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“Subterrâneos do Futebol” e a produção documental do cinema novo

Uma análise da produção de filmes documentais na década de 1960 no Brasil à luz do filme "Subterrâneos do Futebol", de Maurice Capovilla.

 

O Cinema Novo brasileiro surge na década de 60 aliado com a visão da realidade nacional do partido comunista, sendo, portanto, um movimento de esquerda, no qual o artista, o cineasta, assume a responsabilidade por conduzir a camada popular ao poder. A preocupação, neste momento, volta-se para a denúncia da realidade e a conscientização das massas, proposta que se assemelha a do neorrealismo italiano, o qual ocorrera na década anterior.

Alinhados com as propostas cinematográficas do cinema novo, os documentários brasileiros da década de 60 dão um grande salto em relação às produções documentais anteriores. São filmes que espelham um processo de conscientização de uma geração de intelectuais compromissados em transformar a sociedade, buscando enfatizar o papel histórico desempenhado pela classe trabalhadora, evidenciando a alienação do povo brasileiro e procurando mostrar a verdade sob a voz do intelectual, uma voz que traz embasamento teórico e científico para as imagens retratadas.

Dirigido por Maurice Capovilla, “Subterrâneos do Futebol” (1965) documenta a paixão dos brasileiros pelo futebol, trazendo como recorte a campanha do Santos na temporada de 64 -65 do campeonato paulista, no qual o time se consagra campeão e, vivendo o melhor momento histórico do time com Pelé, vinha da quinta conquista consecutiva do campeonato brasileiro.

Entretanto, o documentário não se restringe a uma abordagem documental dos torcedores paulistas, mas tece uma análise de denúncia sobre um povo que, mesmo em um cenário de golpe militar, mantinha-se alienado e vendo no futebol um alívio para os seus problemas e uma esperança de crescimento futuro, principalmente no caso dos jovens.

Muitos dos jogadores, como é apresentado no filme, vinham de outras regiões do país, de famílias muito pobres e sem perspectiva alguma de ascensão social. Assim, como ocorre até os dias de hoje, estes jovens viam no futebol uma saída para sua condição de miséria, uma oportunidade de subir na vida e conseguir sustentar sua família, porém, o documentário nos mostra que a vida de um jogador de futebol também traz muitas dificuldades, como o curto período de vida em que um jogador é capaz de se manter ativo e a própria exploração por parte dos clubes, já que, como Pelé afirma em uma das entrevistas, o jogador acaba sendo um escravo ou ainda, um objeto de domínio público como aponta um outro entrevistado.

Este movimento migratório e as relações de trabalho exploratórias se assemelha com o próprio trabalho do operário de indústria, o qual é abordado no documentário de mesmo ano, “Viramundo”. Este retrata o movimento migratório da classe dos trabalhadores rurais do norte que vinham para São Paulo em busca de melhores condições de trabalho, mas que logo se deparavam com um cenário bastante difícil e muitos acabavam retornando para suas terras.

Um interessante paralelo entre esses dois filmes é que ambos se iniciam com uma cena de um trem chegando em São Paulo vindo de regiões interioranas e, em ambos os casos, trazendo pessoas esperançosas, que depositam sua fé em um futuro melhor no futebol ou em um emprego na indústria.

Em “Subterrâneos do Futebol”, assim como em “Viramundo” ou em outros documentários do mesmo período, é a voz de um locutor intelectual que conduz a narrativa, relatando fatos sobre a realidade das pessoas ali retratadas, realidades que nem elas mesmas têm consciência, mas que esse narrador onisciente tem o papel de expor e denunciar, com o objetivo de conscientizar o povo brasileiro.

Assim, as pessoas que são entrevistadas e até mesmo o povo nas arquibancadas dos estádios, funcionam como pano de fundo para a fala do locutor, eles possuem o papel de comprovar aquilo que está sendo dito e ajudar na sustentação da ideologia carregada pelo filme. Por esse motivo, esses documentários eram bastante pensados e planejados. A montagem deve produzir uma sequência de eventos que aproximem o filme da realidade, a escolha dos personagens e as perguntas das entrevistas devem ser planejadas de modo que o entrevistado fale aquilo que se espera dele, até mesmo o som entra nessa função de comprovar a fala do narrador. Por exemplo, há um momento do filme em que o narrador fala da importância da torcida para os jogadores e diz que, para o jogador, viver sem o carinho dos torcedores teria a mesma sensação que estar em um estádio vazio, logo em seguida, a imagem do Pacaembu lotado que acompanha a fala fica em absoluto silêncio, justamente ilustrando o que estava sendo narrado.

É uma característica geral dos documentários cinemanovistas que o entrevistado assuma um papel secundário ao do locutor, já que este último seria o intelectual onisciente que não se atém a particularidades. O entrevistado, por outro lado, tem o papel de representar sua classe e comprovar os fatos trazidos pelo locutor, ele não poderia, justamente por ter uma fala baseada em sua própria experiência, ser validado sem o narrador – o embate, aqui, é de classes e não de indivíduos.

Analisando o papel que Pelé assume no documentário (o qual ele também assumiu na própria história brasileira), fica claro que a esperança que ele dá aos torcedores e a todo o povo brasileiro vai muito além de uma melhoria de vida ou de um salário mais alto. Pelé, ao conquistar três copas do mundo pela seleção brasileira (até o momento do filme havia conquistado duas), e se tornar um dos melhores jogadores da história do futebol, dá esperança a toda uma nação, esperança de progresso econômico, da própria imagem do Brasil no exterior e de individualmente pensar que, mesmo que não se conseguisse chegar no nível de Pelé, ele continuava sendo um brasileiro que começou sua carreira ajudando sua família a se sustentar engraxando sapatos, uma situação com a qual a grande maioria do povo brasileiro se identificava. Pelé leva a representatividade do povo brasileiro para o mundo exterior e é por isso que o povo quer vê-lo jogar.

A temática da alienação, que em “Viramundo” é retratada a partir da religião, em “Subterrâneos do Futebol” é o próprio futebol que assume esse papel. Logo no início do documentário alguns entrevistados afirmam gostar de ir assistir aos jogos por ser “uma distração inocente” ou por lhes tirar da cabeça, momentaneamente, seus problemas pessoais e financeiros.

Aqui, fica evidente que o povo brasileiro opta por aliviar seus problemas em rituais religiosos ou jogos de futebol, os quais lhes dão uma esperança ilusória, ao invés de adquirir consciência de seu papel naquele momento histórico e assumir a liderança de uma luta revolucionária, como defende o movimento cepecista no rio de janeiro, no início da década de 1960, ou mesmo nas propostas de base do próprio cinema novo.

Desta forma, “Subterrâneos do Futebol” molda a verdade através da montagem e da abordagem com os personagens de modo a servir à ideologia esquerdista do cinema novo, a qual é sustentada pelo narrador onisciente que se torna o protagonista e o condutor do documentário, nessa busca pela denúncia da alienação da massa e pela exposição da verdade por trás de um universo que, na visão do povo, parecia ser a solução para a pobreza e para a marginalização de muitas pessoas.