"Mifune", a 3a. produção do Dogma95

Um é pouco, dois é bom, três é demais...

Com Mifune de Soren Kragh-Jacobsen, exibido no Espaço Unibanco de Cinema, o Dogma 95 chega a sua terceira edição.

O filme é a história de um jovem que interrompe a lua de mel para cuidar do irmão débil mental depois da morte do pai. Contrata como empregada uma ex-prostituta. Para acalmar o irmão louco o jovem se traveste de Toshiro Mifune. A presença da figura do personagem inspirada no ator de Kurosawa - Mifune, tão alardeado pelo título, é pouco aproveitada dentro da narrativa. Serve apenas para ilustrar um determinado momento da relação entre os irmãos. Fellini, por exemplo, usaria o artifício Mifune de maneira muito mais abrangente e lúdica como Fred Astaire em Ginger e Fred. Porém, isso é uma das características do Dogma 95: a simplicidade.

Mifune apresenta os elementos dos outros dois filmes-dogmas: Festa de família e Os idiotas. É assim uma mistura, onde podemos identificar na figura do irmão do protagonista, o débil mental, traços das atitudes e procedimentos do grupo de Os idiotas. A ligação com o filme de Vinterberg tem origem, no ato de revelar situações chocantes no âmbito familiar. Ele consegue absorver como clichê o que nas fitas anteriores é intencional e radical. Nesse sentido, os supostos `dogmas´ vão caindo um a um.

Mifune nos leva, de repente, a cenas dignas do cinemão: por exemplo, a estética da sequência do cais e principalmente a do trecho final onde todos finalmente compõem uma grande família. Nesse momento, parece que o próprio diretor não acredita mais no que está fazendo. Toda a radicalidade proposta pela intriga inicial do filme (basta lembrar o impacto da cena erótica dos primeiros minutos), não se completa, e acaba por assumir ao final contornos suaves e complacentes. Temos uma cena de suposto estupro que não ocorre. Temos ainda um afogamento que não acontece. E para completar o ataque das mulheres iradas ao casal de protagonistas que estava dentro da casa, também é frustrado. A posição de recuo para com a radicalidade dessas cenas se expressa por uma estética do pastelão, com direito a tinta na cara.

No entanto, esta prática não funciona para o público brasileiro, pois tudo que acontece em Mifune, desde o início da ação, é motivo de gargalhada; mesmo antes das cenas de pastelão assumido. Para entender esse recuo do diretor à radicalização da intriga, e à vontade de tornar esses personagens `bondosos´, podemos levar em conta o significado dessa opção para a região em que o filme foi realizado. A Dinamarca, há algumas décadas, passa por uma séria crise da instituição familiar: não se casa mais, não se faz mais filhos, existem taxas decrescentes de tudo: as pessoas vivem sozinhas, isoladas no campo (esse aspecto é aproveitado pelo filme, inclusive), ou em kitchenets na cidade. Nesse universo de solidão e esquecimento, as pessoas se tornam mais violentas, promíscuas e idiotas ( no sentido patológico do termo). A vontade desses personagens, de serem bons e de constituírem uma família (que é enfatizado e confirmado no final da história), reflete uma condição adversa para a realidade dinamarquesa. Porém, mesmo sendo diferente, essa atitude não é significativa de uma quebra de regras.

Segundo Jules Furthman, (roteirista dos grandes estúdios americanos) nenhum grande filme se resolve sem uma cena de telefone. No nosso caso, graças à nova tecnologia, não é um telefone comum que vai resolver tudo em Mifune e sim os vários celulares que pulam de cena em cena. Muito mais do que um telefone fixo, o celular - paraíso de todo roteirista, tem a capacidade de criar situações que não necessitam de justificativas dramatúrgicas ou cênicas para interligar os personagens. A qualquer momento e em qualquer lugar as coisas se resolvem. A toda hora podemos ter contato com o mundo da prostituição que Liva acabou de deixar, ou com a mulher que Kresten abandonou em plena lua de mel. Apesar dos personagens nunca saírem da casa de campo, eles estão de forma globalizada interligados ao mundo exterior. Nesse sentido fogem um pouco dos mandamentos do grupo de cineastas dinamarqueses.

Pelo acanhamento da atitude radical do conceito Dogma, Mifune surge quase como uma retratação pública dos efeitos provocados pela idiotia do filme de Lars Von Trier.