universo da protagonista após o contato com aquela comunidade.

Na primeira parte do filme, não há nenhum indício, seja por algum acessório ou por algum símbolo no cenário, de que Dani, ou mesmo sua família, fossem religiosos, assim, é possível traçar um perfil superficial da personagem: branca, norte-americana, classe média, sem vínculos com alguma religião, estudante de psicologia, enfim, é possível atribuir a Dani um ethos secular pós-moderno.

Ao entrar em contato com as crenças e as práticas da comunidade, Dani passa por uma transformação radical. O primeiro momento efetivamente relevante para essa transformação se dá no primeiro dos rituais a que eles assistem, o Ättestupa, no qual os idosos concluem o ciclo de suas vidas se jogando de um precipício. A cena chocante perturba Dani e a faz lembrar da morte de seus pais, mas ela é o ponto de partida para que ela inicie uma trajetória de auto-questionamento e de ressemantização de sua própria existência.

Algumas cenas após o choque inicial deste ritual, Christian, em uma tentativa superficial de consolar Dani, propõe a ela um relativismo moral, no qual ele compara a cena dos idosos se lançando para suas mortes com o que os norte-americanos fazem com os idosos ao os colocarem em asilos. Apesar de Chris falar isso apenas para fingir que cumpre com o seu papel de namorado, essa talvez seja a única fala de fato útil do personagem, tanto para a narrativa como um todo quanto para Dani.

Nas cenas seguintes, Dani está mais introspectiva e parece ir aos poucos aceitando aquela nova cultura, até a cena final, na qual ela já fora coroada Rainha de Maio, integrada na comunidade como sua nova família e expurga suas dores ao assistir seu namorado pegando fogo dentro de um urso em sacrifício ao Sol. Toda a base moral que Dani tinha quando chegou na comunidade, foi derrubada e reconstruída com base em uma nova moral, a moral de sua nova família, a moral daquela comunidade que nos parece tão bizarra.

Assim, é notável que, se tomarmos Dani como um corpo representativo de um sistema cultural, podemos observar que ele foi completamente transformado ao entrar em contato o sistema cultural da comunidade sueca, em um processo bastante similar ao descrito por Sanchis e definido como sincretismo. Na parte a seguir, veremos como essa transformação de Dani, e a vitória de um sistema cultural religioso e espiritual sobre um sistema secular se vincula à teoria de Eric Kaufmann acerca do futuro demográfico do planeta terra.

O SISTEMA SOCIAL DE MIDSOMMAR

Eric Kaufmann em seu livro, “Shall the Religious Inherit the Earth?”, analisa o futuro da civilização humana  concluindo que a terra seria herdada pelos fundamentalistas religiosos, já que eles mantém um sistema mais tradicional de vida e de construção familiar do que os indivíduos seculares.  Enquanto as mulheres seculares se emancipam, voltam-se cada vez mais para suas carreiras de modo a adiar o casamento e o momento de ter filhos, isto se é que ela pretende ter filhos, a mulher religiosa mantém uma vida mais tradicional, voltada para as tarefas do lar e de sua família tendo pelo menos um filho para manter a tradição hereditária.

Desta forma, há um processo demográfico decorrente deste cenário no qual as populações mais tradicionalmente religiosas, dominantes principalmente em países mais pobres, estão crescendo, enquanto civilizações mais seculares observam uma queda nos números de natalidade.

Em “Midsommar” vemos que a comunidade mantém um rígido sistema de controle dos nascimentos e do próprio ciclo de vida. Por considerarem todos da comunidade membros de uma mesma família, eles respeitam o tabu do incesto e utilizam pessoas de fora para gerar as crianças da comunidade. O parceiro que engravidará a mulher deve ser aprovado pelos anciões e o próprio acasalamento é acompanhado por outras mulheres da vila como uma espécie de ritual sagrado, como é mostrado na bizarra cena de sexo entre Maja e Chris. Após o nascimento, a criança é criada por todos na comunidade, não havendo importância os laços sanguíneos para a determinação da família.

Com a geração de novos membros e o destino de cada indivíduo rigidamente controlados, a comunidade Harga perpetua suas tradições e crenças de maneira hereditária, assim como no cenário analisado por Kaufmann nas atuais sociedades religiosas.

Além desta questão geográfica e cultural, Kaufmann apresenta um ponto que se vincula à própria natureza psicológica do homem: o fato de que é muito mais fácil e provável que um religioso atraia um secular para a sua religião do que o contrário. Ademais, parece haver um padrão nos focos espaciais e temporais de concentração de religiosos, momentos de crise econômica e política, por exemplo, são um combustível para o fundamentalismo religioso.

Estes aspectos são evidentes na adesão de Dani à comunidade Harga. Ela chegou na suécia de luto pela morte da sua família e vivendo um relacionamento tóxico, ela havia perdido tudo e o pouco que lhe restara lhe era nocivo. Pode-se considerar, portanto, que Dani vivia um momento de crise em sua vida e justamente por isso, ao entrar em contato com a comunidade ela vê ali uma possibilidade de ressignificar sua vida e de encontrar uma nova família. Aquele mundo religioso, por mais diferente do mundo e da moral secular com a qual ela estava acostumada, a acolhe e se torna seu novo lar.

Além disso, podemos relacionar a conversão de Dani com o caráter simbólico da natureza humana desenvolvido por Geertz, o qual aparece no livro de Kaufmann no momento em que ele afirma que ao longo da história os homens desenvolveram uma necessidade para com as religiosidades. “Religious groups passed their genes on more effectively. In the process of natural selection, our ancestors developed a religious sensibility, even a need for it” (Kaufmann, p. 21, 2010) Desta forma, em paralelo com estas analises de Kaufmann e Geertz, é possível entender a trajetória de Dani como um despertar de sua natureza que estava adormecida pelo secularismo. Ao enfrentar um momento de trevas ela encontra novamente sua luz na religião, na espiritualidade, o que se relaciona diretamente, também, à trajetória da própria fotografia ao longo do filme.