Dinheiro Fácil (2023, Craig Gillespie) | 47ª Mostra de Cinema de São Paulo

Dinheiro Fácil (2023, Craig Gillespie) | 47ª Mostra de Cinema de São Paulo

Por Fernando Oikawa Garcia

 

Dirigido por Craig Gillespie, filme se sustenta pela presença de Paul Dano, mas sofre com suas contradições de discurso e a incapacidade de capturar o absurdo da realidade.

 

Dinheiro Fácil (Dumb Money, 2023) é um filme que orgulhosamente exibe seu pertencimento ao contemporâneo. De fato, não são muitas as obras baseadas em eventos reais que dão enfoque a acontecimentos tão recentes: retratado aqui em tons de comédia, o caso da inesperada alta de ações da GameStop se deu entre 2020 e 2021, ocupando destaque na imprensa estadunidense. Este é um filme, portanto, realizado ainda no calor do momento — sua feitura remete ao agora, sua ambição é converter Hollywood em notícia. Na tela, lives, memes e excertos jornalísticos dividem ora ou outra o espaço com a ação dramática; por todo lado, personagens olham para os seus celulares, onde no mundo digital acontece a ação.

 

Até pela temática do mercado financeiro, poderia se esperar que Dinheiro Fácil se aproximasse, em estilo, das comédias de Adam McKay e seu A Grande Aposta (2015) — filme paradigmático, para bem ou para mal, de um certo modo de fazer comédia hoje, vinculado à montagem frenética e à dinâmica das redes sociais. O longa de Craig Gillespie até acena para o absurdismo, mas foge de maiores arroubos estilísticos: não há quebras de quarta parede ou gestos de autoironia; os conteúdos da internet existem, mas em sequências isoladas do todo. Gillespie, diretor às vezes dado à estilização, como visto em Eu, Tonya (2017) e Cruella (2021), curiosamente realiza aqui uma comédia dramática clássica, livre de maneirismos, um conflito de Davi vs. Golias que se equilibra entre o satírico e o afetivo.

 

Ao se colocar como obra coral, para além do protagonismo do analista financeiro Keith Gill (Paul Dano), Dinheiro Fácil se divide entre a família do homem, aqueles que seguem seus conselhos no Reddit e os bilionários do sistema que antagonizam com eles. Mais que um herói, a Gillespie interessa o coletivo do movimento; Gill, o líder, é apenas a figura em torno da qual convergem as histórias — e o caráter pitoresco do analista é valorizado pela performance de Dano, numa composição excelente que equilibra estranheza e doçura. Temos um sujeito de classe média, mas que, do porão de sua casa, em sua cadeira gamer e vestindo uma camiseta de gato, torna-se Roaring Kitty para o público digital de suas lives.

 

É justamente o personagem de Dano o elemento que mais soa autêntico em Dinheiro Fácil, graças ao cruzamento da persona sui generis de Gill e a performance do ator. Tudo que lhe escapa, o espaço e as pessoas à sua volta, parecem elementos ocos, cuja existência decorre apenas da necessidade da trama. Isso não é exatamente problema do roteiro de Lauren Schuker Blum e Rebecca Angelo: é um da ordem da direção de Gillespie, afeito aqui à execução correta, mas de uma impessoalidade quase algorítmica. Se os seguidores de Gill nos parecem adereços, é porque o longa não é capaz de estabelecer uma relação entre eles e seus ambientes de sociabilidade — a universidade, o hospital, a loja: todos esses espaços são planos de fundo, a encenação não os insere no cotidiano.

 

 

 

Em Dinheiro Fácil, narrar não parece um gesto conectado às imagens, a um exercício do olhar e da câmera. Capta-se o texto do roteiro, não importando os modos da encenação. Sejam os personagens ricos ou pobres, eles são filmados à mesma maneira, a meia distância: a fotografia não traduz o conflito político-social retratado, nem busca signos contrastantes. Prefere-se a "eficácia" do estilo direto, avançando rápido na trama, mesmo que isso gere oscilações de tom, na pressa entre o drama e a piada. Gillespie parece acreditar que ritmo é acelerar os cortes na edição, criar montagens paralelas entre núcleos narrativos, inserir músicas (pop, rap, hip hop) que se sucedem a esmo — um imediatismo que parece sintomático das formas cada vez mais aceleradas de consumo do audiovisual.

 

Se Dinheiro Fácil exibe, portanto, seu pertencimento ao contemporâneo no recorte e na forma, ambos convergem para uma determinada postura (a)política também muito própria da atualidade. Os filmes de estúdio sobre luta de classes nunca tiveram tanta força de mercado e, ainda assim, nunca foram tão inofensivos: de dramas biográficos (As Golpistas, 2019) a fictícios (O Tigre Branco, 2020), passando por filmes de gênero variados (Coringa, 2019; O Menu, 2022; Glass Onion, 2022), o sentimento de “eat the rich” se tornou um tópos cada vez mais recorrente na ficção, apropriado porém pela lógica do capital que é objeto da crítica. Como ocorre em Dinheiro Fácil, a luta de classes é transformada em entretenimento, colocada como uma espécie de jogo ao qual assistimos, passivos, e que, concretizada na tela, parece nos isentar da necessidade de ação política real.

 

Daí o problema do filme de Gillespie: não é a falta de uma posição política mais incisiva, é o fato dele prometer, no discurso, uma postura combativa (enfrentar Wall Street, derrubar o sistema etc.), sem de fato efetivá-la — o otimismo, desprovido da consciência do absurdo, torna-se algo tolo. Aqui, o inconformismo social é menos substância do filme que um simples gesto alusivo para agradar os mais variados movimentos ideológicos, da esquerda a direita: não à toa, tanto a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, democrata progressista, quanto o empresário Elon Musk, próximo da alt-right, surgem no filme como apoiadores do grupo, sem que isso de modo algum represente qualquer elemento de contradição.

 

Tal versão idealizada dos fatos, em última instância, representa um desejo de conciliação entre os insubordinados e o sistema, como se o movimento de Gill pudesse corrigir o mercado e torná-lo um espaço justo de disputa — uma ideia, inclusive, que é veiculada pelos letreiros do desfecho, de um tom utópico incompreensível. A vitória de uns é tomada como vitória definitiva, capaz de pôr fim às disfunções da bolsa, não como um misto de sorte e iniciativa coletiva que pouco abala o establishment. O que essa ideia implica é, na verdade, uma crença absoluta no sistema, não sua discordância a ele. Não é surpresa alguma, quando sobem os créditos finais, ver o nome de dois investidores vinculados ao mercado financeiro como produtores executivos do filme. Tudo segue em festa em Wall Street.

 

 

Biografia: 

Fernando Oikawa Garcia é graduando em Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde realizou projeto de pesquisa sobre o cineasta Fernando E. Solanas. É diretor e roteirista de três curta-metragens, buscando refletir nas produções seu interesse pelas possibilidades de diálogo entre cinema e literatura.

 

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik e Luca Scupino

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Rayane Lima