Mostra Brasil V (Tensões da Terra) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Mostra Brasil V (Tensões da Terra) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Marcos Kenji

 

A curadoria de curtas da Mostra Brasil V destaca diferentes conflitos quanto à relação entre as pessoas e a terra. Em essência, é sobre moradia, sobrevivência e trabalho, mas também violência e invasão. São trabalhos ativistas, na luta pelo direito de viver na terra, e o cinema é o meio perfeito para colocar esse debate em atividade.

 

Ao pensar no tema “tensões da terra”, uma passagem de Cabra marcado para morrer (1984, Eduardo Coutinho) vem à mente, na qual Elizabeth Teixeira introduz o movimento sindical no povoado de São Rafael. É debatida a desocupação da região, que seria alagada pela construção de uma represa, e o sindicato seria, no caso, o principal negociador de uma indenização justa para a população da região. Por conseguinte, o cerne do tensionamento das relações espaciais e sociais com a terra é o conflito de classes (no caso, entre os camponeses e o Estado) gerado pela delimitação espacial forçada pela propriedade privada. Não é um conflito novo, considerando que trabalhadores lutam, desde os anos anteriores à Ditadura Militar, pela reforma agrária. Ao reintroduzir este tema em Cabra, Coutinho formalmente restabelece esse conflito e inspira um debate prolífico no cinema brasileiro.

 

Não é à toa que o documentário pernambucano Pedro e Inácio (2023, Caio Dornelas) será o primeiro referenciado aqui: este é um filme ativista na luta pela redistribuição de terras que é, notoriamente, associada ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. A título de definição, o filme aborda as circunstâncias do assassinato dos irmãos Pedro e Inácio, durante o Massacre do Engenho Camarazal (1997), na cidade de Nazaré da Mata, Pernambuco. Pedro e Inácio são colocados, efetivamente, como representantes da conquista desta região para o estabelecimento do assentamento. As circunstâncias do crime, segundo a descrição do próprio site do MST: a área foi considerada improdutiva e o imóvel seria desapropriado, os trabalhadores rurais ocuparam a área como uma maneira de acelerar a desocupação. Alguns dias depois, durante a noite, cerca de 30 pessoas armadas invadiram o acampamento e atacaram as pessoas residindo ali. Na manhã seguinte, os corpos de Pedro e Inácio foram encontrados, esquartejados, boiando em um rio nas proximidades. E como esta mesma publicação sugere, há indícios do envolvimento do latifundiário que, supostamente, seria dono da região. O tensionamento se coloca.

 

Como já se pode imaginar, Pedro e Inácio não propõe um contexto inédito, na medida em que tanto Camarazal (1999, Paula Reis e Ventuil Barroso) quanto Armas não atiram Rosas (2007, Maria Luísa Mendonça e Thalles Gomes) abordaram, de maneiras semelhantes, este mesmo recorte. A priori, pode-se intuir que o objetivo principal é retomar as investigações deste crime, após 25 anos, tendo em vista a maneira chocante como o crime é descrito. É uma forma de ativismo dos moradores da região.

 

A despeito desta pretensa objetividade do filme, há outras propostas formais, no mínimo curiosas: a representação da vida comum destas pessoas e a restauração da foto de Pedro e Inácio. São curiosas por, não somente, oferecer uma diferenciação formal para os outros filmes, mas também por não contribuir de maneira imediata na argumentação do documentário. Logo, pode ser dito, com convicção, que essas contribuições têm o objetivo de comover de uma maneira mais tradicional. 

 

Em uma sequência, o irmão Inácio cuida de alguns cavalos, comenta o nome dos animais e, em sequência, reflete sobre como a vida deles é o motivo pelo qual Pedro e Inácio se sacrificaram. Fica claro que outro objetivo do filme é mostrar a vida coletiva no assentamento. Não é por acaso que a primeira imagem do curta mostra a chegada da equipe de filmagem no assentamento, um deles troca algumas palavras com um dos moradores, só que a equipe não aparece mais no filme. A ideia parece ser de permitir que os moradores conduzam a narrativa.   

 

Também entrecortado à narrativa principal, há o processo de restauração da foto de Pedro e Inácio, que culmina na distribuição para a população da região. Na sequência final, há uma série de planos com uma pessoa segurando a foto e algum cenário da região (uma escola, um rio, uma casa, etc.). É um desenlace sentimental, fruto da principal interferência da equipe de filmagem, que não soa somente como uma homenagem aos mártires Pedro e Inácio, mas também uma pose para foto.

 

(Pedro e Inácio, Caio Dornelas)

 

Essa centralidade emocional na pose para foto contradiz com a noção de permitir que os moradores liderem a narrativa. A escolha formal é categórica: contar essa história apelando ao sentimentalismo. A escolha simultânea de descrever textualmente o crime de Pedro e Inácio e apelar para o emocional do espectador não estimula uma reflexão formal que vai além do texto. Por consequência, o objetivo de produzir alguma repercussão política, suficiente para que seja reaberto o caso, nunca é alcançado. Doravante a reflexão cai na responsabilidade do filme como porta-voz dessas pessoas. Em tempos de relativizações, narrativas que apresentam a menor das fragilidades não se sustentam em um debate político. 

 

Cadim (2022, Luiza Pugliesi Villaça) é um curta-metragem de animação, premiado nos festivais FunFest (Portugal) e Animatiba (Festival Internacional de Animação de Curitiba), que narra as andanças de um homem e seu pássaro, em uma terra árida e estéril, em busca de um local para se assentar. Seu Zé (o homem) encontra um terreno fértil que, por acaso, pertence a algum fazendeiro ou latifundiário. Por consequência, ele é perseguido por um pistoleiro que fere seu pássaro.

 

Não há trabalho nenhum em descrever os beats narrativos (as causas e consequências que conduzem o drama), já que, sendo eles incrivelmente intuitivos, o que se destaca é como eles são aplicados formalmente. Quero dizer, como a animação propõe a fluência dos eventos. O tema “tensões da terra” é utilizado como a forma do filme, o drama está posto em como o ambiente, mais do que o pistoleiro em si, se constitui como uma  ameaça que assola o protagonista.

 

Seu Zé é animado com uma série de linhas em movimento, que nunca o definem completamente. Já o ambiente desolado é como se fosse pintado com lápis de cor em um papel amassado, parece um cenário fixo. No entanto, o filme passeia por diferentes cenários, que chegam, no auge da perseguição, a se desfazerem, como ondas de areia.

 

(Cadim, Luiza Pugliesi Villaça)

 

As imagens do filme estão sempre à beira da entropia, com a sensação constante de que aquele mundo está prestes a ser destruído, mesmo na parte fértil da paisagem. Seu Zé é um personagem em trânsito, fugindo deste ambiente em autodestruição (afinal, ele precisou partir por conta de um incêndio na vegetação), e sua movimentação para sobreviver parece nunca chegar em algum lugar. A trilha musical expressa bem essa sensação, com um violão que oferece tensões e distensões no ritmo de seu dedilhar. Isso não cria apenas uma progressão mais tradicional, mas também dá ritmo para a ameaça que este ambiente oferece. A terra tensiona sua relação com indivíduo e outros seres humanos, escorados na noção de propriedade privada, aumentam esta tensão com a violência.

 

O curta (inédito) Despovoado, Ou Tudo Que a Gente Podia Ser (2023, Guilherme Xavier Ribeiro) perpassa as transformações de um pequeno povoado, em 1950, na região oeste do estado de São Paulo: uma vizinhança que se transforma em uma comunidade, ao redor de uma música no rádio, que estimula relações além da cordialidade. Anos depois, a mesma música é reproduzida pela neta de um dos moradores que, com a identificação dos harmônicos, se lembra, por bem ou por mal, dessas transformações.

 

(Despovoado, Ou Tudo Que a Gente Podia Ser de Guilherme Xavier Ribeiro)

 

Isso posto, observa-se a centralidade da mixagem de som na dramatização das tensões da terra nesse filme. Não é à toa que, em muitos dos planos gerais, o poste com um alto falante de rádio acoplado está no centro da cidade. O progresso está aqui, a população passa do estranhamento à reunião ao redor deste poste - pessoas de todas as etnias e idades, inclusive duas representantes de um povo indígena. E, quando todo mundo está distraído, fazendo festa, um pistoleiro vem executar as ordens de um fazendeiro. Os diálogos e as ações em câmera não contam esta história por completo, e em muitos momentos sons em off descrevem os acontecimentos, desde um trem até a sintonização do rádio. Além disso, em nenhum momento há violência explícita, a agressão está no plano da composição sonora do filme, que consiste em três camadas, em especial: os diálogos e ambiências (som direto), os ruídos e as músicas, diegéticas (que pertencem ao universo da história) e não diegéticos (criadas para a condução emocional das cenas). A contiguidade destes elementos soa como uma música atonal, com o destaque à combinação do som das abelhas, ruídos de rádio e da música tema do filme. Quando sobrepostos, há uma acoplagem orgânica entre os sons, o que conduz emocionalmente o drama e cria a tensão do atonal com o conforto de uma música harmônica. Nem a natureza é mais sinônimo de conforto.

 

Tudo isso culmina no plano final: uma enorme plantação com sons de abelhas, cerceando os restos mortais desta terra, e vozes de fantasmas se misturando a sons de interferência, progressivamente sintonizados à música. Este é o plano síntese do filme, é o “motivo” de toda a violência contra a população do vilarejo. E, o que fica, é essa imagem preenchida de vazio. A commodity é a única coisa que expressa vida neste ambiente.  

 

Por último, o curta-metragem paulista Eu Sou Uma Arara (2023, Mariana Lacerda e Rivane Neuenschwander) parte de uma reação a todas as tensões da terra. Soa como uma expressão fílmica da catarse coletiva de uma manifestação popular: “Na escalada do fascismo no Brasil, animais, plantas, micélios e seres humanos já não se distinguem mais” (como a própria sinopse afirma). Formalmente falando, o filme documenta a intervenção artística de pessoas vestidas com roupas de animais em marcos turísticos da cidade de São Paulo.

 

A tensão da terra se intensifica com a ocupação destes espaços urbanos. Os animais saem da natureza e preenchem os espaços da cidade, com placas preenchidas com palavras críticas ao governo daquele momento. No voice over, discursos dos mais diversos temas, em línguas diferentes. Os animais não dizem absolutamente nada, eles agem. Eles são observadores dessa soma de discursos disformes que, a priori, soam apenas como ruído. (Vide foto de capa)

 

Todavia, a partir do momento que estes atores não pronunciam uma palavra, seus corpos e suas ideias estimulam as pessoas a falarem. Para isso, os animais propõem intervenções itinerantes provocativas nas ruas de São Paulo. Por exemplo, um dos animais entregando fotos dos incêndios na Floresta Amazônica e suas consequências, no Viaduto do Chá. Entrecortar estes atos com a presença dos atores nas manifestações renova constantemente as escolhas formais do filme. Além disso, a trilha sonora acopla, nestes signos visuais, sons que expressam o caos interpretativo. O leque de sons utilizados perpassa sons da natureza, da cidade, de multidões, de violência e, em especial, de músicas graves, com muitos tambores. As imagens não soam como alegorias ou metáforas visuais, mas sim captações mais diretas dos atos destas pessoas. E os efeitos são de uma provocação sensorial que incita a atividade do espectador.

 

Há o entendimento claro de que estar no cinema não é mais sinônimo de passividade, de absorver valores prontos de uma fonte luminosa e sonora. É possível que, pelo cinema, o espectador seja estimulado a resolver as tensões de sua terra. Cada um dos filmes citados neste texto demonstra, de uma maneira ou de outra, este chamado à ação que encontramos na ficção. Alguns até fazem isso mais diretamente que outros, mas, em essência, o que importa é a busca por um cinema político consciente da tarefa de iniciar um diálogo ativo do público e não propor respostas categóricas. O cinema é passível à crítica e a forma fílmica é utilizada, justamente, para alcançar o objetivo de enriquecer o debate político.

 

  

Biografia:

Marcos Kenji é graduado em Cinema pela FAAP, onde realizou 4 curtas-metragens nas áreas de som, arte e assistência de direção. No momento, está se especializando na técnica de som, com o objetivo de atuar na área e escrever com autoridade sobre o assunto. Tem um texto publicado na edição no 4 da Mnemocine.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima