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A Contribuição Católica na Formação de uma Cultura Cinematográfica no Brasil nos Anos 50

A partir da década de 1940, devido em grande parte aos escritos de Paulo Emílio Salles Gomes na revista Clima, de São Paulo, e de Vinícius de Morais no jornal A Manhã, no Rio de Janeiro, se adensa a discussão sobre cinema no Brasil, acarretando em um desenvolvimento da cultura cinematográfica. Este adensamento se traduzia em críticas através de jornais, da criação de revistas de cinema, da publicação de livros e do revigoramento do movimento cineclubista. (1)

Já na década de 1950, enquanto parte da crítica cinematográfica nacional se dividia em favoráveis ao cinema europeu e admiradores de Hollywood, em partidários do conteúdo e formalistas, em esquerda e direita, ou ainda entre “crítico-históricos” e “esteticistas” (2) , a movimentação em termos de ampliação da cultura cinematográfica passou a ser encarnada também na atuação dos católicos, procurando repercutir em termos locais o interesse do Vaticano pelo cinema.

A preocupação da Igreja Católica com relação ao cinema se coloca oficialmente em 1936, com o lançamento da Encíclica Vigilanti Cura, pelo Papa Pio XI (3) (direcionada, a princípio, aos Estados Unidos da América), que define sua posição em face do cinema, traça diretrizes para a ação dos católicos e institui a classificação moral dos filmes. Segundo Sales Gomes, em texto de 1957, “a Encíclica tornou-se o texto básico em questões cinematográficas, e até hoje sua influência é poderosa” (4) .

Uma segunda Encíclica, a Miranda Prorsus, escrita pelo Papa Pio XII, publicada em 8 de setembro de 1957, e que não se preocupa exclusivamente com o espectador e com o crítico cinematográfico, mas com todo segmento da atividade cinematográfica, dos exibidores, dos distribuidores, dos artistas, aos produtores e diretores, também foi influente na época (5) . Essa influência teve, por um longo período, seus reflexos em toda atividade cineclubista brasileira, espalhando-se por quase todo o país.

Em 1952, chega ao Brasil uma missão do OCIC (Office Catolique International du Cinéma), para dar cursos e seminários e estimular a formação de cineclubes nas instituições ligadas a Igreja (6) . Em 1953, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) criou o Centro de Orientação Cinematográfica, destinado à formação de espectadores, tendo como presidente o Pe.Guido Logger (7) . Nesta época, muitos outros órgãos católicos foram criados, visando a orientação do público primeiramente através apenas da cotação moral dos filmes, e depois por uma compreensão total do cinema como arte, sem esquecer da indicação moral. Segundo Sales Gomes, em texto sobre a Primeira Convenção dos Cineclubes, em 1959, Humberto Didonet, seu amigo particular e militante católico gaúcho, fazia sua crítica angulada de maneira a harmonizar as opiniões estéticas com as normas habituais da Igreja em matéria de filmes (8) , enquanto segundo Ribeiro:

"no início, os católicos se preocupavam excessivamente com o lado moral dos filmes, a partir de orientações papais, que alertavam para os perigos e malefícios do mau filme. Em decorrência dessas orientações, havia a cotação moral dos filmes e uma censura, em muitos casos, mais rigorosa do que a censura oficial" (9) .

Como já visto, a atuação católica se deu em várias vertentes e em nível nacional. Assim, alguns centros mais desenvolvidos como São Paulo, Distrito Federal, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte, representados respectivamente por Hélio Furtado do Amaral, Álvaro Malheiros, Pe. Guido Logger, Valdir Coelho, Humberto Didonet e Carmem Gomes, apoiavam os menos adiantados. (10)

Em janeiro de 1959, em São Paulo, grande número de dirigentes católicos estiveram presentes ao Encontro dos Cineclubes Brasileiros.

"Lá, tiveram a oportunidade de constatar a força que, na realidade, constituem. Dirigindo clubes de cinema, cine-fórum, palestras em colégios, faculdades, seminários e associações, orientando debates, promovendo cursos de cinema, criticando filmes em cartaz para o grande público, os católicos devem a essas atividades a sua grande desenvoltura"(11) .

Em Belo Horizonte, por exemplo, desde o final de 1950 funcionava o Cine-Clube Belo Horizonte (antes chamado Cine-Clube da Ação Católica, ligado a A.S.A. – Ação Social Arquidiocesana), que contava com a participação de grande parte dos grupos de juventude católica. Na década posterior irá existir a Escola Superior de Cinema, que chegou a realizar algumas produções católicas. Na cidade também foi editada, de 1957 a 1963, a Revista de Cultura Cinematográfica, publicação católica que visava o apostolado cinematográfico, preocupando-se principalmente com a formação do espectador (12) , porém também publicando alguns artigos escritos por leigos, de interesse técnico. A revista abrangia os outros centros de atuação católica e servia como veículo de informações sobre o apostolado nacional.

Em Porto Alegre, atuava o Cineclube Pro Deo, fundado em 1954 e dirigido por Humberto Didonet. Este militante católico, assim como o Pe. Guido Logger, chegou a publicar alguns livros sobre o apostolado ou técnicas de cinema, como o "Curso de Cinema", no qual explica, no cap. II, intitulado "Cultura e Educação Cinematográfica", quem devem ser os educadores: "Os pais, sacerdotes, mestres de todos os graus, dirigentes da juventude. Devem eles tomar conhecimento do assunto. Proibir completamente o cinema da Juventude é perder sua confiança"(13) .

Em Recife, foi marcante a atuação do Cine Clube Vigilanti Cura, criado em 1951, apoiado na sólida estrutura do Serviço de Cinema da Liga Operaria Católica, que promovia debates, círculos de estudos, cursos de cinema e palestras, alem da exibição de filmes. Na opinião de Valdir Coelho, um de seus dirigentes, o trabalho do cineclube não encarava a formação da cultura cinematográfica como um fim, mas como um instrumento de orientação no sentido da compreensão adequada, da recepção correta do que é mostrado e sugerido na tela. (14)

Na capital paulista, em 1952, Hélio Furtado do Amaral e Álvaro Malheiros iniciam um Curso de Iniciação Cinematográfica integrado no currículo do curso secundário do Colégio Des Oiseaux, no qual será baseada a constituição da Equipe de Formação Cinematográfica, integrada na Confederação das Famílias Cristas, quatro anos depois, a fim de continuar com as aulas em alguns colégios de São Paulo. Essa confederação, através de comissões e subcomissões intituladas de Moral e Costumes e Orientação Moral dos Espetáculos, procurava interferir nas decisões do Serviço Federal de Censura Cinematográfica. Segundo Salles Gomes, as comissões davam a entender que sua preocupação essencial era a orientação moral do público, mas na verdade era pura e simplesmente a de impor os seus critérios particulares de julgamento à totalidade dos espectadores, funcionando como uma segunda censura, além da oficial. Esse tipo de ação ficou claro na proibição do filme Les Amants, de Louis Malle, em 1959. (15)

Paulo Emílio Salles Gomes também foi convidado pela Liga Independente das Senhoras Católicas para ser o professor de um Curso de Formação Cinematográfica organizado por ela, utilizando filmes da Cinemateca Brasileira (criada oficialmente em 1954).

Além desses órgãos, havia alguns cineclubes católicos importantes em São Paulo, como o do Centro Dom Vital, fundado em 1958 por Rudá de Andrade e Carlos Vieira, aproveitando alunos do curso de Formação Cinematográfica de Hélio Furtado do Amaral. Um dos alunos, Gustavo Dahl, foi eleito presidente. Este cineclube contribuiu na iniciação cinematográfica de muitas pessoas que vieram a ter uma carreira atuante no cinema nacional, embora desvinculadas dos preceitos do catolicismo, como o próprio Gustavo Dahl, Jean-Claude Bernardet e Jairo Ferreira.
Em outras cidades do Estado de São Paulo, como Ribeirão Preto, Campinas, Marília e Sorocaba, também existiram cineclubes católicos, que baseavam suas atividades naquelas dos clubes de cinema da capital.

Esse panorama sucinto mostra o poder e abrangência da atuação católica no cinema da referida época, o qual abre caminhos para pesquisas mais aprofundadas que possibilitem a devida valorização dessa atuação, que contribuiu na consolidação de uma cultura cinematográfica no Brasil e serviu de base para a formação de pessoas que têm ou tiveram sua trajetória de vida ligada ao cinema.


1. Bibliografia Inicial


ANDRADE, Rudá. Cronologia da Cultura Cinematográfica no Brasil. São Paulo, Fundação Cinemateca Brasileira, sem data.
APOSTOLADO DO CINEMA NO BRASIL. Revista de Cultura Cinematográfica, Belo Horizonte, n. 15, dez. jan. 1959.
ARAÚJO, Luciana S.L.C. A Crônica de Cinema no Recife dos Anos 50. 1994. Dissertação (Mestrado em Artes - Cinema) – Departamento de Cinema, Rádio e Televisão, Universidade de São Paulo, São Paulo.
AUTRAN, Arthur. Alex Viany: Crítico e Historiador. São Paulo, Perspectiva, 2003.
DIDONET, Humberto. Curso de Cinema. Porto Alegre, Paulinas, 1960.
_____. Promoção de Bons Filmes. Porto Alegre, Paulinas, 1959.
GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e Cinema: o Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
GOMES, Carmem. “O Papa do Cinema”: Sua Santidade Pio XII. Revista de Cultura Cinematográfica, Belo Horizonte, n. 13, ago. set. 1959.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro, Paz e Terra, v.1, 1981.
_____. Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro, Paz e Terra, v.2, 1981.
LOGGER, Pe. Guido. Organização, Dificuldades e Critérios na Censura do S.I.C. Revista de Cultura Cinematográfica, Belo Horizonte, n. 13, ago. set. 1959.
MACEDO, Felipe. <http://utopia.com.br/cineclube/cronologia/crono_movimento.html>, acesso em 20/09/2004.
MARRA, Terezinha A.M. As Relações da Igreja Católica com o Povo e o Estado no Brasil 1945/1964. Goiânia, UCG, 1997.
MIRANDA, Luiz Felipe, RAMOS, Fernão (org.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo, SENAC, 2000.
PIO XI, Papa. Carta Encíclica VIGILANTI CURA Sobre o Cinema. <http://www.veritatis.com.br/agnusdei/vigcur0.htm>, acesso em 25/09/2004.
PIO XII, Papa. Carta Encíclica MIRANDA PRORSUS Sobre a Cinematografia, o Rádio e a Televisão. <http://www.veritatis.com.br/agnusdei/mirpro0.htm>, acesso em 25/09/2004.
RIBEIRO, José Américo. O Cinema em Belo Horizonte: do Cineclubismo à Produção Cinematográfica na Década de 60. Belo Horizonte, UFMG, 1997.


Notas:

1. GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e Cinema: o Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981, p.31-32.
2. AUTRAN, Arthur. Alex Viany: Crítico e Historiador. São Paulo, Perspectiva, 2003, p.105.
3. RIBEIRO, José Américo. O Cinema em Belo Horizonte: do Cineclubismo à Produção Cinematográfica na Década de 60. Belo Horizonte, UFMG, 1997, p.47.
4. GOMES, Paulo Emílio Sales. Catolicismo e Cinema in Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, v.1, p.71.
5. RIBEIRO, José Américo. Op. Cit., p. 98.
6. MACEDO, Felipe. <http://utopia.com.br/cineclube/cronologia/crono_movimento.html>
7. GATTI, André. Verbete in MIRANDA, Luiz Felipe, RAMOS, Fernão (org.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo, SENAC, 2000, p. 129.
8. GOMES, Paulo Emílio Sales. Fisionomia da Primeira Convenção in Op. Cit., v.2, p.293.
9. RIBEIRO, José Américo. Op. Cit., p. 53.
10. APOSTOLADO DO CINEMA NO BRASIL. Revista de Cultura Cinematográfica, Belo Horizonte, n. 15, dez. jan. 1959, p.34-35.
11. APOSTOLADO DO CINEMA NO BRASIL. Op. Cit, p.34-35.
12. RIBEIRO, José Américo. Op. Cit., p. 95.
13. DIDONET, Humberto. Curso de Cinema. Porto Alegre, Paulinas, 1960, p.6.
14. ARAÚJO, Luciana S.L.C. A Crônica de Cinema no Recife dos Anos 50. 1994. Dissertação (Mestrado em Artes - Cinema) – Departamento de Cinema, Rádio e Televisão, Universidade de São Paulo, São Paulo, p.47.
15. GOMES, Paulo Emílio Sales. Os Amantes Ultrajados (II) in Op. Cit., v.2, p.163-164.



publicado em 26/01/2006