Pereio, Eu Te Odeio (2023, Allan Sieber e Tasso Dourado) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Pereio, Eu Te Odeio (2023, Allan Sieber e Tasso Dourado) | 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Felipe Palmieri

 

Selecionado para a 47ª Mostra, o documentário Pereio, Eu Te Odeio (Allan Sieber e Tasso Dourado, 2023) é resultado de um processo de mais de 20 anos. Com enfoque na vida e carreira do ator Paulo César Pereio, uma das figuras mais controversas e memoráveis do cinema brasileiro, o filme aproveita sua presença marcante em trabalhos como Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), Vai Trabalhar, Vagabundo! (Hugo Carvana, 1973) e A Lira do Delírio (Walter Lima Jr., 1978). Para tal, os cineastas se utilizam de imagens de arquivo que, combinadas com entrevistas e depoimentos sobre o ator, retratam Pereio como uma espécie de figura mítica. Concomitantemente, os próprios percalços da produção do documentário são incorporados à progressão narrativa. 

 

Esta é uma obra que se origina do contato entre o cineasta Allan Sieber e Pereio, que se conheceram ao trabalhar juntos no curta-metragem Os Idiotas Mesmo, dirigido por Sieber. O humor ácido do curta, característica constante do trabalho do diretor, é onde reside a confluência de ambas as personalidades. Conhecido por seu trabalho com quadrinhos e animação — os quais são refletidos em suas intervenções gráficas ao longo do filme —, Sieber centralizou a direção durante a maior parte do processo, tendo decidido realizar o documentário sobre Paulo César Pereio ainda no início dos anos 2000. As visitas de Pereio à produtora Toscographics, sede do trabalho do diretor, tornaram-se costumeiras, e é o processo de documentação destas que dá origem ao filme.  

 

Tem-se um amálgama de três vertentes na concepção de Pereio, Eu Te Odeio: a visão do mundo sobre Pereio, a visão de Pereio sobre si e a visão do filme sobre sua própria construção, sendo que estas duas últimas costumam aparecer conjuntamente em tela. Não há divisões estruturais evidentes ao longo do documentário, porém transparece a predominância de uma abordagem ou de outra em cada momento do filme. O início é exemplo disso, majoritariamente dedicado a entrevistas e depoimentos falando sobre o ator (e a pessoa), dados por figuras relevantes tanto na história do cinema brasileiro como  na história particular de Pereio. Há aqui um uso desinibido de imagens de arquivo, provenientes de mais de 70 obras estreladas pelo sujeito do documentário.

 

Dessa forma, logo fica claro quem é o Pereio que o filme retrata: não há um testemunho em que o comportamento caótico e imprevisível do ator não seja mencionado. Histórias e mais histórias são registradas nas palavras dos entrevistados, constituindo os momentos de maior interesse na obra, por carregarem um senso de nostalgia tão fervoroso que torna mesmo os causos mais terríveis em diversão palatável. A fala de Hugo Carvana, captada ainda no início da cronologia de realização do filme, ganha destaque entre os depoimentos pelo trânsito sucessivo entre os universos de Pereio-ator e Pereio-pessoa.

 

No entanto, o tempo passa a ser progressivamente ocupado pelas outras duas vertentes, com imagens autoconscientes, captadas nos bastidores da realização do filme. Estas são incorporadas pela montagem de forma a estabelecer um diálogo metalinguístico com as entrevistas adjacentes e revelam camadas de profundidade que apenas um percurso tão duradouro poderia trazer  dentro de si. Dentre tais camadas, surge a figura que dá finalidade ao projeto: Tasso Dourado, co-diretor e montador de Pereio, Eu Te Odeio. Dourado é introduzido já na porção final do filme, refletindo sua inserção tardia na concretização do longa; foi ele quem embarcou na produção para encontrar um novo caminho para o projeto, então parado há muitos anos. E é essa estagnação, na verdade, onde se revela a maior contradição no longa de Sieber e Dourado: o tempo.

 

A vivacidade trazida pela combinação entre forma e conteúdo, na maior parte do filme, entra em conflito na sua porção final, pois se torna claro que os anos de distanciamento entre as partes exauriram o propósito do projeto. Nem Pereio, tampouco Sieber pareciam mais querer saber do documentário, após exaustivos períodos de muita cobrança e incerteza. Dourado é quem aparenta ter guiado o filme em sua galopada final, acolhendo o material profundamente pessoal que concebeu o longa, mas terceirizando o ponto de vista, como consequência. Tal distanciamento acaba reduzindo o impacto emocional do desfecho, mas encontra sucesso ao demonstrar sinceridade quanto ao processo - não havia maneira diferente de trazer este filme ao mundo. 

 

Ao fim, Pereio, Eu Te Odeio corresponde ao caos da figura que nomeia o filme e, apesar de todos os percalços, tem um subtexto forte o suficiente para concretizar uma belíssima carta de amor a esta gigante personalidade do cinema brasileiro. Seja como ator ou como pessoa, em meio a suas polêmicas e contradições, resta-nos um retrato intenso de Paulo César Pereio — um homem que, mais que qualquer outro, emaranha as linhas entre amor e ódio.

 


Biografia:

Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

 

A cobertura do 47º Mostra Internacional de Cinema São Paulo faz parte do programa Jovens Críticos que busca desenvolver e dar espaço para novos talentos do pensamento cinematográfico brasileiro.

Agradecemos a toda a equipe da Assessoria da Mostra por todo o apoio na cobertura do evento.

Equipe Jovens Críticos Mnemocine: 

Coordenação e Idealização: Flávio Brito

Produção e Edição: Bruno Dias

Edição: Davi Krasilchik, Luca Scupino, Fernando Oikawa e Gabriela Saragosa

Edição Adjunta e Assistente de Produção: Davi Krasilchik e Rayane Lima