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Mimese, melodrama e História do Brasil: analisando “Sinhá Moça” (1953)

Quando assistimos ao filme “Sinhá Moça” (Brasil, Vera Cruz, 1953, Tom Payne, 110 min) percebemos realizados na tela, bem ou mal, todo projeto cinematográfico idealizado pela Vera Cruz: produzir dramas universais feito à moda de Hollywood, com mensagem edificante e capazes de atrair o público nacional (e quem sabe até mesmo o internacional).

"(...) Desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam e glorificam” - Marc Ferro (Cinema e História)

De toda as obras realizadas pela produtora paulista, duas conseguiram concretizar o sonho de fazer um cinema de padrão técnico e temático internacional (o cinema brasileiro “bem feito” buscado pelos fundadores da empresa): “O Cangaceiro”, que foi um fenômeno inesperado e involuntário de sucesso, e “Sinhá Moça”, filme subsequente de bastante sucesso no âmbito nacional.
Contudo, acreditamos que analisar “Sinhá Moça” é, de alguma forma, analisar o projeto fílmico da Vera Cruz na medida em que, este filme foi feito sob a influencia do sucesso de seu antecessor. Em outras palavras, se “O Cangaceiro” deu certo por acaso, “Sinha Moça” foi produzindo querendo acertar, de forma proposital, o gosto do público. Justamente por esta razão é que pretendemos desmontar esta obra: para procurarmos que tipo de Brasil, e de História do Brasil, é representado na tela.

O filme de Tom Payne é uma verdadeira aula de cinema narrativo clássico. O diretor, que aprendeu a filmar em estúdios ingleses na década de quarenta, nasceu na Argentina e foi chamado por Alberto Cavalcanti para trabalhar na Vera Cruz. Seu maior sucesso foi o filme que estamos analisando, que chegou a ganhar alguns prêmios internacionais – nos festivais de Veneza e de Berlim.

Em linhas gerais, “Sinhá Moça” é uma estória de amor que acontece num Brasil às vésperas da abolição da escravatura. Em outras palavras, o filme é um melodrama cuja trama gira em torno de dois jovens que se apaixonam à primeira vista numa cabine de trem. No entanto, esse encantamento inesperado é atrapalhado pelo clima político da época que dividia a sociedade entre abolicionistas e escravocratas. Será através de uma conversa que a mocinha, abolicionista apaixonada, descobre logo de início que o rapaz é escravocrata. A decepção dela é imediata e está posto o drama da protagonista: estar apaixonada por um atraente jovem favorável á ultrajante escravidão.

O tema da escravidão perpassa a estória de cabo a rabo. Os créditos iniciais são dados tendo ao fundo a imagem de um negro correndo, ou melhor, de um escravo fugindo. Mais tarde sabemos que trata-se de Fulgêncio, escravo rebelde (que terá uma função importante na narrativa) da fazenda em que Sinhá Moça é a única herdeira e. A cena final, por sua vez, traz o beijo da dupla romântica em meio à festa de proclamação da abolição da escravatura.


A composição desse plano é digna de nota. A dupla romântica tem a igreja ao fundo, abençoando o amor sincero entre os dois personagens, que ao fim, lutaram do lado da virtude e da justiça. Projetada na igreja vemos a sombra dos negros dançando em comemoração à liberdade recém adquirida. Uma vez que estão em cima de um tablado, é como se encontrassem fora daquele contexto, só existindo um para o outro no instante de consumação do amor que nascera no primeiro momento em que se encontraram.

A narrativa foi construída de modo que poderia ter se passado em qualquer outro país escravista, fato que vem de encontro ao projeto da produtora de se fazer um cinema universal. Este princípio de universalidade temática é ratificado pela linguagem cinematográfica empregada (dita “universal”), que procurava conferir qualidade através da imitação do cinema norte-americano. A “cor local” – que deveria estar presente em todos os filmes da Vera Cruz – é bastante branda e perceptível, na maioria das vezes, apenas pela a camada letrada da sociedade nacional, ou seja, justamente pela parcela do país que a produtora paulista visava atingir.

Vale dizer que o roteiro foi assinado Oswaldo Sampaio, Tom Payne (diretor) e Maria Dezonne Pacheco Fernandes (escritora do livro “Sinhá Moça” que serviu de base ao filme). O filme como um todo traz referências de três outras obras: o livro “A Cabana do Pai Thomaz”, a lenda do herói Zorro e o sucesso hollywoodiano “E o vento levou...”.

Grosso modo percebemos que da primeira obra o filme traz a forma idílica de tratar (e filmar) os escravos, que deveriam ser libertados por serem “bonzinhos” e virtuosos e não simplesmente por serem homens. Consequentemente não existem negros maus em “Sinhá Moça”. Do mito do Zorro saiu a construção da personagem “Rodolfo Fontes”, jovem rico, bem nascido e conservador durante o dia que de noite se torna um cavaleiro que liberta e ajuda escravos a fugir. Finalmente, do filme de Hollywood vem a forma de filmar e a grandiloqüência de cenários e figurinos, bem como o retrato de uma elite imperial, aristocrática, conservadora e rica.

Ao realizar um melodrama, Tom Payne apresenta uma sociedade imperial brasileira esquemática e simplificada, rasteiramente separada entre uma mágica maioria de abolicionistas (bons) e uma minoria retrógrada de escravocratas (maus). Façamos então uma análise mais apurada do filme.

Do ponto de vista técnico o filme é feito em sua maior parte de primeiros planos e planos médios, com fotografia equilibrada e clássica. O close-up é satisfatoriamente utilizado e a fusão é um instrumento que surge em algumas passagens do filme.

O movimento de câmera não é muito acionado, sendo o corte a forma mais comum de movimento de ponto de vista. O diretor também faz uso do campo/contracampo, da câmera baixa e da câmera subjetiva.

O filme que é competente do ponto de vista da imagem, deixa um pouco a desejar quanto ao som, que é baixo e acaba por deixar alguns diálogos, notadamente os de atores inexperientes, imperceptíveis (pelo menos na cópia do acervo da ECA/USP).

Todo melodrama tem uma mocinha, um mocinho, um pólo cômico, um ou mais bandidos e uma injustiça que deve ser solucionada. No filme em questão, os injustiçados são os escravos, os “bandidos” são os defensores da escravidão (personificados nas figuras do Delegado Camargo, do feitor Benedito e do Coronel Ferreira). O pólo cômico fica por conta de Clara, a prima solteirona e tagarela, o mocinho é o jovem advogado Rodolfo Fontes e a mocinha é a abolicionista e decidida Sinhá Moça.

Tanto a estória de amor quanto à trama do filme são bastante simples e foram desenvolvidas conforme o didatismo característico dos melodramas. A sociedade da protagonista é apresentada como um organismo em desarmonia; doente pela existência da escravidão.

O filme se inicia com a já citada cena de um escravo em fuga. De repente o mesmo se depara com um trem, e para não ser atingido e nem visto, ele se esconde em baixo dos trilhos. Este é o trem que traz em uma de suas cabines Rodolfo, Sinhá Moça e Clara, que saíram de São Paulo com destino à pequena e aristocrática Araruna. Na cabine, os dois jovens trocam olhares (em primeiro plano) enquanto a verborrágica Clara comenta coisas desinteressantes. É também ela que inicia um diálogo despretensioso junto ao moço. Quando ele se apresenta e começa a falar de si, temos uma câmera subjetiva que corresponde ao ponto de vista de Sinhá Moça, recurso que acaba denunciando o interesse da moça em relação ao rapaz.

A protagonista deixa sem querer cair o livro que estava supostamente lendo, e a partir dessa deixa temos um dos diálogos mais interessantes do filme. O livro em questão é justamente “A Cabana do Pai Thomaz”. Rodolfo afirma que também comprou um desse, que é o livro que mais vende em São Paulo. Clara repreende dizendo que “Esses livros estrangeiros são perigosos”. Essa passagem nos dá uma idéia interessante sobre a concepção por traz da obra.

O abolicionismo, tal como aparece no filme, é algo que vem de fora para dentro, ou seja, dos EUA para o Brasil. Essa comparação se repetirá na narrativa por mais duas vezes: primeiro quando do dialogo entre Sinhá Moça, Rodolfo e o Delegado, (seqüência na qual a mocinha descobrirá que o rapaz por quem seu coração balançou é um insensível escravocrata), e por último na parte do filme em que vemos uma reunião secreta dos abolicionistas de Araruna. Nesta última percebemos na fala de uma personagem, o motivo que levaria uma parcela branca da sociedade defender a libertação dos escravos: “Se o Imperador não resolver depressa a questão da abolição teremos inevitavelmente a guerra civil. Veja os Estados Unidos, por exemplo !”. Há muito que se pensar a partir dessas construções.

Ao que tudo indica, o diretor optou por colocar o abolicionismo como uma coisa boa que nós brasileiros devemos copiar dos nossos irmãos desenvolvidos do norte. Dessa forma, o abolicionismo, tal como o cinema, é algo que devemos imitar o melhor possível os norte-americanos (nosso eterno paradigma de qualidade).

Por outro lado, a fala dos abolicionistas de Araruna faz como que a abolição sai da questão humanitária, à maneira com aparece em “A Cabana do Pai Thomaz”, e seja observada do ponto de vista das elites, que não querem de forma alguma uma guerra civil. Eis aqui reiterado o famoso discurso das elites nacionais “Vamos mudar para que nada mude”, ou seja, façamos a abolição para que nossa sociedade mude o menos possível com isso. Nota-se aqui a construção de uma retórica de uma suposta elite do século XIX feita para agradar a elite do século XX, público com o qual os filmes da Vera Cruz se preocupavam em agradar.

Os dois pontos de vista acima explorados convergem para um ponto em comum: de um jeito ou de outro, o debate da abolição é um apanágio dos brancos, e faz-se primordial ressaltar que “Sinhá Moça” é um filme sobre escravidão negra que demora bastante para dar espaço e voz à população de injustiçados que pretende libertar.

A primeira voz negra do filme é de Virginía, que muito lembra a personagem “Mammy” de “E o Vento Levou...”. A seqüência que introduz esta personagem no filme é digna de nota. Sinhá Moça entra em casa, conversa dois minutos com a mãe e sai ao encontro de sua ama. Nesse momento, a câmera faz um travelling de aproximação no rosto da mãe para que o público perceba a inveja da que esta sente em relação ao amor que a filha nutre pela escrava. Vírginia é o protótipo da negra resignada, religiosa, obediente e, por que não dizer, feliz. Para ela a escravidão faz tão parte da vida como o Sol e as Estrelas e, assim sendo, ela afirma em um de suas falas que “Não está certo branco trabaiá”. Este é o tipo de personagem e de construção narrativa existe na trama para firmar a idéia: “Olha como os negros são bons, olha como eles eram bem tratados e amados pelos seus senhores...”. Contudo, no final dessa mesma seqüência, uma piadinha é feita em cima do fato de que a ama não tirou o papel dos doces que ganhou da protagonista. Nesta simples e aparentemente inocente piada podemos notar a afirmação da infantilidade dos negros que precisam ser orientados e liderados pelos brancos (idéia que aparecerá várias vezes no filme).

Quando finalmente o filme permite que a escravidão seja trabalhada não na chave dos brancos e dos escravos da casa grande e sim sob a perspectiva dos escravos do eito, praticamente a da metade do tempo total da fita se passou. É nesse instante que um núcleo de personagens negros ganham destaque na trama, são eles Fulgêncio, Justino e Sabina. Ressaltamos que a introdução deste núcleo melhora substancialmente a qualidade do filme na medida em que algumas formas de resistência à escravidão e algumas das dificuldades do dia-a-dia do escravo serão temas tratados.

No entanto, essa melhora é temporária porque ao final, o filme descamba para um discurso politicamente correto novamente. Assim sendo, podemos dividir o filme em três partes: um início fraco, um meio aonde alguns temas interessantes são abordados e um final conservador que ratifica a imagem do negro em vigor na década de produção do filme (a década de 1950).

Numa passagem interessante, que faz uso do paralelismo de comentário, temos a jovem branca, Sinhá Moça, tocando piano para os pais na casa grande ao mesmo tempo em que a jovem escrava, Sabina, está sendo estuprada pelo feitor da fazenda da família Lemos Correia. Essa seqüência se finaliza com Sabina retornando para a senzala onde homens e mulheres dormem separadamente. Ela senta ao lado de uma espécie de porta de comunicação entre o dormitório das mulheres e dos homens, que é separada por grades e Fulgêncio vem ao seu encontro lhe estendendo a mão. Quando ela beija a mão do rapaz ele baixa a cabeça num plano muito bem construído do ponto de vista dramático, pois sem ter que fazer uso de palavras, o drama do casal de escravos é posto apenas com imagens.

Sinhá Moça, que é interpretada pela fraca atriz Eliane Lages, e a personagem é dona dos discursos mais inflamados contra a escravidão presentes no filme, com exceção ao discurso final proferido por Rodolfo, no tribunal. O embate frontal entre suas idéias e de seu pai é um artifício narrativo construído de forma que o vigor abolicionista, representado por ele, acaba sufocando as velhas idéias escravistas, representadas por seu pai, a ponto de, em uma interessante passagem, o poderoso Coronel ser questionado pela própria mulher, até então a mais submissa das esposas. Esse questionamento é a prova do alastramento tanto das idéias quanto do questionamento em relação a escravidão. A mulher pergunta ao marido: “Você acha isso (a escravidão) certo?”

Padre José, absurdamente retratado como um padre militante da causa abolicionista, é um personagem que transita entre Sinhá Moça, abolicionista abertamente, e Rodolfo, uma espécie de Zorro que de dia fuma charutos com o escravocrata Coronel Ferreira e de noite confabula com os escravos das fazendas da redondeza um plano de fuga gradual dos escravos para o quilombo do Jabaquara. A pose de favorável à escravidão do mocinho só cai nos últimos instantes do filme.

O golpe final no já debilitado equilíbrio da sociedade de Araruna é dado quando um dos escravos do Coronel Ferreira morre de tanto levar chibatadas na praça central da cidade. O negro jaz em virtude da ordem de castigo exemplar do pai de Sinhá Moça e do sadismo do delegado da cidade.

A seqüência da morte de Fulgêncio tem o mais bonito close-up do filme, que é justamente o rosto do escravo amarrado antes do início do castigo. Essa passagem também conta com várias câmeras baixas, primeiro no delegado e depois no açoitador, um negro acorrentado com a chibata nas mãos. Todos esses recursos, somados ao paralelismo de desenlace, são efetivados de modo que se chegue num clímax dramático e identificativo com a morte do escravo no colo de Sinhá Moça.

A conseqüência deste ato é a revolta e fuga dos escravos da fazenda do Coronel Ferreira, a perseguição dos escravos foragidos, a morte do feitor, a tentativa de Justino de matar o Coronel (heroicamente salvo por Rodolfo) e, por último, o julgamento de Justino da Silva (irmão de Fulgêncio), responsabilizado pela morte do feitor Benedito.

Em meio a este tumulto de ações vale lembrar duas passagens importantes: a sequência em que Sinhá Moça impede o desembarque do exército na estação ferroviária de Araruna e a passagem em que Rodolfo, conversando com o Padre, prevê a revolta, a fuga e a confusão que os escravos farão por causa da brutal morte de Fulgêncio.

Na passagem em que Sinhá Moça, liderando as mulheres abolicionistas da cidade, parte em marcha para impedir que o exército desembarque e engrosse a fila dos caçadores dos escravos fugitivos, temos a construção narrativa da oportunidade da heroína mostrar o seu valor, ou seja, que não é uma pessoa só de palavras mais de atos. De quebra, esta seqüência ainda limpa a barra do exército na fala: “Exército não é capitão do mato”. De novo tem-se o isolamento do escravocrata, no caso o delegado, em meio à imensa maioria abolicionista, as mulheres, o responsável pela estação ferroviária, os soldados e, é claro, a heroína Sinhá Moça.

Na segunda passagem citada, observamos escancaradamente a concepção em relação aos negros que permeia o filme todo. Rodolfo, com a seguinte fala: “Qualquer coisa que eles façam sem uma orientação está destinada ao fracasso” e “Em vez da liberdade, a morte... Loucos! Loucos!”, repete a visão dos negros como crianças, pessoas incapazes de resolver seus problemas segundo suas próprias lógicas.

De forma breve, esta obra cinematográfica trata os negros sistematicamente como crianças, como pessoas incapazes de se organizarem por si mesmos. O que temos na fala citada acima é a voz de um representante da elite branca negando o direito de organização e revolta do povo negro. Quando são chamados de loucos, o filme nega todas as outras formas de lutas possíveis para validar a luta pela liberdade chancelada, organizada e liderada pelos brancos. Como representante da elite letrada e modernizadora, Rodolfo afirma que o que vale não é a liberdade a qualquer preço mais a liberdade sobre os termos da elite da qual faz parte, numa reedição politicamente correta do famigerado “fardo do homem branco”. Assim sendo, cabe a ele apenas partir em disparada para tentar remediar os erros cometidos pela irracional massa enfurecida dos negros fugitivos, e é isso que ele vai fazer até o fim do filme.

Ao fim e ao cabo, Sinhá Moça é um filme em favor da libertação dos escravos que não critica nenhuma das instituições públicas: nem a igreja, nem as elites, nem o exército, nem o governo imperial. O discurso do Dr. Rodolfo Fontes, feito no julgamento final, para deleite de Sinhá Moça, acaba por absolver todas as esferas da sociedade imperial do ônus da escravidão, numa mágica inversão que só o cinema é capaz de realizar.

Tom Payne realizou na tela o milagre de transformar a escravidão em uma instituição envolvida por uma sociedade onde a maioria das pessoas a rejeita. As idéias abolicionistas estão em toda parte, e aqueles que a rejeitam o fazem por motivos individuais: ou por maldade pura, caso do Delegado Correia que dobra o número de chibatadas a serem dadas em Fulgêncio, fato que acaba matando-o, ou por intransigência e conservadorismo burro, caso do Coronel Ferreira, ou ainda por questões sociais, exemplo onde se encontra o Feitor Benedito, que tendo uma avó escrava afirmava sua condição de “branco” açoitando impiedosamente os negros.

Como o próprio Rodolfo fala, é a providência que dá cabo de Benedito, que pagou pelos erros que cometeu. A morte do maldoso feitor e a proclamação da abolição é a ação da justiça divina que premia os virtuosos e pune os viciados. Na festa que se inicia aposta a leitura do documento que trouxe o fim da escravidão, apenas três pessoas não participam: o delegado, o Coronel e o promotor. Na hora em que o juiz manda soltar Justino, o que se torna bastante apropriado neste instante, o policial abre o cadeado, solta as correntes e aperta cordialmente as mãos do recém liberto, num ato que, segundo a lógica desta narrativa, mostra a harmonia social em que supostamente teria mergulhado o país depois da abolição.

Esse esquema melodramático levado às últimas conseqüências inevitavelmente nos leva a pergunta: “Se quase todo mundo não gostava da escravidão porque ela existia?” Ou ainda: “Como, numa sociedade tão virtuosa, a escravidão durou mais de 350 anos?”

Mas isso nem é algo que seja pertinente perguntar. Afinal de contas, o cinema, ainda que faça história e interfira na memória coletiva, não tem nenhum compromisso com a História. Assim, a pergunta que devemos fazer é oposta, “Para que e para quem servem um tipo de memória como o que foi apresentado por este filme?”.

Terminamos este breve exercício reflexivo salientando que existe muito mais a ser dito e a ser pesquisado a respeito deste filme. Muitos caminhos foram aqui apenas apontados, e a própria inexistência do livro “Sinhá Moça” em todas as bibliotecas da USP foi um empecilho à proposta inicial de ser verificar as diferenças e semelhanças existentes entre a obra literária e a obra cinematográfica. Antes de me aventurar a procurar o que este filme tem de cada uma das referências nas quais ele se baseia, optei por começar tentando captar o que esta obra significa em si e para si, entendendo que este é o primeiro passo para análises mais profundas a serem feitas no futuro.

Mesmo dentro da proposta de analisar a obra em si, esta resenha acabou se restringido a detectar as linhas gerais da obra e problematizar acerca do papel dos negros e a forma como eles foram retratados na película.

Esta escolha foi feita pelo fato de “Sinhá Moça” ser um filme sobre o fim da escravidão, o que faz com que, de alguma forma, ele dialogue com uma certa concepção do como teria ocorrido o fato histórico que esta obra audiovisual retratou à sua maneira.

Concluímos esta resenha com uma frase do Professor Ismail Xavier que dá conta do tipo de cinema produzido em 1953 pela Vera Cruz: “Enfim, o melodrama zomba do verossímil e não tem medo dos milagres”.

P.S.: E com a certeza de que Payne só não absolveu a Aeronáutica do ônus da escravidão porque o avião ainda não havia sido inventado.


* Ana Cristina Venancio da Silva é bacharel em História pela Universidade de São Paulo e se dedica ao estudo das relações entre Cinema e História desde 1999. Foi membro do Cineclube Pandora e trabalhou na revisão catalográfica do acervo audiovisual do LISA (Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP).