Mostra Brasil II (De Quais Águas Você Vem?) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Mostra Brasil II (De Quais Águas Você Vem?) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Cecília Coêlho

 

Reunindo quatro curtas, a Mostra “De Quais Águas Você Vem?” estampa autorretratos de seres deslocados nesse mundo binário. Uma curadoria de filmes ‘coming of age’ comoventes sobre pessoas transgênero.

 

Na curadoria da Mostra Brasil 2, do Festival de Curtas Kinoforum, entraram quatro filmes de um universo temático que, inspirados por uma linguagem fílmica crescente no Brasil, enquadram os olhares de crianças, jovens e idosos transgênero. A inspiração formal é derivada, de certa forma, do Novíssimo Cinema Brasileiro, preocupado em dialogar com o mundo material e compor as aflições do cidadão contemporâneo. O Novíssimo Cinema Brasileiro, de forma livre e abrangente, tenda a uma estética ilimitada de recursos formais com o contemporâneo. É a tentativa de tornar a ficção em realidade e a realidade em ficção. Com essa intersecção, enquadra grupos majoritários brasileiros, mas pouco representados nas telas.

 

A mostra abre com  Estrelas de Um Hit Só (2023, Luísa Guarnieri) projeto de conclusão de curso que se aproxima da estrutura do cinema clássico. A narrativa se destaca no roteiro: Barbara, uma pré-adolescente saudosista com os anos 1980, encontra Vênus, sue ídole  - será usado o neutro em relação à personagem do ator Elias Andreato, pois o filme não deixa explícito o gênero e nem a não-binariedade da personagem -, sem ter conhecimento que esta pessoa é de fato quem tanto admira. 

 

A obra dá pistas do plot twist logo no começo, quando um vizinho novo que aparenta ser muito fã da Vênus, e na verdade nada mais é que a própria estrela, chega ao seu bairro. A trama está toda embasada na construção da relação dessas duas personagens, no encontro entre o velho e o novo, admirar e ser admirado, lembrar e esquecer. Não há evidências concretas que afirmem o gênero de Vênus, porém as pistas quanto à sua verdadeira identidade estão por toda parte, diminuindo o impacto quando se dá a revelação. 

 

Apesar disso, o filme tem um ponto fortíssimo em sua trilha original. A canção “Deusa do Amor” é como chiclete, e tem gosto de anos 1980, perfeitamente escrita e composta para a temática do curta. Mas no geral, o filme tenta ser relevante ao fabricar conflitos entre as duas personagens, abordando questões como o  embate geracional, o esquecimento de celebridades pelo mundo da reprodutibilidade, o jovem em contato com a transgeneridade, tópicos que muitas vezes fazem sentido para a narrativa, mas não trazem muita inovação.

 

Em sequência, com 15 minutos, Ave Maria (2022, Pê Moreira) mostrou a potência do cinema brasileiro contemporâneo de baixo orçamento. O cuidado em compor o quadro se faz muito evidente neste, não havendo movimentos de câmera para além de um tripé e a realidade frente à lente. Uma jovem trans e sua família passam pela morte do pai, e desse modo tentam resolver águas passadas.

 

O filme causa uma dor que também toca o espectador de maneira universal, preocupado em fazer analogias para transmitir a sensação do que é ser trans para quem não é. Ele utiliza  signos visuais e imateriais para isso; a protagonista Maria, interpretada por Vênus Berliner, é o reflexo de sua mãe, como destaca o seu irmão, por sua vez  o reflexo do pai morto. Para além, a despedida do pai representa a partida do passado masculino de Maria, e assim como a família lamenta o fim da figura paterna, ela também lamenta o fim de um filho. 

 

É comovente a turbulenta relação mãe-filha, uma mãe que não consegue aceitar a transição de sua filha ao mesmo tempo em que projeta a morte do pai sobre ela. A linguagem do filme abre espaço para a inserção do elemento espiritual que é presente em todo o Brasil: o sincretismo religioso. Maria, então, é elevada à santidade por essa lógica, canonizada, ao fim, por ter sofrido todos os pecados e o autoflagelo da vida e mesmo assim concretizado o milagre: reunificar a família mais uma vez. O sincretismo se dá não apenas pelo cristianismo-umbandismo, mas também pelas contradições e complexidades de uma família negra de classe média baixa brasileira. A mistura no filme não é só espiritual, é a miscelânea entre o que é ser mulher e o que é ser homem. Ao fim da obra, quando todos estão na ceia de natal, agradecendo Jesus e Yemanjá, clamam “amém” e também “axé”.

 

Da mesma forma que Ave Maria é fácil de assistir e de se identificar, Peixe Vivo (2023) faz parte dos autorretratos trans da juventude. Dirigido por Bob Yang e Frederico Evaristo, o curta mostra uma família de classe alta tentando aceitar a sua filha pequena, que no filme é vista como um menino, mas que se identifica como menina. O filme traz muitos signos imagéticos que indicam a transgeneridade da criança, assim como mostra a persistência e a firmeza da mesma em se afirmar como menina.

 

É evidente o alto conhecimento técnico e de linguagem que os diretores possuem, refletido na decupagem e no roteiro. O último elabora uma construção autorretratista da criança com a sua transgeneridade: ela possui uma amiga sereia imaginária, se desenha como sereia e ela anseia por poder nadar na piscina sozinha e sem boias. O conflito central não é a aceitação dos pais, mas sim em como aprender a nadar. Para alguns é muito natural, para outros o aprendizado pode ser traumático, tal como é para a protagonista. A obra culmina na criança nadando sem boia em segundo plano, enquanto em primeiro plano estão os pais na sala, alheios ao momento. Com isso, a música infantil cantada pela menina, “como pode um peixe vivo viver fora da água fria?”, questiona: como ela poderá viver não sendo quem realmente é? O último plano, rodado em película, traz um charme especial à filha saindo da piscina e correndo para mostrar aos pais que não precisa da boia de Batman que deram para ela, faz isso enquanto olha diretamente para a câmera.

 

(Peixe Vivo, Bob Yang e Frederico Evaristo)

 

A mostra encerra com o minidoc Peixes Vivos (2023, Bru Fotin, Bob Yang, Frederico Evaristo), que nada mais é que o documentário dos bastidores de Peixe Vivo. Poderia apenas ser um making-of do curta-metragem, mas ele acaba assumindo a linguagem de documentário a partir da busca pelo imprevisto, pelo peixe vivo no processo de filmagem. E o encontra. Ele está na piscina, em que a água é o equivalente ao líquido amniótico, onde se pode renascer como de fato é.

 

Assume então duas abordagens, uma delas a câmera apontada para o espontâneo, outra diretamente para o objeto, fundamentada nas entrevistas. Entender o contexto de criação da obra ficcional enriquece o espectador, mas também a materialidade do documentário apresenta que os atores mirins foram essenciais para enriquecer os signos dramáticos. Gustavo Batista faz a protagonista no filme e Agatha Maria a sua amiga imaginária, ambos são crianças trans - por mais que Gustavo interprete uma menina trans no filme, ele é um menino trans na vida real. Dessarte, a subjetividade identitária na narrativa se faz pela vivência desses atores em associação com a preparação de elenco, de autoria de Nash Laila. 

 

Gustavo parece ser um grande professor, está sempre trazendo ensinamentos e soltando frases de efeito nos bastidores, ele contempla o existencialismo ecológico, explica como as plantas sobrevivem e como elas “vivem sem o célebro, por fora parece morta, mas por dentro, ela tá verde”. Agatha também traz reflexões ao pedir que morresse hoje como menino para nascer como uma menina trans amanhã. Isto posto, a obra vai lidar com as despedidas e os relatos da mãe de Agatha e de pãe de Gustavo, indicando a dificuldade de se lidar com a transição do outro, mesmo que e pãe de Gustavo também seja trans. Fica claro que, quanto mais alguém se esconde, mais apaga a sua existência. 

 

Essa curadoria coesa, feita pelo Kinoforum, orienta um olhar de luto, mas com esperança para o renascimento. Lida com os autorretratos da vida de brasileiros que não são retratados, mostra mérito de autores e artistas trans em servir o cinema nacional e compor um dos maiores festivais de curtas-metragens do Brasil e do mundo.

 

 

Biografia:

Cecília Coêlho é obcecada por filmes e os enigmas da imagem. Graduanda em cinema na FAAP, onde realiza curtas independentes. É inclinada à área de roteiro, a qual tende ao experimental e ao vulgar.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima