Mostra Brasil XI (Entre o Céu e a Terra) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Mostra Brasil XI (Entre o Céu e a Terra) | 34º Festival Internacional de Curtas Kinoforum

Por Luiz Afonso Morêda

 

Sessão apresenta um panorama com produções indígenas, com destaque para uma trilogia de filmes Yanomami

 

O programa 11 da Mostra Brasil é uma sessão cuja ideia de religiosidade já está no título, que dificilmente poderia ser mais preciso. É composta por cinco filmes que dialogam, de uma forma ou de outra, com a questão indígena. Os três primeiros são trabalhos realizados em aldeias Yanomami, em uma parceria entre a associação Hutukara Yanomami e a produtora paulistana Aruac Filmes; há também um filme realizado em aldeia Guarani, também por cineasta indígena; e por fim, um curta do realizador e ator manauara Adanilo, figura de destaque na cena amazonense.

 

Filmes indígenas são essenciais nos espaços de exibição, mas não por trazerem ao debate as “pautas indígenas”, presentes quase todos os dias nos mais diversos noticiários — é evidente, por exemplo, que o público de um curta Yanomami já está a par da situação, de um ponto de vista objetivo e social, desse povo. A importância de exibições como essa, e de trabalhos como esses, reside na possibilidade de mostrar a um público majoritariamente branco, urbano, o que é (e o que pode ser) o cinema nas mãos de sujeitos dotados de um entendimento de mundo cada vez mais incomum hoje em dia.

 

A trilogia Yanomami

Essa sequência de curtas é marcada por dois filmes de um mesmo grupo de realizadores: Yuri U Xëatima Thë - A Pesca com Timbó e Thuë Pihi Kuuwi - Uma Mulher Pensando (2023, Roseani Yariana Yanomami, Aida Harika Yanomami e Edmar Tokorino Yanomami). 

 

No primeiro curta, dois dos realizadores narram o processo — quase ritual — de pesca dos Yanomami, enquanto vemos, através de registros bastante brutos, essa pesca acontecer. O registro documental ganha força com a vivacidade daquele mundo e daquelas pessoas. 

 

Já no segundo trabalho, exibido esse ano na Mostra de Tiradentes e no Festival Ecrã, Aida Harika reflete sobre um processo xamânico, enquanto imagens mais abstratas são exibidas — isto é, aqui, as imagens não simplesmente ilustram o texto narrado, mas dialogam com ele de formas menos diretas. Há, no curta, uma série de belezas em luzes que incidem nos corpos e na natureza, que culmina em um belo plano final.

 

O terceiro trabalho de parceria Yanomami com Aruac Filmes é ainda mais onírico. Em Mãri Hi - A Árvore do Sonho (2023, Morzaniel Iramari) percebe-se a atenção do cineasta para filmar aquilo a que muitas vezes não se dá atenção: um céu no entardecer, uma luz refletida no chão. Há um certo lugar comum em algumas imagens da obra, no que concerne à expressão visual de um sonho — às vezes os fundos parecem propositalmente estourados e há borrões nas imagens —, mas no geral a potência provém de uma honestidade, de um tom de denúncia. 

 

(Mãri Hi - A Árvore do Sonho, Morzaniel Iramari)

 

Em determinado momento da obra, o grande xamã e líder político Davi Kopenawa Yanomami lê um texto, no qual salta aos ouvidos a pronúncia da palavra “tradução”. Esta é proferida quase em português, o que chama atenção para um ponto basilar da obra: a dificuldade (e, ao mesmo tempo, necessidade) de transposições, de contato entre mundos diferentes, a urgência em colocar um meio que nasce científico, europeu, nas mãos de povos que tanto tempo viveram isolados, violados.

 

É curioso que esses três filmes componham, juntos, quase um sistema de imagens — há algumas que aparecem de modo recorrente em mais de um deles. Todos os três acabam com um mesmo pronunciamento, salvo algumas pequenas diferenças: um pedido de ajuda, por parte dos Yanomami. Mensagem que percorre pelo menos cinco séculos de exploração, mas que, como nunca foi devidamente escutada, tem de continuar sendo repetida.

 

Nhe’en-Mongarai - Batismo da Alma (2023, Alberto Alvares)

A obra gravada em uma aldeia Guarani no Paraná é bem diferente das outras. Prevalece, no filme de Alvares, um senso rítmico intenso, o que em algum sentido parece um contrassenso, na medida em que a velocidade parece ser característica de civilizações modernas. Mas na verdade as imagens do filme, assim como a montagem, parecem por vezes corresponder a intensidade da música, que provém de um registro de uma espécie de ritual, e que termina por escorrer para outros momentos do curta. 

 

(Nhe’en-Mongarai - Batismo da Alma, Alberto Alvares)

 

Os planos nesse filme apontam para um senso poético: belas panorâmicas, muitos registros de céus crepusculares — com direito a um deles realizado numa estrada, gravado de dentro de um carro, o que denota uma coragem e sensibilidade por parte do realizador, interessado em abarcar diferentes aspectos daquela realidade. Um filme que se comporta como um transe, mas que, e isto é o mais bonito, compõe essa alucinação com simples imagens da natureza: o céu, as crianças, os campos, um recorte de luz. O entendimento de que a realidade é alucinante por si só.

 

Castanho (2023, Adanilo)

O último filme do programa é, por assim dizer — e de forma alguma num mau sentido — o seu mais convencional. Não cabe aqui especular sobre as razões pelas quais isso ocorre, mas talvez contribua o fato de o realizador ser ator e estar presente em várias produções ricas de players globais (Marighella, Cidade Invisível, a série da Amazon Dom). 

 

O filme mostra Mariah (Sofia Sahakian), uma jovem de algum lugar da América Latina na comunidade ao redor de Cachoeira do Castanho, localizada na cidade de Iranduba, no Amazonas. O trabalho difere dos outros, na medida em que não está focado em narrar uma tradição de um determinado grupo originário, mas antes no drama de uma personagem, estrangeira, em uma determinada comunidade — questão que é presente no cinema ocidental contemporâneo de forma geral, por exemplo, desde um cineasta norte americano como James Gray, a europeus como Aki Kaurismaki e Claire Denis.

 

O curta se passa num ambiente urbano, de certa forma, em que a cachoeira é basicamente uma praia onde as pessoas se reúnem para beber e conversar. Ainda que se trate, no entanto, de uma comunidade pouco desenvolvida urbana e economicamente. 

 

(Castanho, Adanilo)

 

O filme encontra bons momentos nas interações entre os personagens (são muitas as elipses, o que torna tudo interessante), e há pelo menos duas belas cenas, que passam a ideia do curta como um exercício de forma. A primeira delas, quando Israel Castro, que interpreta um amigo de Mariah, e Sahakian conversam, andando, na saída da praia, e a câmera acompanha os dois em um travelling improvisado, em que a luz do sol incide no casal de forma instável.

 

O segundo momento, que tem a decupagem mais interessante do curta, é quando Castro olha para a Lua, na penúltima cena do filme. É um simples jogo de raccord — menos simples do que parece — que coloca a obra dentro do Cinema, por assim dizer, que sugere as dificuldades e invenções de um cineasta preocupado com decupar o tempo e o espaço.

 

A sequência começa com um plano do satélite, ocupando quase todo o quadro, e em seguida corta para um raccord do rapaz olhando para o fora de campo. O rosto dele é iluminado por uma luz artificial. Um terceiro plano situa Sahakian atrás dele, sentada, enquanto toca uma música agitada. A sequência continua com uma interação entre os dois.

 

A Mostra Brasil 11 - Entre o Céu e a Terra traz um panorama interessante sobre o cinema indígena, ainda que não tão variado, na medida em que dois filmes são dirigidos pelas mesmas pessoas. Espera-se que abra caminhos para que outros filmes, com outras preocupações, sensibilidades e formas de explorar o cinema, sejam produzidos e exibidos em grandes centros.

 

 

Biografia:

Luiz Afonso Morêda é estudante de cinema e cineasta.

 

 

A cobertura do 34ª Festival Internacional de Curtas de São Paulo - Curta Kinoforum faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos à Atti Comunicação e Ideias e a toda a equipe da Associação Cultural Kinoforum por todo o apoio na cobertura do evento. 

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta, Apoio de produção e Transcrição das entrevistas: Rayane Lima