Alguma coisa sobre Almondóvar

É quase possível afirmar que se no início da década de 80 alguém falasse: "CINEMA ESPANHOL", desencadearia automaticamente uma reação de ligação: "CARLOS SAURA" (ou para outros, um pouco menos, Luis Buñuel).

Hoje, duas décadas e treze filmes mudaram para sempre a história do cinema espanhol, pois é quase impensável falar sobre ele ignorando o manchego Pedro Almodóvar e seus melodramas pós- modernos.

Apesar de só ter se tornado mundialmente conhecido pelo filme "Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos", em 1987, foi exatamente no ano de 1980 que se iniciou a trajetória de longas de Almodóvar (antes, no período da morte de Franco, fez trabalhos em Super-8), com o filme - "Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón", uma divertida e escrachada viagem em meio ao universo da movida madrileña, tão familiar ao diretor. Com este filme, o cineasta nos introduz ao seu "mundo paralelo" de paixões extremas, de perversidades sexuais, de excentricidades, de tipos que hoje já fazem parte das nossas vidas com toda a naturalidade do mundo, afinal nada mais comum do que uma freira grávida de um travesti, filha de uma mulher conservadora que sobrevive às custas de falsificações de quadros; uma jovem mãe que utiliza-se do eixo Madri- Barcelona para fugir e encontrar Estebans marcados por tragédias; travestis que engravidam freiras; uma atriz veterana que sofre às voltas com sua amante viciada... Desconcertantes?! Não, desconcertantes são os homens e suas guerras, é o que parece nos querer dizer Pedro Almodóvar, com seu premiado filme "Tudo Sobre Minha Mãe" (Todo Sobre Mi Madre, 1999).

Sobre a escolha do tema fala Almodóvar: "Minha idéia a princípio foi fazer um filme sobre a capacidade de atuar de determinadas pessoas que não são atrizes. De menino lembro haver visto esta qualidade nas mulheres de minha família. Fingiam mais e melhor que os homens. E, a base de mentiras, conseguiam evitar mais de uma tragédia. Contra este machismo manchego que recordo, talvez agigantado, de minha infância, as mulheres fingiam, mentiam, ocultavam e deste modo permitiam que a vida fluísse e se desenvolvesse, sem que os homens se enterassem nem a obstruíssem. (Ademais era espetacular. O primeiro espetáculo que vi foi este, de várias mulheres falando, nos pátios) Não sabia, mas este ia ser um dos temas de minha película número 13, a capacidade da mulher para fingir. E a maternidade ferida. E a solidariedade espontânea entre as mulheres. "Sempre tenho confiado na bondade dos desconhecidos" dizia Williams pela boca de Blanche Dubois. Em " Tudo Sobre Minha Mãe"... a bondade é das desconhecidas..."


Um pouco de enfeite autoral? Certamente, como muitos dos outros condimentos que já fazem parte do bem construído (pelo próprio) "produto Almodóvar", que para muitos críticos já se tornou por demais pasteurizado e higienizado.

De fato, a versão Almodóvar anos 90 ("Ata- me!" (Átame!, 1989) "De Salto Alto" (Tacones Lejanos,1991)- "Kika" (idem, 1993)- "A Flor do Meu Segredo" (La flor de mi secreto, 1995) "Carne Trêmula" (Carne Trémula, 1997)) parece se perder em meio à pura fruição do pastiche melodramático, cada vez menos irônico e questionador, um pouco afastado do contestador satírico e ácido da década anterior – ("Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón" (1980) "Labirinto de Paixões" (Laberinto de Pasiones, 1982)- "Maus Hábitos" (Entre Tinieblas,1983)- "¿Qué he hecho yo para merecer esto?" (1984/1985) "Matador" (idem, 1985/1986)- "A Lei do Desejo" (La Ley del Deseo, 1985/1986) e "Mulheres a Beira de Um Ataque de Nervos" (Mujeres al borde de un ataque de nervios, 1987)).

Nesta linha o 13° filme de Almodóvar é um enorme melodrama, no sentido das personagens, distante de grandes realismos, sofrerem uma avalanche incomensurável de desgraças, principais e subtramas, chorarem exacerbadamente, irem aos extremos da dor para quase invariavelmente serem premiadas com um happy end...

Mas que belo melodrama! Que exemplo de beleza cinematográfica, que imagens que nos envolvem, que diálogos que nos encantam, que exemplo de cinema! É o filme de um autor que não abriu mão de suas preferências pessoais e, amadurecidamente, soube resgatar o frescor do início da sua carreira: irônico, sensível.

"Tudo Sobre Minha Mãe" carrega a síntese de Pedro Almodóvar.

Esta obra é uma homenagem a diversas mulheres, a começar no título para Bette Davis (também para Gena Rowland e Romy Schneider) fazendo uma referência a All About Eve , de Joseph Mankiewicz (chamado no Brasil de "A Malvada") e para a mãe do diretor, que morreu em setembro.

Almodóvar também dá o melhor de si na escolha do elenco, repetindo algumas de suas parcerias mais exitosas: Marisa Paredes, Candela Peña, Penélope Cruz e a argentina Cecilia Roth, além deintroduzir novas atuações que, pelo sucesso alcançado, deverão ser repetidas, como Antonia San Juan, no papel do travesti Agrado.

A história é até bastante simples: Manuela (Cecilia Roth) trabalha em um hospital em Madrid e convive em harmonia com filho Estéban (Eloy Azorín), um adolescente que deseja conhecer a identidade do pai. Um dia, após um acidente, Manuela vê-se novamente sozinha no mundo e, desesperada, acaba por retornar à Barcelona que fugiu dezessete anos antes, grávida. Mas, se antes fugia do Estéban pai de seu filho (Toni Cantó), agora busca encontrá-lo para contar seu infortúnio (ele sequer sabe que ela engravidou).

Entretanto, ao chegar à Barcelona vê um pouco de sua tragédia se repetir na jovem freira Rosa (Penélope Cruz), também grávida de Estéban- pai (que agora é o travesti Lola, la Pionera).

Nas histórias de Rosa, da atriz Huma (Marisa Paredes), de um antigo amigo agora travesti, Agrado (Antonia San Juan) e de outras, Manuela saberá ser solidária e encontrará solidariedade, reaprendendo, mesmo a contragosto, a sorrir e reconstruir sua vida, uma característica de mulheres, que encontram em seus infortúnios as alavancas para seguirem suas vidas, superando e se superando.

Não é a toa que Almodóvar representa "Um Bonde Chamado Desejo " em muitos momentos do filme, ele parece nos dizer: Manuela não será a Blanche Dubois vencida pela opressão e pela loucura, se tiver de ser um personagem de Tenesse Williams, será a sobrevivente Stella.

Ver o quase septuagenário Carlos Saura, ícone da reflexão e do combate à ditadura franquista, já não é a mesma experiência de alguns anos atrás, o Saura de "Tango" já não é o mesmo Saura de, por exemplo, "Ana e os Lobos " (Anna y Los Lobos, 1972). O público também já não é o mesmo. Isto é bom? Isto é mau? Só cabe estas reflexões a quem se dispõe a fazê-las, sentando em uma poltrona, de frente para a telona. Assim, quando assistir "Tudo Sobre Minha Mãe" esqueça por uns instantes o Estado Espanhol, Almodóvar, esqueça o cinema, apenas se deixe levar pela história bem contada daquelas mulheres e, se tiver vontade, chore mesmo, dificilmente alguma coisa neste filme não alcançará, de alguma forma, algum espectador.


* Publicada originalmente no jornal Em Tempo: n° 311, novembro de 1999)

**Luciana Rodrigues é graduada em direito e cinema, cursa pós-graduação no CTR-ECA