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O Porteiro e o Alferes - Relações entre o expressionismo alemão e Machado de Assis

Berlim dos anos 20, onde estão presentes as metrópoles movimentadas, a velocidade, a máquina, os arranha-céus opressivos, a patologia mental e social do homem aniquilado sob tudo isso, O Último Homem (Der Letzt Mann, Alemanha, 1924) está simbolicamente referenciado em valores que não são tão novos para a cultura germânica. Isto o diferencia de outros filmes do mesmo período, como Metropolis, O Gabinete do Dr. Caligari, Berlim - Sinfonia de uma Cidade e Dr. Mabuse. Por outro lado, também não chega a tocar raízes ancestrais como o fazem Os Nibelungos e Fausto.

Logo à primeira observação, o personagem representado por Emil Jannings, porteiro de um hotel de luxo, nos remete a ícones para lá de emblemáticos. Sua barba e seus bigodes com pontas retorcidas já são quase um anacronismo em 1924. Não é exagero dizer que, dentro de sua imponente farda, o porteiro se sente tão importante quanto o próprio presidente Hindenburg (o último da república de Weimar) e, graças a sua vestimenta e atitude, de fato é impossível não nos lembrarmos imediatamente do presidente e de outras personalidades da história germânica.

Comparem-se as quatro figuras reproduzidas acima. Temos as imagens de cinco homens, dos quais quatro vestem fardas militares e apresentam-se com a mais completa dignidade. O único que tem uma postura desalinhada, envergonhada e submissa é aquele sem uniforme. Assim como não conseguimos pensar nestas figuras históricas sem seus uniformes militares, o porteiro não se concebe mais enquanto homem após perder o seu posto e o direito ao seu uniforme funcional.

A incrível semelhança entre as tragédias pessoais do porteiro de O Último Homem e o personagem João Jacobina de O Espelho (Machado de Assis) sugere, no entanto, não se tratar de uma questão cuja relevância seja circunscrita geograficamente; talvez diga mais respeito ao homem do final do século 19 do que aos germânicos em especial.
Muito adequadamente, O Último Homem, o primeiro filme mudo de longa-metragem a prescindir de intertítulos para sustentar uma narrativa, trata da reação visível do seu protagonista a um determinado fato, enquanto que O Espelho reflete reação menos palpável e mais abstrata, do terreno das sensações e das idéias, a fato equivalente. Poderíamos dizer que são complementares, levando-se em conta as diferenças factuais: o filme ilustra o conto, que por sua vez explica o filme.

No conto de Machado, cujo subtítulo é "Esboço de uma Nova Teoria da Alma Humana", João Jacobina narra a um pequeno grupo de amigos fato ocorrido em seu vinte e cinco anos, com o intuito de provar sua teoria segundo a qual o ser humano tem duas almas que se complementam, "uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro..."

O protagonista, pobre e provinciano, fora nomeado ao concorrido posto de alferes da Guarda Nacional, tornando-se objeto de extremado orgulho para sua família e respeito por parte da população da vila em que vivia. Como parte da adulação familiar, foi convidado a passar uns tempos em sítio de uma tia, que exigiu que ele levasse consigo a sua farda, presente de amigos. A distinção do posto havia mudado a maneira como sua própria família o tratava. Como parte da paparicação, teve a honra de ter em seu quarto, enquanto durasse a estadia, o objeto mais precioso da casa: um grande espelho do tempo do Império, com moldura entalhada e ornada a ouro...

O resultado, conta ele, de tanta atenção: "O alferes eliminou o homem. (...) A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado." Ao que parece, esta situação não o incomodava, pelo contrário, estava até muito bem adaptado a ela; e nela teria permanecido, não fosse o fato de que ela o abandonaria primeiro. Jacobina encontrou-se inesperadamente só quando seus familiares foram obrigados a ausentar-se em socorro de uma parente doente e lhe confiaram o sítio. Os escravos fizeram a vez de substitutos, mas apenas durante um breve período de tempo, antes de fugirem.

Ao contrário do porteiro que perdeu o posto, e, em decorrência, o respeito de seus concidadãos, o alferes perdeu a presença destes, os sujeitos do reconhecimento do seu posto. A alma exterior de cada um sendo o resultado da soma das duas coisas, a perda de uma significava a perda da outra. Se o primeiro tornou-se vítima do escárnio público, o segundo padeceu de um vazio interior tão imenso que começou a duvidar da própria existência. "Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico."

Ao final de oito dias sem sinal dos parentes, Jacobina acaba fazendo aquilo que andava evitando: procurar-se no espelho. "Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária (...) Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra."
Jacobina encontra-se no meio do caminho de uma escala de desconstrução da imagem especular que tem, como o primeiro estágio, o porteiro rebaixado, trabalhando diante do enorme espelho do lavabo do hotel ao qual foi confinado, e o estudante de Praga e Nosferatu como o estágio final. Estes, não nos esqueçamos, venderam suas almas, as interiores, e não lhes resta absolutamente nenhum reflexo.

A saída encontrada pelo alferes é rigorosamente a mesma encontrada pelo porteiro: "Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento (...) Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso, era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior."

O epílogo de O Último Homem, qualquer que tenha sido a razão de sua inclusão no filme, vem a calhar para a confirmação da teoria da alma esboçada em O Espelho. "É preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma (...) muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morreria, e o poder, que foi a alma exterior de César e Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos" assegura Jacobina. O porteiro não recupera o posto e nem a farda, e não precisa; o desenlace ocorre ao estilo Deus ex machina. Talvez o dinheiro não fosse substituto para as almas exteriores de Bismarck ou Hindenburg, provavelmente do tipo exclusivo, mas o que ocorre com o porteiro pode ser um sinal dos tempos que mudam. A fortuna que ele herda de um hóspede que falece em seus braços lhe é substituto mais do que satisfatório para a velha alma exterior; na verdade, sai ganhando.

Para concluir, parece mais do que evidente a existência de uma relação de consanguinidade entre O Último Homem e O Espelho: o filme e o conto são almas gêmeas; este a interior, aquele a exterior.

* Fabio Durand é graduado em Cinema e Vídeo pela ECA/USP e atualmente trabalha na TV USP.