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Fome de Amor de Nelson Pereira: Mao e Guevara no litoral fluminense

Análise do filme Fome de amor, de Nelson Pereira dos Santos, tomando como enfoque principal a questão política após o golpe militar de 1964. Com esta película, o diretor procurou responder às questões propostas pela nova ordem imposta pelo regime ditatorial, discutindo o papel do intelectual e da participação na luta armada.

INTRODUÇÃO

Fome de amor foi incluído no grupo de filmes cujo objetivo era empreender a revisão da atuação dos agentes sociais urbanos e das frações intelectualizadas das classes médias nos acontecimentos posteriores ao golpe militar de 1964. Entre as películas de ficção mais citadas dentro desta problemática estão O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) e O Bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1968) (Xavier, 1993, p.16).[i] Esses filmes, como notou Roberto Schwartz, também se inserem na discussão nacional da política antiimperialista vinda antes do golpe, permanecendo até 1968, quando o fechamento do regime militar ditou outras opções aos intelectuais (Schwartz, 1978). Eles se integram, no plano internacional, ao quadro de crise política dos países europeus em relação à descolonização, expressos na Nouvelle Vague francesa quanto à Guerra da Argélia (Jean-Luc Godard e o seu Le petit soldat), ou em decorrência da fratura dos intelectuais italianos frente à linha do Partido Comunista, principalmente depois da morte do patriarca Palmiro Togliatti (1964), em fitas dirigidas por Bernardo Bertolucci (Prima della revoluzione), Francesco Maselli (Lettera aperta a un giornale della sera) ou os irmãos Taviani (I Sovversivi). A ebulição das películas políticas, como todos sabem, teve o seu extravasamento em Maio de 1968, momento das barricadas, para uns, ou do Ato Institucional n.5, para outros.

Enquanto as complexidades narrativas e políticas de Terra em transe atraíam as atenções, sendo um dos pilares do vasto estudo de Ismail Xavier, Alegorias no subdesenvolvimento, Fome de amor ficou recolhido ao confortável nicho do esquecimento.[ii] Deve-se entender o frágil interesse suscitado pela película no panorama cinematográfico, da crítica e do ensaísmo menos pelo seu apego à narrativa alegórica. Entendido como um “desvio” na trajetória do criador de Vidas secas, como um filme de encomenda desnaturado, ao contrário de Boca de ouro, fato comprovado pela má acolhida recebida do público, sem receber a adjetivação de obra perseguida pelo regime militar, como acontecera ao anterior, El Justicero (1966), Fome de amor caiu no ostracismo. Quando foi relançado pela Manchete Vídeo, em 1988, na coleção dedicada ao cineasta, o que poderia fornecer um estimulante sopro de vida, completado pela situação política da Nova República, rendeu a seguinte nota: “Filme da época em que realizar histórias que poucos entendiam significava ser intelectual. Pintor e pianista se casam e vão para uma ilha, onde encontram outro casal e transam a quatro. Uma das moças morre e seu fantasma passa a observar tudo. Na outra, começa a pintar uma dúvida: quais seriam os caminhos da Revolução de 64? É mole ou quer mais? O filme vale apenas pelo seu valor histórico: a porralouquice do final da década de 60 e a presença de Leila Diniz” (Vídeo Business, 1988).[iii] A combinação estapafúrdia de pornografia, intelectualismo e golpe militar congelava um interesse mais agudo entre o público renovado pela novidade do Vídeo Home System-VHS, fazendo parecer de uma candidez angelical a insinuação de nudez da atriz Leila Diniz vinte anos antes (Jornal do Brasil, 1968, p.8).[iv]

O objetivo deste ensaio é lançar Fome de amor no circuito do debate político do seu tempo, retirando-o do beco ingrato ao qual foi jogado pelo processo cultural (Ridenti, 2000, p.102).[v] Para tanto, faremos uso do arsenal habitual de análise (filme, fortuna crítica, documentos da censura), buscando entender e destravar o conhecimento que temos sobre a fita de Nelson Pereira dos Santos.

 

PRODUÇÃO E CARREIRA

Nelson foi contratado por 400 cruzeiros novos por semana (um pouco mais de 100 dólares ao câmbio da época) pelos produtores Paulo Porto e Herbert Richers (Salem, 1987, p.216). O orçamento da película girava entre 120 e 150 mil cruzeiros novos, algo em torno de 30 a 40 mil dólares (as baratas produções cinemanovistas: O Desafio tinha custado 20 mil dólares). Os valores destinados à produção e ao diretor eram irrisórios para um produtor como Herbert Richers, que tinha feito fortuna na chanchada carioca e continuava acumulando mais dinheiro no próspero mercado da dublagem para televisão. O produtor executivo Paulo Porto empregava todo o capital ganho no filme Um Ramo para Luísa (1964), no qual somente trabalhara como ator, delegando a direção a J. B. Tanko. A produção ainda foi amortizada pelo marchandising do Banco da Lavoura de Minas Gerais, uma premiação da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica-Caic, do Estado do Rio de Janeiro, e as habituais trocas de favores entre prefeitura municipal, rede hoteleira (agradecimento ao Angra Turismo Hotel) e organismos estatais (Capitania dos Portos). No início das férias de julho de 1967, Nelson, mulher, filhos e equipe técnica estavam instalados, na época, sem a rodovia litorânea Rio-Santos, razoavelmente distante cidade de Angra dos Reis, para o início da produção artesanal, uma marca registrada do diretor desde a primeira ficção de longa-metragem, Rio 40 graus. O sistema gregário de Nelson Pereira dos Santos e o regime anticapitalista do empreendimento estavam no antípoda do buscado por Paulo Porto. Na sua ilusória escala de trabalho, 35 dias de filmagem seriam consumidos em Angra, dez no Rio e dez em Paris (trocada depois por Nova York). Perto do encerramento das locações em Angra, segundo os cálculos errôneos de Paulo Porto, morreu a mãe de Laurita Sant’Anna, mulher de Nelson, que se ausentou das locações. “Prestes a completar a oitava semana de filmagem, Porto deu o ultimato a Nelson, através de um assistente, o filme teria de acabar em dois dias. Isso entrava em choque com as determinações de NPS, que decidira interromper as filmagens até obter um determinado tipo de negativo importado, que havia terminado” (Salem, 1987, p.217). Com os nervos irritados, o produtor e um diretor bêbado quase protagonizaram uma cena de pugilato, apartada no último momento pelos membros da equipe.

Em princípios do mês de outubro, Nelson, o diretor de fotografia Dib Lutfi, o produtor Porto e os atores principais, Irene Stefania e Arduino Colasanti, viajaram para Nova York. Che Guevara, capturado a 8 de outubro na Bolívia, foi assassinado dois dias depois. Todos retornaram no dia 13. A morte do Che motivou a filmagem de cenas extras em Angra, apontando para um ângulo inexplorado na narrativa que, agora, necessitava retificações. Na programação de Paulo Porto, a película deveria estar pronta para o lançamento em novembro, sendo inscrita no III Festival de Brasília, que ocorreria em dezembro, competindo com filmes já estreados como Terra em transe, Cara a Cara e O Caso dos irmãos Naves. Rafael Justo Valverde, auxiliado por Lúcia Erita, começou a montagem sob a orientação de Nelson que, após algum tempo, desapareceu. Segundo o diretor, problemas salariais com os produtores o obrigaram a dirigir um documentário (ausente do seu currículo). Paulo Porto resolveu assumir a montagem, mas diante do material bruto e praticamente sem roteiro, a tarefa de construção da narrativa se mostrou impossível. De acordo com o depoimento dado a Salem, o ator dublê de produtor entrou em pânico com o trabalho. “Resolvi tentar assim mesmo. Aí eu estou montando, abre a porta, e era o Nelson: ‘Ô Paulo, que é que há? Vocês estão montando o meu filme?’ E eu respondi: primeiro, não é o seu filme; segundo, você não aparece há meses; terceiro, está sendo um exercício louco para mim, um desafio. Não sei o que vai acontecer dessa merda, mas alguma coisa vai. Houve uma ameaça de discussão, mas nos ajeitamos, e ele voltou a trabalhar. Criei umas facilidades, pegava ele de carro cedinho nas barcas [Nelson morava em Niterói] e levava lá para a Tijuca [ao estúdio da Herbert Richers na rua Conde de Bonfim], onde era a montagem. Tudo para evitar que ele desse desculpas, porque o filme realmente teria de sair [...]” (Salem, 1987, p.222).

Em abril de 1968, nove meses depois do desembarque da equipe de filmagens em Angra dos Reis, a primeira cópia estava pronta para ser submetida à censura. Liberada um mês depois, Fome de amor passou a circular sem impedimentos. Ela foi inscrita pelo Instituto Nacional de Cinema-INC no XVIII Festival de Berlim, onde concorreu, entre outros, com Week-end à francesa, de Godard, e Crônica de Ana Magdalena Bach, de Jean-Marie Straub, à avaliação de um júri que contava com Alex Viany entre os seus membros. Exibida a 22 de junho, foi vaiada, segundo as matérias dos correspondentes Ely Azeredo (Jornal do Brasil) e Novais Teixeira (O Estado de S. Paulo). Leila Diniz, integrante da delegação brasileira ao Festival, juntamente com o presidente do INC, Durval Gomes Garcia, e o produtor Porto, pelo contrário, afirmou que Fome de amor foi aplaudida. Ele foi apresentado ainda em outros dois festivais nacionais: o I Festival do Cinema Brasileiro de Belo Horizonte (setembro) e o IV Festival de Brasília (dezembro). Em Minas, Nelson recebeu apenas um prêmio de consolação pelo conjunto da obra, num festival vencido por Desesperato, de Sérgio Bernardes; em Brasília, a sorte lhe foi mais favorável, recebendo três prêmios (melhor atriz, trilha sonora e fotografia). Irene Stefania, premiada em Brasília, ainda levou os prêmios de Melhor Atriz do Air France de Cinema e do INC; Nelson os de Melhor Diretor pelo Air France e o Golfinho de Ouro do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (5 mil cruzeiros novos).

Com exceção do Golfinho de Ouro, que rendeu ao diretor um valor muito superior ao ganho durante a produção do filme, a exibição de Fome de amor deve ter tido um retorno pequeno para os produtores. Lançada no Rio de Janeiro em 10 de junho, de forma a aproveitar a propaganda extra vinda da mostra internacional de Berlim, estreou em doze cinemas do circuito Bruni (Ópera, Art-Palácio Copacabana, Art-Palácio Tijuca, Art-Palácio Méier, Art-Palácio Madureira, Bruni Ipanema, Festival, Kelly, Rio Palace, Ramos, Bruni Piedade e Marrocos). Ganhou uma segunda semana num circuito menor de oito salas, desaparecendo a seguir da programação. Escaldados, os exibidores paulistas integrantes do segundo território brasileiro em importância comercial a aceitaram somente em 17 de agosto e somente em dois cinemas (Iguatemi e Ouro, uma sala de elite e outra popular). Fome de amor agüentou duas semanas, voltando a 3 de setembro no Esplanada, numa falsa “terceira semana”. Depois disso, as cópias paulistas passaram ao circuito secundário e interiorano, rastreando-se exibições no Picolino (São Paulo) e programas duplos na cidade de Santos (outubro). Herbert Richers afirmou a Helena Salem que o filme nunca se pagou. Paulo Porto discordou, lembrando as vendas para o mercado alemão, televisão e os relançamentos (em São Paulo, Fome de amor voltou em 9/7/1969 no cinema de arte Belas Artes, que fazia dobradinha com o popular Premier, permanecendo uma semana em cartaz, sendo substituído por Obrigado, tia, de Marco Bellochio, dono de uma carreira de sucesso de três semanas).

 

FILME

Fome de amor narra o relacionamento de dois casais: Felipe (Arduino Colasanti) e Mariana (Irene Stefania) com Alfredo (Paulo Porto) e Ula (Leila Diniz). O primeiro se conheceu em Nova York onde ele, imigrante clandestino, vivia trabalhando em bares e restaurantes. Sua vocação era a pintura, mas a falta de oportunidades levara-o inclusive a vender sua caixa de tintas e telas. Mariana era uma rica herdeira, dedicada à pesquisa de música eletrônica. Diante da ameaça de ser convocado para a Guerra do Vietnã, Felipe convence Mariana a voltar ao Brasil, para a sua ilha, onde vivia antes de Nova York. O outro casal era composto por um homem mais velho e experiente, Alfredo, que ficara cego, surdo e mudo, e sua jovem esposa, Ula. Ele se isolou na ilha, de quem era o proprietário, depois de se destacar como um revolucionário em diversos campos, do social ao botânico. Ula se sente traída na sua perspectiva de vida, já que se restringia a cuidar do marido, depois de um passado de viagens e glórias. O contato com Felipe é restabelecido. Ele passa a entretê-lo, jogando xadrez e pescando com o marido, enquanto a expansiva Ula ensina à tímida Mariana as qualidades paradisíacas do sol e do mar. Mariana descobre que Ula serve de modelo vivo para o marido e, logo depois, a relação amorosa entre os dois. O desengano com o casamento e a crença no passado de lutas sociais de Alfredo, faz com Mariana acabe se ligando amorosamente a ele. Felipe e Ula, entretanto, estão tramando a rapina da fortuna da moça. Após uma noite de orgia, em que Ula se fantasia de “A Verdade”, o dia amanhece com Mariana e Alfredo sendo vistos vagando pela ilha, como que abandonados ao seu destino.

 

CRÍTICA

Os primeiros espectadores e críticos de Fome de amor foram os membros da equipe de censores, como de praxe.[vi] Constâncio Montebello, no parecer do dia 16/5/1968, ficou assustado com o discurso do personagem Felipe, pedindo auxílio aos colegas antes de liberar ou suspender a obra: “o tema do filme é a revolução armada contra as injustiças sociais, conseqüentemente, a opressão capitalista. A película enfoca um agitador profissional (enfocado como um libertador dos fracos e oprimidos) que sempre viveu fornecendo armas a vários países, até ficar surdo, mudo e cego, devido a uma explosão ocorrida em uma das guerrilhas em que participou. O jovem apresentado no filme confessa ter procurado sua atual esposa por sabê-la rica e pretender levá-la a auxiliar seu grupo guerrilheiro. Várias frases incentivando à luta armada em todos os países sul-americanos.” No dia seguinte, José Vieira Madeira, menos ingênuo, depois de elogiar o diretor (“conhece como poucos a linguagem cinematográfica”) e os atributos técnicos da fita (“fotografia bem cuidada, expressiva, de alto padrão artístico e técnico, como não se vê, normalmente, em filmes nacionais”), deixou de liberá-lo “por não entender bem algumas partes dos diálogos, que não são falados em português, o que trouxe certas dificuldades ao entendimento do que se propôs dizer o realizador nesta obra”. No dia 20, os membros restantes da equipe se manifestaram. Wilson Queiroz se preocupou principalmente com a desmoralização da Censura, caso ele fosse interdtado. No seu entender, a proibição para menores de 18 anos reduziria o público de Fome de amor, pois o impedimento e a posterior liberação pela Justiça – “coisa que sempre acontece” – desaguaria numa inevitável campanha de descrédito do órgão. Além do mais, o “primarismo e o modo desordenado como procuram enfocar o tema [...], a alcançar o objetivo almejado. E o filme todo é uma prova disso.” O censor Queiroz se impressionou mais com o discurso da personagem Mariana: “Mostra a pregação de uma jovem ‘subversiva’ que vive lendo textos em inglês de Mao-Tsé-Tung e pregando a luta armada como meio de ‘solucionar os grandes problemas’ da América Latina, mas que se perde no vazio, pois os seus circunstantes, aqueles a quem ela julga estar doutrinando, preferem antes a revolução das bacanais e da orgia.” Dito isso, como a película passava uma “mensagem” confusa para o “grande público”, sua recepção ficava prejudicada: “a massa não terá condições de assimilar (e) sequer entender. Os textos lidos ou dissertados em inglês ou espanhol, da mesma forma. Erro seria, a meu ver, traduzi-los.” Carlos Lúcio Menezes também bateu na tecla do desafio à Censura, lembrando a liberação de Terra em transe, cujo exame pela Censura recebera grande alarde pela imprensa. “Pressinto o interesse similar, mesmo porque consta já ter a imprensa noticiado antecipadamente que a censura teria impedido a liberação do filme” (Jornal do Brasil, 1968).[vii] Como fita de difícil entendimento pelo “espectador comum”, expressando mensagens políticas em espanhol, inglês ou italiano, o censor pediu o limite de 18 anos, tendo em vista o aspecto moral devido às “cenas de sexo e adultério” (Wilson Queiroz também apontou para o afastamento do público “infanto-juvenil” das imagens de “desnudamento de Leila Diniz e outras cenas de relações amorosas muito ‘avançadas’”). A última opinião veio de Coriolano de Loyola Cabral Fagundes (Kushnir, 2004, p.176, 375).[viii] Mariana, na sua visão do enredo, era uma jovem norte-americana envolvida amorosamente com um pintor fracassado. “Domina-a e, a título de organizar a revolução no país, começa a tirar-lhe dinheiro em benefício próprio.” Vivem numa ilha, travam relações com outro casal, cuja esposa é uma “moça fútil”. O pintor “inicia aventura adúltera com a mulher do cego, [...] este termina com a companheira do primeiro”. No ângulo político, Coriolano viu o seguinte: “o conquistador da garota americana a aproxima de grupos da esquerda festiva. Como é natural em tal ambiente, presenciam-se alguns diálogos tratando de revolução na América Latina. A própria moça passa a ler obras de doutrinação marxista, como o livro de autoria de Mao-Tsé-Tung, do qual se ouve uma passagem em inglês. Contudo, como se trata de difícil interpretação pelo excesso de simbolismo, montagem complicada e mesmo por alguns diálogos doutrinários em língua estrangeira”, Fome de amor seria “mal recebida pelo grande público, com o qual ele não se comunica”. Logo, faltava “periculosidade do ponto de vista político”.

No mesmo dia do parecer, 20/5/1968, foi emitido o certificado de censura n.37.230, classificando o filme como impróprio para menores de 18 anos e para a TV.

Se a Censura estivesse sediada no centro da agitação estudantil que tinha se transformado a cidade do Rio de Janeiro, afinal a famosa “passeata dos cem mil” ocorreu em 26/6/1968, Fome de amor, com seu apelo à luta armada, teria sido proibido. Porém, distante das pressões das ruas, trabalhando com um precário processo de avaliação – a visualização por uma única vez da fita – a Censura fez jus as tradicionais acusações de despreparo. Um censor esperto omitiu sua opinião por não entender os diálogos, precariedade que poderia ser suplantada se tivesse à mão o roteiro, um tradutor ou notas taquigráficas que ele mesmo poderia traduzir ou pedir a tradução. Outro censor considerou a personagem de Irene Stefania como uma jovem norte-americana. Mas, como olhos e ouvidos do poder, reagiram “pavlovniamente” à situação. As imagens eram perigosas, porém inassimiláveis pelo público. Respaldados pelo general Bretas Cupertino, diretor da Polícia Federal, liberaram Fome de amor com o objetivo de evitar atritos da sociedade com o aparelho do Estado, numa atitude de autodefesa corporativa.

Alguns dos espectadores especializados que assistiram ao filme no momento inicial de circulação da mercadoria, se afinaram com o discurso proferido pelos olhos do Estado. Salvyano Cavalcanti de Paiva, escrevendo para o “radical”, segundo o regime ditatorial, Correio da Manhã, traduziu o mesmo sentimento da Censura em quatro colunas de jornal (Correio da Manhã, 1968, p.4). É certo que Salvyano desprezava o diretor que, após Rio 40 graus, vagara por trabalhos de encomenda ou obras rotineiras, excetuando-se o êxito de Vidas secas. Fome de amor era a exacerbação de El Justicero, onde o deboche e a anarquia moviam a narrativa, entre citações de Godard e Federico Fellini, desfazendo o pacto de comunhão com a platéia. A Censura tinha se preocupado com as cenas em stop motion de Leila Diniz nua, dando-se por satisfeita com o expurgo de cinco delas (a cópia atual em circulação foi tirada do negativo original, preservando a totalidade da seqüência). Indo além, Salvyano declarava que o erotismo existente apelava para “aberrações”, sugestão colocada muito além do “adultério” visto em Brasília. A possibilidade de uma angulação política era “supimpa burrice”. De um lado porque Nelson tinha se “vendido” a um dos signos do imperialismo na época, a agência United States Information Service-Usis (Nelson tinha viajado a convite do Departamento de Estado norte-americano no primeiro semestre de 1967) (Jornal do Brasil, 1967, p.3).[ix] De outro, porque o produtor Herbert Richers mantinha fortes ligações com os interesses econômicos de Wall Street. Dessa forma, as “citações embaralhadas de Mao-Tsé-Tung (em inglês), Che Guevara e Raul (sic) Debray (em espanhol), Lênin e outros teóricos do socialismo atingirão, apenas, os que já estão doutrinados; a massa boceja, enjoada. Logo, a mensagem não atinge o alvo – se houvesse intenção do diretor, e isto seria uma falha a merecer severa crítica. [...] o filme não fermenta revolta alguma.” O crítico dialogava com um setor dos espectadores sensíveis à produção de Nelson: os paissanduendes (uma brincadeira com os jovens freqüentadores do Cine Paissandu, transformado em cinema de arte entre 1964 e 1973, depois que passou a ser programado pela Cinemateca do MAM, apodados de duendes; em outro parágrafo ele já se referira aos estudantes de esquerda como arruaceiros). Para a “geração Paissandu” (Durst, 1996), segundo a ótica de Salvyano, os espectadores comuns eram condicionados pelo cinema de Hollywood. A linguagem “extravagante”, se agradava aos jovens esquerdistas, era conduto um entrave, já que desfazia a comunicação com o “público médio”, alvo primordial do cinema brasileiro.

Em maior ou menor diapasão seguiriam Salvyano Cavalcanti de Paiva os críticos Alberto Silva, Valério Andrade e, é claro, Rubem Biáfora. O denominador comum entre eles estava na fonte de inspiração. Para Valério Andrade, repetindo Salvyano, Nelson articulara uma aproximação com o Glauber Rocha de Terra em transe, tornando-se vanguardista. Como Salvyano, suas observações ora são irônicas, ora malévolas: “também sabe fazer um filme pra frente, a la Godard, visando as palmas das sessões especiais, capaz de fazer bonito nos festivais”, ou então, “um perigo para Glauber, porque, de uma hora para outra, poderão começar a achar que a ilha de Nelson é mais genial que a caótica terra de El Dorado, capital do nosso cinema revolucionário” (Jornal do Brasil, 1968, p.6).[x] Alberto Silva perguntou-se onde estava o Nelson de Vidas secas diante do surrealismo de certas cenas inspiradas no Buñuel de Belle de jour ou o final imitando Terra em transe (Jornal do Comércio, 1968). Biáfora, na página dominical de comentários sobre os lançamentos da semana, depois de afirmar que o melhor da carreira de Nelson estava em El Justicero, completou: “um filme que em matéria de agitação inútil, ‘engagement’ de ‘slogans’ e de fachada deixa o próprio ‘Terra em Transe’ parecendo realização de Ozu, Willian Wyler ou Robert Bresson. E ao final comparece um pretenso barroquismo e uma gratuidade hedonista visivelmente emulada do ‘La Dolce Vita’, de Fellini, a estranha mistura a lembrar mais e mais e mais a voga (e má voga) do pobre ou safado Godard. A convulsão, o delírio são tais que se perde todo e qualquer sentido que a história possa vir a ter, perdem-se os bonitos (‘procuradíssimos’) efeitos formais de fotografia de Dib Lutfi e se não se perde, pelo menos torna impossível divisar não só o talento como até mesmo a beleza fisionômica de Irene Stefania. Mas não faltará quem diga aqui o antigo Papa do ‘despojamento’ no cinema brasileiro esteja fazendo a ‘Revolução pela Forma’ ou, até mesmo, pelo formalismo” (O Estado de S. Paulo, 1968, p.27).

Críticos de outra cepa, a exemplo de Jean-Claude Bernardet, fizeram carga sobre aspectos diversos: a alienação do intelectual, a liberdade de filmagem do diretor, a produção pobre, subdesenvolvida, os contrastes entre a inspiração bebida nos europeus Adrzej Wajda (Cinzas e diamantes) e Fellini (A Doce vida) sobre o significado da orgia para a burguesia européia e a visão da mesma encenação para a brasileira (Bernardet, 1978, p.105-9). O melhor personagem sobre a alienação da esquerda se encontrava em Mariana, que pouco a pouco vai se fechando para o exterior enquanto se aproxima cada vez mais do “revolucionário frustrado” Alfredo. “Como ela dispõe fisiologicamente de todos os seus sentidos, ela mesma vai erguendo barreiras entre si e a realidade. Não é com o povo que ela se relaciona, mas com livros e revistas: deixa de falar; e, o melhor, desdobra os seus sentidos: encarrega o microfone de encontrar para ela o ruído da chuva para que em seguida ela possa escutá-lo no gravador, pondo os fones de ouvido, o que a isola completamente do mundo ambiente. Mariana é uma excelente personagem, que encerra o essencial da significação do filme.” Outros aspectos sobre o intelectual receberam um mau desenvolvimento na trama, como o revolucionário no social e na botânica Alfredo, e o pintor Felipe. Outra linha dominante seria a desorientação da esquerda, mesmo que apontasse para uma crítica infecunda e dispersa. Bernardet destacou também a opção por uma produção pobre. Diante de um orçamento de 400 mil cruzeiros novos (informação contraditória, pois três vezes superior ao anunciado pela imprensa), o diretor optou por “avacalhar” o apelo novo-rico junto a uma classe média dos cines Olido (central) ou Astor (avenida Paulista), preferindo a exposição de um contexto subdesenvolvido em que mergulhou o país, Nova York e as locações. Isso estava implícito no trabalho de filmagem, em que a liberdade de construção foi “total”. A criação estava no ato de filmar, na montagem e até no momento da dublagem. A ênfase colocada sobre a proposta de filmagem do diretor – os recursos mínimos de encenação – postava-se contra a corrente que procurava garantir o público pela riqueza de produção e encenação. Filmes como Capitu (Paulo César Saraceni) ou Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Júnior) conduziam o Cinema Novo por um caminho errado. Nelson, ao propor um retorno às origens do movimento, que ele mesmo abrira com Rio 40 graus, apontava para uma opção mais radical, cujo objetivo era evitar a mediocridade e o fascínio pelo cinema atrelado aos interesses da exibição comercial ou do Estado. O diálogo dos textos de Bernardet se fazia com os dois artigos que José Carlos Avellar tinha publicado no Jornal do Brasil sobre Fome de amor (Jornal do Brasil, 1968). Ao comparar a fita de Nelson com Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-trás, de Paulo Gil Soares, o crítico carioca batera na tecla da questão do subdesenvolvimento. O Brasil era capaz de assistir inerte à morte pela fome ao mesmo tempo em que uma medicina avançada realizava o primeiro transplante de coração na América Latina. “Como mostrar este progresso ilusório?”, perguntava-se Avellar. Ou seja, diante do arcaico e do moderno qual a melhor forma de encaminhar a discussão da realidade brasileira? A vertente indicada estava na agressão pela linguagem, traduzida por Bernardet na “avacalhação” da produção sofisticada. A convergência das críticas apontava para uma situação de crise do Cinema Novo, anunciando a radicalização social e política do país, logo depois catalisada pela nova geração de cineastas agrupados em torno daquilo que ficaria conhecido como Cinema Marginal (Sganzerla e Bressane à frente).

Quatro anos depois de sua estréia no Rio de Janeiro, Fome de amor chegou aos cinemas de Porto Alegre (Merten, 2004, p.167-8). A narrativa ainda incomodava ao jovem crítico Luiz Carlos Merten, posto que um filme político deveria atrair o público e não o afastar. Ecos das críticas anteriores são evocados na desglamourização das tomadas nova-iorquinas (“jamais cedendo ao gosto gratuito pelo cartão-postal”), a alienação política dos intelectuais encerrados na ilha imaginária e as influências estéticas de Alain Resnais e Michelangelo Antonioni situando-se acima do Glauber de Terra em transe.

Um balanço provisório da fortuna crítica de Fome de amor compreende aspectos da trajetória do diretor e da concepção narrativa adotada. Todos são unânimes em identificar a reviravolta estilística de Nelson, antes neo-realista, depois sociológico ou rodrigueano em Rio 40 graus, Vidas secas e Boca de ouro, para outro em disjunção com formas narrativas já superadas naquele momento (a Nouvelle Vague francesa ou o estilo de Fellini). Jean-Claude Bernardet declarou a Helena Salem que “Fome de amor me deixou absolutamente estupefato. Eu nunca esperaria de Nelson um filme assim”. O próprio diretor analisou o ponto de inflexão como um caminho de experimentação, de subversão de um projeto que o desagradava, uma encomenda que deveria ser dirigida pelo seu aluno do curso de cinema abortado na Universidade de Brasília, Luiz Carlos Ripper (Amâncio, 1999, p.47). Pressionado por Herbert Richers, aceitou seguir em frente, mas forjando o seu desígnio. A experiência de viagem aos Estados Unidos, segundo declarou, foi forte, intervindo o contato com o Underground norte-americano: “[...] eu conheci bem, tive contatos com eles. O Stan Brakhage, o Jonas Mekas, e toda aquela questão do corte dentro do filme. É Nouvelle Vague e Underground. Uma nova duração do plano, um tratamento do tempo com muito mais liberdade do que antes.” O apelo à camera-stylo, via Jonas Mekas, desaguou na improvisação das filmagens, com a estrutura sendo erguida no dia a dia das filmagens, “escrevendo com a câmera, numa concepção estruturada somente na mesa de montagem” (Papa, 2005, p.29).

A radicalidade política de 1967 perdeu força nos anos seguintes à filmagem de Fome de amor, quando Nelson dirigiu Azyllo muito louco e Quem é Beta?. O momento de fechamento do regime militar empurrou o cineasta para uma alegorização narrativa de sentido político mais fechado (Azyllo), até a futilidade de Quem é Beta?. Essa fase se encerraria com Como era gostoso o meu francês (1972). A fraca recepção do público, repetida nas duas produções seguintes, encapsulou Fome de amor num desvão indevido. O diretor passou a dar somente importância formal à produção, desfazendo o ato político (Études cinématographiques, 1972, p.66).[xi] Retomou a linha de construção narrativa clássica, e financeiramente mais rendosa, aliada a uma certa vertente popularesca do Brasil em películas do naipe de Amuleto de Ogum, Estrada da vida ou Jubiabá. Fome de amor foi, dessa forma, realmente um desvio na sua trajetória.

 

FOME DE AMOR POR GUILHERME FIGUEIREDO

O escritor Guilherme Figueiredo, autor da novela História para se ouvir de noite, foi um dos poucos beneficiados financeiramente com o projeto de Herbert Richers e Paulo Porto (Figueiredo, 1964). Por um texto de pouco mais de cem páginas em formato de bolso, publicado pela Editora Civilização Brasileira em 1964, recebeu de 6 a 8 mil cruzeiros novos (Jornal do Brasil, 1967).[xii] O contrato de cessão de direitos previa a realização de um primeiro tratamento pelo autor, a sua aprovação do roteiro final, dos atores e do diretor da película (O Jornal, 1968). O tratamento foi deixado de lado e nenhuma das etapas seguintes foram respeitadas. Segundo seu amargo comentário, uma história de fantasmas, contada por um fantasma, “[...] transformou-se numa história sem fantasma algum com muito sexo e um diálogo que jamais nasceria da minha modesta pena. [...] Entreguei o caso à Justiça e estou certo de que ela me fará justiça.”

A partir de um certo momento de sua trajetória, Nelson alimentou a lenda de que o filme foi feito sem roteiro. Deve-se pensar, entretanto, na existência do tratamento de Guilherme Figueiredo e outra adaptação escrita por Luiz Carlos Ripper e o próprio diretor.[xiii] Mesmo detestada, a novela era incontornável. A questão se encontrava na descoberta de um ângulo diferente para contar a mesma história ou, como escreveu Pasolini, comentando o processo de construção do plano em Antes da revolução, de Bernardo Bertolucci, “é um desvio em relação ao sistema do filme: é a tentação de fazer um outro filme” (Pasolini, 1982, p.148).

A exposição minuciosa que agora faremos da novela cristã de talhe espírita escrita por Guilherme Figueiredo tem por objetivo marcar o débito da película com o texto original. O escritor desenvolveu sua trama na forma de um diário aberto em Paris a 4/5/1957, uma forma romanesca clássica para narrativa em primeira pessoa, interrompido cinco meses depois numa praia do litoral fluminense. Ele intercala a voz da morta (editada em itálico) com o desenrolar do diário (em cursivo). Daí a sua referência a uma história de fantasmas.

Uma aluna de piano, Mariana Laura, que se qualifica de feia, é extraordinariamente dotada para a arte musical, sendo incentivada pelo professor Albert Lallemand a seguir a carreira de solista. De volta ao Brasil, vence um concurso nacional, em agosto daquele ano, interpretando uma peça de Mozart. Imediatamente vira uma celebridade, sendo comparada a outras grandes intérpretes brasileiras como Antonieta Rudge, Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro. Na festa que homenageia sua vitória, Felipe Soeiro, que se intitula pescador, caçador e pintor, insinua-se junto à moça, fazendo daquele dia o “mais feliz” da vida dela (esta e outras citações são da novela). Lallemand quer inscrevê-la num concurso internacional, já prevendo uma carreira vitoriosa. Felipe Soeiro, em sucessivos ataques de conquista, envolve-a com seu charme e savoir vivre. Em breve tempo, eles se casam, mudando-se para uma ilha. Durante o rápido e simples casamento em Friburgo surge a questão da herança recebida pela moça. Vão para a ilha de trem, revelando-se a primeira mentira. A ilha não era só de Felipe, “mas é como se fosse. Só eu moro lá. [...] Além da minha casa há uma ruína. Nem sei de quem é.” O casal chega à vila e dali parte para Água Azul. A casa de Felipe situava-se “no alto, uma casa de varanda à frente, submersa entre mangueiras e amendoeiras que escondiam sanhaços.” O piano foi transportado para lá, e quando o casal chega, ele já está instalado. As telas do pintor tinham como motivos um velho forte e nus femininos “preguiçosos, deitados na areia, molhados de sombras das folhas das árvores, com as formas refratadas quando mergulhadas no mar... [...]”. O quarto tinha poucos móveis, como o resto da casa, destacando-se uma cama com dossel. Na varanda, uma cadeira de balanço. Para a consumação do casamento, Felipe se embriaga com gim.

Mariana passa os dias em Água Azul no estudo do piano para o concurso em Genebra, já que se interessava pouco pelo mar (“um mergulho e dez minutos de sol” a satisfaziam). Felipe, pelo contrário, “é um insaciável da luz, da água salgada, e os enfrenta nu. Logo na primeira manhã em que descemos à praia, quis que eu também ficasse nua”; pescava com a canoa e dedicava-se à pintura. A primeira crise entre o casal instala-se quando Mariana retira da sala os nus que perturbavam o seu estudo de piano. Felipe os traz de volta, mas revela que não são “grande coisa”, enquanto atira um copo de gim neles. “Eu nunca, nunca serei um artista”, confessa, obrigando Mariana a um gesto de ternura. Neste momento de fracasso pessoal é que aparece o segundo casal da narrativa: Gisela e Alfredo Kramer. Felipe mostra-se surpreso com a chegada, perguntando-se: “que invasão é esta?”. Logo depois, Gisela faz uma visita aos dois. Ela é descrita como loira, “talvez não tivesse mais de vinte anos”, vestindo uma “blusa amarrada à cintura e de mangas enroladas nos antebraços, uma calça preta, esguia, colada às pernas”. Morava nas ruínas do forte com o marido mais velho, que viera em tratamento de saúde. Mariana e Felipe fazem uma visita aos recém-chegados; ante o cumprimento de Mariana, Gisela informa que ele não enxergava, nem ouvia, nem falava. Tratado como capitão, um herói de guerra, dez aviões abatidos na Itália, oitenta missões sobre o inimigo, condecorações, agora dependia inteiramente de Gisela. Viera para a ilha para fugir dos olhos piedosos dos outros. Mas ela não é uma heroína, lamentando-se do “desastre” ocorrido logo após o casamento, realizado quando tinha 17 anos. Tornara-se uma espécie de enfermeira aos 19. Havia esperança de cura, pergunta Mariana. Gisela responde que os “médicos dizem que sim. Mas para me encorajar. Sei que não há. Alfredo acha que sim, também. Mas é porque tem fé”. A comunicação entre eles se fazia pelas mais diferentes formas como um bloco de papel e um lápis, cubos com letras esculpidas em relevo para a formação de palavras, o código tátil entre Gisela e o marido. Alfredo trazia um rosário permanente entre as mãos. O cão Brutus lhe servia de guia. Gisela era o oposto de Mariana. “Seu sorriso era toda a manhã de sol, todo o mar, todo o vento”. O seu desejo de nudez era o mesmo de Felipe. Os dois casais passam a ter uma convivência maior. Felipe leva o capitão para pescar. Em outras ocasiões jogam damas. Felipe queria ensinar xadrez ao capitão. Gisela, contudo, já se adiantara, adaptando o tabuleiro às necessidades do cego: ranhuras de orientação e alfinetes nas pedras pretas serviam de reconhecimento para o marido. Ela implorou para que Felipe jogasse com ele, já que não tinha mais paciência. Enervava-se, esperando cada jogada, com a lentidão, o esforço de raciocínio do marido.

Mesmo que fosse presença constante junto ao marido, Gisela faz companhia a Mariana durante os seus exercícios de interpretação. A proximidade da esposa, porém, era vital. Durante uma pescaria, Alfredo sentiu sua falta. Sua reação de desespero foi brutal: ergueu “a cabeça para o alto, respirando forte, sofregamente, irregularmente; seus braços começaram a se debater, como os de um náufrago; os nervos do seu pescoço se esticaram, num esforço; e depois seus lábios se moveram rapidamente, insistentemente, como se sua boca mastigasse alguma coisa depressa, não, como se rezasse. Sim, rezavam, pediam alguma coisa, suplicavam.” Somente com a aproximação de Gisela foi que se estabeleceu a beatitude no espírito do cego e surdo-mudo.

A rotina dos exercícios de piano, da pesca e das visitas entre os casais foi quebrada um dia. Mariana, em visita ao cego, escreveu no tabuleiro: “Vim fazer companhia”. Ao saber que Gisela não se encontrava na casa, apesar de sentir o perfume do lenço da esposa marcando a sua presença, escreveu perguntando sobre Felipe. Ao tomar conhecimento que estava no continente fazendo compras, sentiu-se mais confortável. Inesperadamente o capitão atirou-se sobre Mariana que lutou, a princípio, contra o assédio, mas depois se deixou dominar. A sensação de prazer decorrente do ato foi substituída mais tarde pela de infâmia. O reconhecimento de que seu corpo podia sentir novas sensações a deixou inquieta diante de Felipe. Neste torvelinho de novas experiências foi que Mariana descobriu a tela de Gisela nua. Ao ser surpreendida por Felipe na contemplação do esboço, Mariana se dividiu entre o amor do capitão e a traição do marido. Passou os dias seguintes tartamuda, largada, abrindo mão do estudo do piano; tornou-se monossilábica. “Não vai estudar piano?”, perguntou Felipe. “Não”, respondeu. A divisão no espírito de Mariana só se fechou quando ela resolveu procurar novamente o capitão, invertendo a ordem dos desejos. A situação se repetiu outras vezes até que o cego, em plena crise de fé, toma a decisão de recusar o amor de Mariana. “Só crendo em Deus ele me atenderá. Só ele pode me fazer de novo como eu era”, escreveu no bloco de notas. O amor por Gisela era maior que o desejo por Mariana. Ao romper com esta fé no amor, pensava estar fraquejando diante de Deus, impedindo a cura.

Perturbada com a resolução, Mariana decide voltar à casa de Kramer. Ele jogava xadrez com Felipe. Mariana, porém, viu mais. Gisela e Felipe se amavam, no intervalo de uma jogada e outra. A dupla traição, do capitão e do marido, colocara-a no abismo. Gisela convence o capitão a vender a propriedade para Felipe. Para isto, ele necessitava do dinheiro de Mariana. Para “salvar” Kramer, Mariana assina o cheque da compra. Com isto, ela esperava também recuperar o marido de volta.

As duas últimas páginas do diário, arrancadas por ela, anunciavam a descoberta da trama do seu assassinato. Mariana tentou transmitir a Kramer o sentimento, escrevendo no tabuleiro a palavra “socorro”. Felipe a desmanchou, escrevendo outra no lugar: “somos amigos”. O capitão assentiu com a cabeça, rindo. No momento em que lia no rochedo, Mariana é empurrada no mar por Felipe e Gisela. É o seu fantasma quem descreve as cenas finais. O casal de assassinos pretendia abandonar a ilha, deixando o capitão para morrer sozinho. O fantasma de Mariana vai até ele, fazendo com que o lenço de Mariana seja levado pelo vento. Sentindo a falta da mulher, Kramer atiça o cachorro, que sai em disparada. Gisela e Felipe estavam no pequeno cais, aprontando a lancha para a partida. O cachorro salta sobre o pescoço de Felipe, que cai no mar, afogando-se. Gisela prende a coleira do cão nas mãos, voltando para a casa, onde anuncia o abandono da ilha por Felipe e Mariana. “Kramer estacou um instante. Passou o braço à volta da cintura de Gisela. Seus lábios mexiam-se, ele rezava, seus olhos opacos ergueram-se para as invisíveis estrelas, seus lábios moveram-se e li neles: Obrigado, meu Deus, obrigado. Voltaram os dois para a casa em ruínas, cujo caminho Brutus farejava. Eu os contemplava e os contemplarei para sempre.”

A história contada pela morta jogava com diferentes deformidades num cenário paradisíaco. A trama do duplo assassinato, arquitetada por Felipe e Gisela falhou diante da providência divina. Entre as duas deformidades inocentes, Deus, escolhera para os seus desígnios a feminina, carregada com o duplo fardo da feiúra e do dinheiro.

 

FOME DE AMOR POR NELSON

Os personagens são os mesmos. Gisela teve o seu nome trocado para o germânico Ula, aparecendo como uma das opções para o título do filme (centrado no carisma emergente de Leila Diniz apareceu um A Ilha de Ula nua, que acabou não vingando). Mas em vez de se concentrar no paraíso litorâneo, inspirado na sua recente experiência norte-americana, Nelson resolveu alargar a geografia física dos personagens, transformando em vasos comunicantes o que em Guilherme Figueiredo era apenas uma referência ao passado. Dessa forma, os cenários nova-iorquinos, a ilha de Manhattan, e as ilhas do litoral de Angra dos Reis ganham equivalência, com o moderno/desenvolvido e o arcaico/subdesenvolvido se nivelando. A estratégia instala, logo nos primeiros minutos da película, a problemática da integração do país ao sistema capitalista dentro das novas normas erigidas após o golpe de 1964. O ponto de partida para a discussão de uma alegoria totalizante da história, como assinalou Ismail Xavier, aproxima Fome de amor de outras películas, sendo o exemplo mais próximo Terra em transe, do mesmo período, com o qual Nelson travará mais do que um diálogo.

A fita começa com o casal Felipe e Mariana em Nova York, mais precisamente no Central Park, onde num clima às portas do inverno ele expõe a sua exasperação pelo fracasso criativo, o temor de ser convocado para a guerra do Vietnã por ser um imigrante clandestino. A solução para o impasse pessoal e criativo seria o retorno ao Brasil, mais precisamente para o paraíso solar representado pela “sua” ilha. A dependência financeira de Felipe em relação a Mariana é exposta neste momento, trilho de Guilherme Figueiredo que seguirá por toda a narrativa. Enquanto o casal passeia por uma Nova York noturna, enquadrados permanentemente pela câmara na mão de Dib Lutfi, correm os letreiros pela tela. À abertura, que dura pouco menos de quatro minutos, seguir-se-ão mais cinco blocos, que podemos dividir da seguinte forma: a vida na ilha; chegada do casal desestabilizador Ula e Alfredo; o desfazer/refazer dos casais; a questão da revolução e, por último, a noite de orgia.

Guilherme Figueiredo nos diz muito pouco sobre Felipe – é um guapo rapaz; possui um barco, carro esporte e supostamente uma ilha; é pintor; fuma cachimbo e bebe gim. O Felipe de Nelson, pelo contrário, fala muito de si, revelando-se ainda um informante privilegiado sobre os outros personagens, embora a sua construção deles seja em geral falaciosa. Melhor: Felipe é um mentiroso patológico. Em Nova York exerceu sempre a profissão que era oferecida pelo mercado informal de mão-de-obra, a de garçom, nos mais diversos locais: restaurantes, clubes noturnos, hotéis, motéis, botequins. No Museum of Modern Art-MoMA teve o melhor “job” na América: “garçom-pintor-prato feito-PF-pop”. A sua atividade principal, contudo, é a revolução. Na cidade americana, “trabalhava” para Alfredo, “por isso não tenho nada”, confessa de forma altruísta, acrescentando para Mariana num plural suspeitoso: “Não precisamos de nada. É a nossa forma de viver até o dia da explosão, não importa aonde, lá estaremos com ele, no mesmo lugar, na mesma hora.” Ao qualificativo de pintor, Felipe acrescenta o de guerrilheiro profissional, um soldado da revolução contra o imperialismo. Por esse caminho, a sedução de Mariana tinha a dupla face do amor e da arregimentação para uma causa. Ela é caracterizada como uma moça rica, herdeira de uma fortuna em bens móveis e imóveis (uma carta interceptada por Felipe lista uma série de propriedades na Europa e nos Estados Unidos: um castelo em Southampton, casa de praia em San Francisco, ações da Bendix e da CBS, conta numerada na Suiça), dedicando-se, como pianista, à pesquisa de música eletrônica munida de microfones, fones de ouvido e gravadores. Se possui alguma feiura, ela se encontra na alienação. Felipe procederá, então, a uma educação sentimental e política da esposa, retirando-a da passividade de uma vanguarda, a musical, para outra ativa, a da revolução social. Ao contrário do que afirmou Bernardet, a personagem de Mariana está em plena abertura para o mundo durante o desenrolar da narrativa, opondo-se ao ensimesmamento dos sentidos denunciado pelo crítico. Depois do conhecimento de Alfredo, ela passa a ler Mao, questiona o regime brasileiro (“o nosso regime é igual ao de Batista?”; ou dito de outra forma, a ditadura brasileira devia ser combatida como Fidel Castro tinha feito em Cuba?), e se aproxima, canhestramente, do povo. Por outro lado, da mesma forma que Glauber emprega a caracterização física do personagem para trabalhar a noção de tipo, Nelson faz com que Felipe ande seminu na maior parte do filme, atendendo a uma marca já presente no livro, enquanto Mariana se mostra pudica de costumes e recatada de modos, em contraste com a expansiva e desenvolta Ula (repetindo um pouco o esquema glauberiano das oposições Sílvia-Sara de Terra em transe, a mulher carnal e a militante política). A segunda personagem feminina segue os traços gerais ditados pela novela. Ula é solar como Felipe; veste-se de uma forma próxima a ele, perto da nudez; lastima-se da sua posição de jovem esposa sem futuro, traída pelo destino. Casou por amor, “é claro”, com um homem mais velho e rico; viajou pelo mundo até que sobreveio o desastre. Depois, tudo “mixou” para ela. Isso aos 24 anos. O marido, Alfredo, excetuando-se as características físicas vindas da novela, é uma construção de Felipe e Ula. Para Felipe, ele “não tem nome nem pátria. Parece o Fantasma, aquele da história em quadrinhos. Ele vive escondido depois que sofreu um atentado na Bolívia ou em Cuba.” A salada pop para as características deste Che Guevara de comic book segue com a informação de ligações com “fabricantes de armas e com organizações clandestinas. Onde houver um povo oprimido, um povo com fome, pumba, ele está lá. Por isso ele me comove. Nós precisamos ajudá-lo”. Para Ula, Alfredo, “aos trinta anos [...] tinha cinco livros publicados sobre uma planta pequena que nasce no Nordeste. Como é que ela se chama? Ah! Não tem importância. Sua tese foi uma verdadeira revolução... Na botânica. Por isso é que nós viajamos muito. Fomos até o Vietnã... De passagem, é claro.” Depois do desastre, com a capacidade física reduzida, Alfredo se dedicou a estudar xadrez, pensando jogadas, analisando problemas nas mais diversas línguas como o russo, inglês, francês, italiano, polonês, espanhol, romeno... Graças às peças com alfinetes, ele pode se orientar pelo tabuleiro. Ele também se comunica com o mundo, como indicou Figueiredo, por um código tátil estabelecido com a esposa. Numa cena, Mariana escreve sobre uma folha de metal com letras invertidas, frase lida pelo cego como se fosse em Braille, com a passagem dos dedos sobre a superfície inversa. Nos momentos de exasperação tenta articular palavras, sendo o seu esforço acompanhado na trilha sonora por um moer de vidro. Um tapa de Ula o repõe ao estado normal, mostrando o seu domínio sobre o cego. Como declara Felipe na noite de orgia, Alfredo podia ser “qualquer coisa, qualquer coisa que a gente inventar. [...] Batman? Revolucionário? Professor? Um homem? Ele pode ter sido qualquer coisa, qualquer coisa, porque agora não é nada, nada. Ele é o cachorro, isso, cachorro existe...” Ou seja, Alfredo é posto na escala mais baixa, a da animalidade, tornando-se uma projeção dos três personagens, uma espécie de curinga com o qual o diretor Nelson Pereira pode sacar idéias contra alguém que não se oporá, já que impotente. Agente passivo, sem força de interlocução, Alfredo é o personagem que propicia o desenvolvimento de vários temas, a política, a revolução, o papel do intelectual, sem que para isso precise se manifestar, posto que transformado em lenda, a qual pode ser lida e interpretada da forma que melhor aprouver aos outros personagens.

 

NA ILHA

Felipe e Mariana mudam-se da ilha de Manhattan para uma ilha em Angra, passando a morar numa velha casa colonial. A esperança de retomada criativa no paraíso tropical não se completa. Após uma noite de amor sobre o leito com dossel, Mariana reconhece nos esboços de nus espalhados pela cama, todos em tons de sépia, terrosos, a mão do pintor Farnese (o artista estará presente em outro momento do filme com o uso de um objeto – um bebê de plástico numa moldura). Segue-se a explosão impotente de Felipe, abrindo-se a primeira crise conjugal. Para Mariana, que ele fosse ou não um bom pintor pouco importava. Mas Felipe tinha abandonado as gorjetas e esmolas em dólar para tornar-se um pintor na ilha. O fracasso artístico era uma vergonha semelhante a sua vida no exterior. A menção à vida nos Estados Unidos é a deixa para a inserção do segundo flashback (retorno na narrativa; o primeiro é o da abertura da película) sobre a vida no exterior. Felipe conheceu Mariana servindo-a no restaurante Pompeian. Ao responder com um “merde” ao pedido de café, ele é despedido. Logo depois irá procurá-la no seu apartamento, aproximação que é aceita.

O sol da ilha fere os olhos de Mariana. Ela não se sente atraída pelo mar como Felipe, preferindo ficar no casarão vestida com um robe de seda chinesa, óculos escuros, sentindo frio, tocando piano ou capturando sons da natureza ao gravador. Quando vai à praia, o faz com um maiô escuro inteiriço. A luz fria e mortiça do outono novaiorquino é substituída pela estourada e branca dos trópicos, lembrando o procedimento estilístico usado antes em Vidas secas. Um elemento perturbador é anunciado com a descoberta de uma moderna casa geodésica no alto do morro (um plano de conjunto da locação apresenta a casa geodésica acima da colonial, ambas visíveis para quem chega do mar; o efeito da descoberta na narrativa, porém, procura indicar um “segundo dia” na ilha, em que o primeiro foi a noite de amor, vindo em seguida o café da manhã que facilita a descoberta). Mariana sobe para fazer o reconhecimento do local, descobrindo uma casa vazia, de interior todo branco, com boiões de vidros pelas prateleiras sugerindo químicas, plantas em sacos plásticos, enfim, um misto de laboratório e habitação, confirmando algumas das informações de Ula sobre Alfredo: seria um pesquisador de botânica e, pelo estilo da casa, rico. Inquirido, Felipe nega conhecer o proprietário. Sempre viveu sozinho na ilha, nunca teve vizinhos. “Só sei que está na minha ilha”, completa. De forma a afastá-la da casa geodésica, o marido a convida para conhecer a cidade. A metonímia irônica permite mais um flashback já que a cidade não é Angra dos Reis, mas Nova York. Por meio de um diálogo em voz over (fala dos personagens ouvida, mas não dita de forma naturalista, dentro da tomada), Felipe e Mariana vão à agência nova-iorquina do Banco da Lavoura de Minas Gerais onde Mariana preenche um cheque, que seguirá, ao final, com a assinatura, já na ilha tropical, de um talão inteiro sobre o peito de Felipe. A ação que passa de Nova York para o litoral fluminense dentro da mesma idéia é um flashforward (cena antecipatória) da formalidade que se segue de abertura da conta conjunta na filial do mesmo banco em Angra, em que a certidão de casamento, o talão de cheques e o anúncio de que as próximas remessas virão sem problemas do exterior expõem, ou reforçam, com muita economia diegética, diversas informações para o espectador (o casamento, a riqueza de Mariana, o pleno domínio que Felipe tem sobre as finanças da esposa).

O início e o primeiro bloco de Fome de amor afirmam o estatuto deste filme como pertencente ao conjunto maior de películas que buscam uma forma intelectualizada de equacionamento da condição política pós-64. Como assinalou Ismail Xavier para Terra em transe, a proeminência do emprego da subjetiva indireta livre, indicada no ensaio de Pasolini, fazia com que as vozes dos personagens e do próprio diretor tivessem um caráter de “coral” (Pasolini) ou polissêmico, em que a exposição de visões de mundo do autor e dos personagens são análogos, apresentando-se em oposição ao ponto de vista do narrador onisciente ativo na narrativa cinematográfica clássica. Dentro das distinções estabelecidas por Pasolini, Fome de amor, assim como outras produções modernas, abandonava a “língua da prosa cinematográfica narrativa” (discurso direto) por uma “língua da poesia” (discurso indireto livre), em que os elementos de estilo abrem caminho para outras tradições e inovações poéticas, cujos códigos se constróem na subjetiva indireta livre. Um dos elementos estilísticos é o da fragmentação da narrativa pelo uso de flashbacks, flashforwards e inserts de um ou dois segundos. A relação nova-iorquina do casal sempre aparecerá em flashbacks; o uso da cena de antecipação (a assinatura no talão, por exemplo) ou da ilha (insert na noite de amor), cortam as seqüências como relâmpagos. O emprego de outras línguas sem tradução (a cena em inglês no café Pompeian) e, mais tarde, com o aparecimento do personagem Manfredo, do italiano, somados aos discursos revolucionários em castelhano, produzem uma geografia expandida em que a ilha, Angra ou Nova York são contíguas (ou a mesma coisa dentro da percepção existencial da cosmopolita Mariana), vivendo-se num mundo em que as fronteiras físicas estão desfeitas (o estágio capitalista imposto ao Brasil ou a política da revolução cubana são transnacionais). Os diálogos podem ser ditos de forma naturalista ou em voz over, recurso usado com os flashbacks de Nova York. Mas há também muito monólogo interior, principalmente quando há a necessidade de exposição dos discursos políticos. Esse conjunto de práticas, numa primeira visão, são desnorteantes para o ponto de apreensão do espectador na platéia, que fica um pouco mais aturdido (ou agredido) com a trilha sonora de música eletrônica criada por Guilherme Vaz. Ao contrário de Guilherme Figueiredo que conta sua história do ponto de vista de Mariana morta, afinando-se aos recursos romanescos tradicionais já na primeira metade do século XIX, até o momento o espectador passou 14 minutos e cerca de 70 planos sem saber muito bem qual ponto de vista deve acompanhar.

 

O CASAL DESESTABILIZADOR

Quem se apresenta primeiro é Ula. Após a abertura da conta bancária em Angra, no momento em que Felipe e Mariana sobem da praia para a casa colonial, ela é vista andando de um lado para outro no balcão. Felipe suspeita da presença de Ula, apressando-se para o encontro. Mas ela, agora no porão, prefere se dirigir primeiro à Mariana. Ao tomar conhecimento que estão casados, irrompe em gargalhadas de descrédito. Felipe desce as escadas, deparando-se com Ula explicando para Mariana que é a proprietária da casa, cedida ao pintor, já que mora, agora, na nova casa geodésica (há a exploração não só da posse de um bem que é concedido, quanto a superioridade espacial ditada pela altura, aliada à modernidade da casa geodésica em relação à colonial; como em Terra em transe, o embate entre os espaços joga o seu papel no filme de Nelson). Mariana é convidada a conhecer Alfredo. Ele está sentado de olhos vendados, jogando xadrez (Alfredo passa por duas formas para esconder a cegueira até a narrativa se estabilizar numa espécie de viseira de couro: primeiro ele é mostrado com uma faixa de seda em volta dos olhos; depois, de óculos escuros). Ele procede ao reconhecimento tátil do rosto de Mariana, que se sente como que tomada, no sentido religioso, pelo cego. Felipe anuncia o casamento e que morará “uns tempos” na casa colonial, informação que é passada a Alfredo em código por Ula. A resposta, também em código tátil, vem em castelhano: “pueden quedarse en la casa para siempre”.

A chegada dos verdadeiros proprietários abre uma nova crise entre o casal Mariana e Felipe. Ele é obrigado a confessar que não tem nada, é pobre, realmente. Ela vai além ao postar-se diante de um esboço de nu que não é o dela. Mariana não está preocupada com a condição de proprietário do marido. Ela é rica o suficiente para manter o casal. A sua questão é mais profunda. Diante do esboço, ela se pergunta sobre a verdade: “eu nunca soube, nunca sei quando você fala a verdade”. A sua vontade é abandonar a ilha. Felipe a agride, subjuga e estupra. Com a esposa dominada, ele pergunta se ela gostaria que ele fosse como Alfredo, ou seja, uma pessoa incapaz de mentir (porque não tem a plenitude dos sentidos, diga-se). Felipe conta para uma Mariana interessada a biografia revolucionária de Alfredo. Esclarecida a posição de Felipe, a sua pobreza, pois trabalha para Alfredo, para a revolução, Mariana iniciará a sua educação política, enquanto se aproxima cada vez mais do cego, em quem identifica uma verdade maior. A versão de Ula sobre esta verdade não é a mesma. Mas a soma das duas revoluções, a social e a acadêmica, faz com que os dois casais passem a usufruir de relações amistosas. Mariana aceita participar da vida de pesca e mar de Ula e Felipe, admirada pela dedicação que ela devota a Alfredo. Neste ponto da narrativa, um novo personagem ingressa na história. O dr. Manfredo (Manfredo Colasanti), apresentado por Ula como um “psiquiatra de cães”, traz um cão guia para Alfredo, sendo acompanhado até a ilha por duas moças de quem nunca saberemos os nomes: uma loira e outra morena (as atrizes Olga Danich e Lia Rossi).

Com o pastor alemão, Alfredo passa a ter maior mobilidade. Vai à pesca, sendo ajudado por Felipe que coloca peixes na isca. Ula detesta o cachorro, que passa a dividir a cama do casal. Com o arpão de pesca submarina de Felipe, ameaça matar o cachorro, motivando a vontade de falar de Alfredo (acompanhado na trilha sonora pelo moer de vidro), encerrada por um tapa de Ula. A aproximação constrói novas relações. Ula tenta seduzir Mariana, que recua diante do avanço sexual. O uso de Ula como modelo vivo, situação sugerida logo no início da película, com a exibição dos esboços sobre a cama na primeira noite na ilha, acaba por expor a ligação amorosa. Ao contrário de Figueiredo, quem seduz Alfredo é Mariana, numa espécie de alternância com as cenas de Felipe pintando Ula nua (a primeira, sexualmente ativa e, a segunda, passiva). A reconfiguração dos relacionamentos (a “troca de casais” como foi vista pelos censores) aproxima Mariana daquele que encarna a revolução. Felipe seguindo a sina do personagem amoral, afunda-se no crime e no deboche, situação prefigurada desde o seu desmascaramento.

A “história de um crime” escrita por Guilherme Figueiredo aproxima Felipe e Ula. Durante um passeio a Angra dos Reis, sabendo-se vigiados pela interceptação de uma carta dirigida a Mariana, eles jogam boliche, sinuca e se embebedam, enquanto comentam o destino a ser dado aos dois esposos. O pacto dos amantes nunca será levado a cabo, permanecendo no plano do desejo ou do delírio alcoólico. Ula, embora mulher, assume o crime a ser perpetrado. Ela gostaria de abandonar o marido à própria sorte numa ilha ou terminar com a vida de Mariana a pedradas, dilapidando-a como a uma Madalena bíblica. Felipe desejaria liquidar a esposa a golpes de remo, adotando um gesto antecipatório explorado cinco anos depois por Nelson na morte do francês Jean pelos Tupinambás em Como era gostoso o meu francês. Entretanto, como acusa Ula, ele é um fraco: “Você não nasceu para matar. Prefere roubar”. É desta história de um “cretinismo inacreditável”, como declarou, que o diretor procurou dar um novo rumo, investindo no foco político. Neste momento, estamos perto da metade da narrativa. Todos os personagens foram apresentados. O problema da política revolucionária, introduzido por Felipe, pode ser desenvolvido por Mariana.

 

MAO E GUEVARA NO LITORAL FLUMINENSE

No único e melhor estudo sobre Fome de amor escrito até o momento, Elizabeth Merena e João Luiz Vieira iniciam a análise sob o ângulo do desespero que imperou no Brasil após 1968, devido à repressão política e censura governamental (Johnson e Stam, 1982, p.162-8). Os intelectuais, como Alfredo, estariam “isolados, exilados, politicamente derrotados. [...] Não existe o ponto de vista de Alfredo. Que melhor metáfora sobre a situação revolucionária do que esta falta de expressão? Ele foi forçado ao silêncio, o silêncio das esquerdas num tempo de repressão política.” Após esta frase, é preciso parar e pensar um pouco. Uma película que fala abertamente das condições para a eclosão de uma guerrilha rural pode ser enquadrada dentro do raciocínio dos dois autores? Uma história que está discutindo, para o público que se verá em pouco tempo diante do golpe dentro do golpe representado pelo AI-5 de dezembro de 1968, qual é o melhor caminho para a revolução popular contra o governo militar pode ser classificado como um “poderoso pensamento pessimista em forma cinematográfica sobre o Brasil de 1968”? (No diálogo em voz over entre Mariana e Felipe durante a visita ao MoMA, ele sugere euforicamente que, em vez de automóveis, podiam levar a guerra ao Brasil: “Civil war! Guerilla! Guerrilla!”)

Assim como outros intelectuais cinemanovistas, Nelson Pereira viveu os anos após o golpe militar num vórtice político. Vidas secas, ao lado de Deus e o diabo na terra do sol, participava de uma discussão sobre os destinos nacionais que fora bloqueada em abril de 1964. A explosão nas carreiras de Nelson e Glauber em decorrência dos seus filmes, com o reconhecimento nacional e internacional do Cinema Novo, desencadeava situações ambivalentes, já que era preciso avançar, mas para onde? El Justicero, filmado em 1966 e lançado em outubro de 1967, era inconseqüente na sua gratuidade “zona sul carioca” ao retomar em ritmo de chanchada a crítica aos militares. Glauber, por outro lado, procedeu a uma revisão alegórica e barroca das condições em que ocorreu o golpe militar com Terra em transe. O irônico na carreira de ambos foi a apreensão de El Justicero e a livre circulação do segundo, dando razão aos críticos do regime, como o cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), que sempre apontaram para a falta de humor e indigência cultural dos militares no poder. Em 1966-67 Nelson registra em sua biofilmografia um documentário para a Aliança para o Progresso, programa assistencial do governo norte-americano, e uma viagem aos Estados Unidos a convite do Departamento de Estado. Glauber assume cada vez mais o programa político terceiromundiasta e guevarista, que acabará no auto-exílio, num périplo pela Espanha, França, Cuba, Itália e Congo, locais onde filmou Der Leone have sept cabezas, Cabeças cortadas, Claro e outros. Para Nelson, Fome de amor foi a oportunidade de desfazer o engano político de El Justicero, além de superar as suspeitas, expressas por alguns críticos maliciosos, de uma adesão ao “imperialismo ianque”.

Qual era a questão política candente no momento do início das filmagens? Não se tratava mais de empreender, como o tinham feito antes Paulo César Saraceni e Glauber Rocha, à avaliação dos malefícios do populismo, das apostas políticas derrotadas em que embarcaram os intelectuais antes de 1964. Era necessário agora dar respostas para o encaminhamento da luta contra o regime militar vitorioso. Em julho-agosto de 1967, a questão da luta armada estava em evidência com a presença de Ernesto “Che” Guevara na Bolívia e a inauguração da I Conferência Latino-Americana de Solidariedade-Olas, aberta a 31 de julho, em Havana. Segundo Jacob Gorender, o foquismo, isto é, a existência de uma vanguarda revolucionária armada, de um pequeno grupo de guerrilheiros conduzindo a luta do campo para a cidade, como ocorrera na Revolução Cubana a partir de Sierra Maestra, vinha sendo divulgada desde 1962 pelos dirigentes cubanos, recebendo, no Brasil, um impulso com a tradução de textos de Lin-Biao (1966) e Regis Debray (1967) (Gorender, 1987, p.79). A política do Partido Comunista Brasileiro-PCB, dominada pelo prestismo, posicionava-se contra a luta armada, advogando a derrota do regime por meio de alianças com os partidos de oposição, apoio à burguesia nacional e a via pacífica de tomada do poder. As correntes de oposição ao Comitê Central, como a do dirigente do Comitê Estadual de São Paulo, Carlos Marighela, embora vitoriosas nas votações internas, foram alijadas do poder pelos prestistas, abrindo caminho para as cisões posteriores do PCB em siglas refundadoras do comunismo como o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.

Os partidos comunistas que recusaram a luta armada foram antecipadamente excluídos da reunião da Olas. Os PCs venezuelano, argentino e brasileiro por seguirem a linha de Moscou, automaticamente atacavam a Revolução Cubana. Carlos Marighela viajou clandestinamente a Cuba, onde foi aceito como representante da esquerda brasileira, motivo para a sua expulsão do PCB (o cabo Anselmo, vindo de Praga, representou o Movimento Revolucionário Nacionalista do Brasil, de linha brizolista). A Olas encerrou os seus trabalhos a 10 de agosto. No terceiro item dos estatutos proclamava-se “apoiar, por todos os meios a seu alcance, especialmente os países da América Latina em sua luta contra o imperialismo e o colonialismo, especialmente os que se encontram em luta armada.” No discurso de encerramento, Fidel Castro recusou a via pacífica para a tomada do poder, defendendo a luta armada “a longo prazo” como a solução. O Brasil integrou a Comissão Permanente, que deveria se reunir novamente em 1969. Marighela só retornou ao Brasil no final do ano para dirigir o grupo guerrilheiro da Aliança Libertadora Nacional.

Nelson era militante do PCB pelo menos desde 1945. Seu primeiro filme, o documentário Juventude, foi uma tarefa partidária. No período de crise dos partidos comunistas, aberto com a leitura do relatório de Nikita Kruschev sobre os crimes de Stalin, ele ainda viajou a Paris para participar do Encontro Internacional dos Criadores de Filmes sob o patrocínio do PCF. Depois de 1956, afastou-se do PCB, deixando a Comissão dos Intelectuais, permanecendo na posição de simpatizante que, com o tempo, estabilizou-se num difuso esquerdismo nacionalista.

Fome de amor estabeleceu como um dos seus pilares a discussão do foquismo, centrando no personagem de Mariana os principais argumentos. Na seqüência seguinte à desestabilização dos casais, Mariana aparece na praia lendo o trecho final de um ensaio de Mao Tsé-Tung constante de uma coletânea de bolso editada em inglês:

“Discover the truth through practice, and again through practice verify and develop the truth. Start from perceptual knowledge and actively develop it into rational knowledge; then start from rational knowledge and actively guide revolutionary practice is so to remove both the subjective and objetive world. Practice, knowledge, more practice, more knowledge, and more knowledge. This form repeats itself in endless cycles, and with each cycle into infinity..."[xiv]

O ensaio de Mao é de 1937, abordando a discussão filosófica sobre o conhecimento (científico e político) e sua capacidade de mudar o mundo (subjetivo e objetivo) e a sociedade sob a orientação do proletariado e seu partido político. A leitura da coletânea de Mao tinha aparecido antes, no momento em que o dr. Manfredo trouxe o cão guia para Alfredo, mas sem destaque. Agora, para o espectador não só aparecia um pormenor visual do livro, quando Felipe se aproxima e olha a capa do que ela está lendo, demonstrando um certo desinteresse, como se associava imagem e voz over. O livro de Mao fará companhia a Mariana em outra situação, quando ela leva Alfredo a passeio na praia, havendo uma segunda citação do mesmo ensaio em outra circunstância.

O fragmento filosófico é de resultado incompreensível, mesmo para a parcela do público versada em inglês, mas o efeito é igual a aparição, durante a Revolução Cultural Chinesa, das centenas de jovens acenando para a câmara o famoso livro vermelho das citações do presidente Mao. O significado é claro: Mariana aderiu ao maoísmo, ao radicalismo da esquerda comunista. Essa profissão de fé ganhará relevo duas seqüências depois, quando Mariana e Felipe saem de barco para conhecer a região. Novamente pela utilização da voz over, ela diz: “Identification. Tenho que ficar. Quero voltar à minha ilha, junto do meu povo, explorado, sugado, defuntos dilacerados na fome. Isso, vejo crianças afogadas no próprio excremento, É preciso renovar a vontade de vingança.” A frase carregada de ambigüidade (ficar/voltar à ilha), apresenta-se como um momento de transe glauberiano, ligando o intelectual a um povo abstrato. A imagem que começara num movimento sobre o eixo do tripé abarcando a baía e suas ilhas, termina enquadrando Mariana numa fala de combate: “Essa gente, essas montanhas... lugar ideal para uma guerrilha.” Felipe, guia no percurso de reconhecimento, aceita a sugestão amparando-se na história do Brasil (no período colonial, os Tupinambás dominavam este tipo de luta); depois, parte para um mergulho.[xv] Mariana, pelo contrário, em pleno delírio, declama mais um trecho do ensaio de Mao, antes de cair em si com a clássica pergunta pós-64: “O povo? Onde está o povo?”[xvi] A resposta se encontra num travelling tomado do mar sobre um grupo de crianças dançando e acenando de um cais derruído para uma Mariana que responde, acenando timidamente de volta. A cena tem um caráter patético e desolador, destacando mais uma vez a distância entre o intelectual e o povo (agora infantilizado), tendo como fundo um casarão em ruínas. A perspectiva, como em Terra em transe, é disfórica.

Para o aparecimento da Revolução Cubana e do seu representante, o Che, Nelson vai operar também com o diálogo e a voz over, porém com menos evidência visual. Não teremos um livro à mão para destacar o nome e o rosto do autor. Ouviremos apenas o discurso, embora não tenha sido possível identificar claramente a sua origem. A segunda referência à ilha cubana surge quando Mariana, após aderir ao discurso revolucionário ditado por Felipe e Ula, volta-se para o marido e pergunta: “Você acha que o nosso governo é igual ao de Batista?”[xvii] Felipe, adormecido, ou desinteressado, não responde. Para o público dos anos de ditadura militar ela deveria aparecer como afirmativa. Sim, vivíamos num regime ditatorial, que aguardava o aparecimento de um grupo revolucionário armado para ver-se derrotado. Na noite de orgia, que fecha o filme, Mariana, de novo em pleno transe revolucionário, fará um longo discurso no qual identificamos como pertencente ao Che somente a multiplicação dos Vietnãs pelo mundo. Por meio da voz over ela diz: “El camino del Viet-Nan es nuestro sendero... de la creación del segundo o tercer Viet-Nan del mundo. El elemento fundamental de la estrategia revolucionaria es la liberación real de los pueblos través de la lucha armada continental...”[xviii] Outra frase que é repetida duas vezes, sendo, inclusive, a frase final de Fome de amor, é “el deber de todo revolucionario es hacer la revolución”.[xix] Continuando Mariana proclama:

“esta revolución la hacen los obreros, las grandes masas de explotados. Los intelectuales son parte del pueblo que les han dado [...] de alcanzar un nivel intelectual superior [...] es un privilegio e sobretodo una responsabilidad [...] de los destinos revolucionarios de nuestra America [...] destino revolucionario, como tambiém efectivar que son com las circunstancias qualquiera en la lucha por la liberación de los pueblos latinoamericanos [...] contemporaneos de la mayor epopeya que [...]. Yo estoy viendo estas tierras mestizas que son nuestra patria mayor nadie que sea solo un testigo desta hazaña que non merecer un lugar por humilde que sea en las fileras de los que construyen el futuro.”[xx]

O discurso apócrifo é um claro chamamento à luta armada, único caminho para a resolução dos problemas políticos colocados pela ditadura. Por outro lado, os intelectuais estão em pé de igualdade com a grande massa de explorados, sendo partícipes e responsáveis pela criação de dois, três, muitos Vietnãs. A questão é: podemos acreditar neste discurso?

 

A NOITE DE ORGIA

O trabalho de Nelson na construção de um discurso revolucionário por Mariana assemelha-se ao de Penélope aguardando Ulisses. O diretor vai constantemente minando a nossa crença naquilo que é dito e realizado pelos personagens principais (Felipe e Mariana), até o aniquilamento completo das características originais. Isso ocorre menos no desenvolvimento da trama paralela, tirada do livro de Figueiredo, envolvendo a rapina da fortuna da esposa e a perspectiva de seu assassinato, e mais pela desconstrução dos próprios personagens. Apresentado como um artista em crise, um soldado da revolução antiimperialista Nelson, aos poucos, despe Felipe dos atributos nobres para deixá-lo apenas com a nudez física e alegórica de um vil oportunista. Descoberta as primeiras mentiras – nem era um bom pintor, nem o dono da ilha – o diretor desfaz também a ilusão de que seria um revolucionário. Utilizando-se do flashback, ele nos é mostrado dividindo um quarto em Nova York com outro sul-americano. É a vez dele dormir na única cama existente e, para ocupá-la, não hesita em dar um pontapé em Felipe: “Afuera, general! Coño! It’s my time.” O qualificativo irônico de general, o xingamento – coño - e a posse imediata da cama para o seu turno de sono, devolvem o brasileiro para a sua condição de imigrante clandestino com veleidades de revolucionário de opereta. Quando o dr. Manfredo chega à ilha, ele é logo taxado por Felipe como o “Comandante Manfredo. Mercenário popular. Exército FLN”. O “Comandante Manfredo”, cercado por duas moças de biquíni que só pensam em se divertir, é uma expressão mais pálida das definições dadas por Felipe a Alfredo, colocado entre o Fantasma, os fabricantes de armas e as organizações revolucionárias clandestinas.

O discurso de Felipe, antes de ser político, inspira-se na vingança. A vida de trabalhador ilegal em Nova York é execrada por ele, numa postura de elite urbana obrigada a ganhar dinheiro com o trabalho manual. A fala ressentida diz:

“Tudo para eles é melhor. Por isso é maior o nosso ódio. Qualquer latino-americano miserável, analfabeto, sujo, chega lá e pronto. Trabalha. Trabalha e ganha. Dá para comer o que nunca comeu na vida inteira. Conhece o conforto. Saí do esgoto, da favela. Pode viver na maior espelunca de Nova York, não tem importância, é luxo para ele. Cresce o ódio por tudo isso.”

Ou seja, os Estados Unidos deviam ser condenados menos pela exploração capitalista da mão-de-obra barata estrangeira, e mais por dar trabalho ao imigrante, posição indigna por que passou Felipe como filho da elite branca brasileira. O ódio ao trabalho é apoiado por Mariana, uma moça rica, com uma frase: “a revolução é justa porque nasce do ódio”. À emotiva adesão da esposa, Felipe retruca: “Queremos destrui-los. Só isso. Queremos vingar a nossa miséria, a ignorância...” Antes de perguntar onde está o povo, Mariana insistiu na renovação da “vontade de vingança”. Os propósitos de ódio e vingança contra aqueles que o obrigaram a trabalhos considerados infames, ou contra os mais fortes, como pensa Mariana (o capitalismo, os Estados Unidos), configuram as trajetórias individuais dos personagens principais de Fome de amor, aproximando a película do motor principal de um clássico romântico como O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas (Candido, 1978, p.13). Ambos são personagens eminentemente românticos, e esse é o maior débito de Nelson para com o livro de Guilherme Figueiredo, em que a história folhetinesca de assassinato para a posse da fortuna da esposa enovela-se com uma não menos folhetinesca vontade de vingança contra o imperialismo, cujo ápice acontecerá na noite de orgia. Direcionando a perspectiva política por este viés, Nelson recusa o trabalho político de uma vanguarda revolucionária entre o proletariado, substituindo-a pela idéia da vingança individual contra o regime. Ao absorver as lições estilísticas de Glauber Rocha, Nelson deixou de lado o engajamento político da alegoria glauberiana: a luta popular contra o subdesenvolvimento, iniciada em Barravento, um filme, aliás, montado por Nelson Pereira dos Santos.

Além da desconstrução do personagem, o diretor Nelson Pereira vai lançar mão da formulação da voz interior para negar a política revolucionária do foquismo. Inspirando-se no procedimento glauberiano, ela ocorre dentro do flashback do conhecimento do casal em Nova York. Como vimos, Felipe foi expulso da cama pelo outro imigrante. Enquanto na trilha sonora ouvimos a sua voz, situada fisicamente em Angra dos Reis, imprecar contra as oportunidades de trabalho na América (“Qualquer latino-americano miserável, analfabeto, sujo, chega lá e pronto. Trabalha. Trabalha e ganha” etc), Felipe, na sua lembrança do passado, está em Nova York, sentado no escritório da Varig. Ele reconhece Mariana, vestida toda de branco, como no restaurante Pompeian, que entra, pega um envelope e sai. Felipe a segue pelas ruas da cidade. A voz over continua a declamar o desejo de ódio contra a injustiça, agora acompanhada pelo eco de Mariana, contudo, neste momento, uma outra voz se interpõe contra o discurso de ódio revolucionário. A voz feminina não pertence a Mariana (porque é dirigida a ela), nem é a de Ula (personagem ausente, ainda não introduzida na trama), situando-se como uma cunha ao voluntarismo. Esta voz anônima declara: “Não adianta Mariana, esses progressos, nem a amizade hemisférica. Saímos do inferno. Eles estão no paraíso puritano redimidos do maior pecado: a pobreza.” Quem está falando? Certamente o próprio diretor Nelson Pereira dos Santos. A qual “amizade hemisférica” inútil ele se refere? Certamente a propugnada pela Olas, embora também seja contra “esses progressos” (o capitalismo americano). “Saímos do inferno”, a miséria brasileira, retornando os personagens a Nova York, cidade definida como pertencente a um “paraíso puritano” redimido da pobreza. A voz não se apega nem ao capitalismo, nem à pobreza, mas recusa a proposta revolucionária do foquismo da Olas. Somada ao conjunto da película, a impossibilidade da luta armada encaminhada pela política cubana para a América Latina é reforçada, principalmente depois do assassinato de Che Guevara, quando se liqüidou a guerrilha boliviana. Com isso se destaca a ação vingativa contra o imperialismo empreendida pelos dois personagens românticos, cuja linha política se aproxima, em teoria, da adotada pelo PCB (aliança de classes).

Retomando o último bloco. Sexo, erotismo e orgias têm uma larga tradição no cinema, antigo e moderno, bastando lembrar a tumultuada passagem de Erich von Stroheim pelo uso desses temas (o amoral conde Sergius Razinkim em Foolish wives, por exemplo). Fome de amor retoma o assunto de uma forma pudica até, viés bem apropriado para um ex-comunista, numa chave que a crítica não deixou de imputar ao Fellini de A Doce vida (a decadência do intelectual até o deboche ou a autoflagelação, antes reservada aos personagens amorais e negativos, é a novidade que diferencia Fellini dos seus antecessores). Uma influência mais forte estava, porém, em Terra em transe, quando Paulo Martins abandona a província de Alecrim, retornando ao “inferno” de Eldorado, para as festas regadas a sexo promovidas pelo industrial Julio Fuentes. É preciso lembrar também que a decadência moral aliada ao desregramento sexual faz parte do conjunto de filmes de crítica ao pós-64 como O Desafio (Nelson, o intelectual “passadista” que oferece a esposa a Marcelo, o jovem intelectual em crise pessoal e política) e O Bravo guerreiro (o deputado Horta, na fase de derrocada das lutas políticas, envolvendo-se com uma amante ocasional, oferecida nos conchavos com os deputados conservadores).

O bloco final de 18 minutos começa com a reunião de todos os personagens no salão da casa colonial para uma festa conduzida por Manfredo em comemoração às “vitórias universitárias” de Alfredo (vitórias “revolucionárias”, grita Ula, por sua vez). Quando Manfredo oferece bebida a Mariana, ela pede para ser retirada da ilha. Manfredo desconsidera o pedido, insistindo com suas meninas por mais animação. Ula liga todos os gravadores de Mariana, iniciando uma dança mecânica ao som da música eletrônica, no que é seguida por Felipe, Manfredo e as duas moças, que tinham trazido um disco de batuque que se mistura ao som de vanguarda. Um clima de paroxismo se anuncia quando a moça loira chama todos para um baile à fantasia. No porão do casarão, fantasias são distribuídas por Ula, enquanto joga para o ar plumas de aves, dando ao local um aspecto feérico de luta de travesseiros, como tinha filmado Jean Vigo em Zéro de conduite. Na distribuição das fantasias, Felipe recebe a de bobo da corte, Mariana uma vestimenta de rainha elizabetana, Manfredo veste uma capa, a moça morena, depois de adotar um cocar (“galinha 67”, grita Ula), enverga uma espécie de libré; já a moça loira, também de capa e carregando um dos objetos criados por Farnese (um bebê de plástico dentro de uma moldura), define-se como esposa da “burguesia imperial progressista”. Ula enrola-se num lençol. Cantando a música “Hava Naguila”, declara-se ora da Ku-Klux-Klan, ora noiva de Gamal Abdel Nasser, que vinha de ser derrotado na “Guerra dos seis dias” contra Israel. Nesta altura, todos estão no pátio do casarão, provido de iluminação por centenas de velas espalhadas ao longo dos parapeitos e escadarias.

Ula destaca-se tanto por comandar todo o espetáculo, quanto por subir na base do pedestal da escadaria, apresentando-se como a estátua nua de carne ilustrativa da “Verdade”. A câmara na mão comandada por Dib Lutfi, fazendo desfilar no mesmo palco a embriaguez dos principais envolvidos, assim como a ausência de Alfredo, largado a um canto com o cão guia, fornece à seqüência uma qualidade de vertigem até que acontece a explosão dos ressentimentos. Manfredo força Mariana a se embebedar. Ela revela a intenção sinistra dos assassinos Ula e Felipe, contra si e até o cão pastor, o que leva Manfredo a declarar como ótima a idéia de morte do cachorro. Com certa graça, o “psiquiatra de cães” explica que “detesto i cani, detesto”. O paroxismo acontece com Ula fantasiando Alfredo de barba e casquete escuro com uma estrela na frente. Ele, que até aquele momento estivera à margem dos acontecimentos, é exibido por Ula como o “Papai Noel das Américas Latinas”, exatamente como desejava Mariana, ela afirma. Felipe tenta brecar Ula, mas ela segue nas acusações: “chega desta palhaçada toda... Será possível que esta mulher ainda não percebeu que você inventou toda esta história para tirar o dinheiro dela, que isto tudo é mentira?”. Sabedora das relações amorosas entre Mariana e Alfredo, Ula explora a ansiedade carnal dela, chamando-a de “gaúcha”, numa alusão ao seu comando na relação, o contrário do esperado numa mulher. Alfredo fantasiado segura o cão; Felipe esgotado e impotente está sentado na beira do platô que dá para a baía; Manfredo bêbado, como as moças, declara o seu nível de animalidade ao dizer que “siamo tutti cani”. Com esta expressão, cantada em uníssono pelas duas moças, a manhã surge na baía. Ula tira o cachorro das mãos de Alfredo. Sentindo-se desprotegido, ele tenta falar, no que é impedido por um soco dado por Mariana. Ambos abandonam o pátio do casarão, seguidos pelo refrão “siamo tutti cani, cani, cani, cani”.

A seqüência final coloca Mariana e Alfredo vagando por uma ilha. Os outros personagens, acordados por Ula, descem até a praia. Dali eles riem da situação dos dois “revolucionários” na ilhota. Mariana, em plena euforia, declama resoluções da Olas pedindo uma guerra de libertação. Na trilha sonora, ouvimos os refrões de uma música religiosa popular do interior de Goiás (“Senhora da Abadia”), misturada com a música eletrônica, vozes e gargalhadas dos que assistem da praia (a música tem um caráter mal resolvido na trama, pois as seções de vanguarda, que podemos interpretar como negativas, estão ligadas a Mariana ou às marcas do subdesenvolvimento, e a popular aos personagens amorais). No discurso que já tivemos ocasião de destacar acima, que começa com a reafirmação de que “el camino del Viet-Nan es nuestro sendero de la creación del segundo o tercer Viet-Nan del mundo”, três resoluções da Olas podem ser identificadas na fala de Mariana: 1) constitui um direito e um dever dos povos da América Latina fazer a revolução; 2) a luta revolucionária armada constitui a linha fundamental da revolução na América Latina; 3) os exércitos de libertação constituem o método mais eficaz para iniciar e desenvolver a luta revolucionária.

O chamado à guerrilha seria crível se não fosse declarado por dois personagens negativos – o “Papai Noel das Américas Latinas” e a “Rainha Louca da Revolução Brasileira” –, vagando solitários por uma ilha (perto/distante? Cuba/Brasil?), sem que uma massa revolucionária acompanhe as suas palavras de ordem.

 

CONCLUSÃO

Fome de amor faz parte do segundo momento de debates políticos, descolando-se de seus predecessores como O Desafio e Terra em transe, reflexões amargas sob o choque decorrente do golpe militar de 1964. Sob o influxo geral da morte de Che Guevara, Nelson recusa a estratégia política do foquismo, ao contrário de Luís Sérgio Person. No seu episódio “A Procissão dos mortos” para Trilogia do terror, Person contrapõe a morte do pai (física e alegórica) pelo grupo de guerrilheiros à adesão à luta armada. O pai é morto a coronhadas por um fuzil belga FAL, do mesmo tipo levado por Lamarca do quartel de Quitaúna, sendo agredido justamente no ponto onde está a estrela hippie da paz. Livre da figura paterna, o filho se dá ao direito de manejar o fuzil. O tiroteio do menino, em tomada frontal, contra os espectadores, faz parte da agressividade da época, uma manifestação de recusa da posição passiva das classes médias aninhadas confortavelmente nas suas cadeiras.

As leituras que os cineastas faziam da produção cinematográfica corrente acerta os relógios deste conjunto de narrativas sobre o pós-64 como um jogo de espelhos em que há tanto de reflexo como de refração. Se podemos enfileirar as influências de Terra em transe ou O Desafio sobre Fome de amor, ou de Terra em transe sobre Trilogia do terror, ou a negação do Cinema Novo pelo Cinema Marginal, também podemos observar recusas de propostas anteriores. A corrida do vaqueiro Manuel e de Rosa em direção ao mar em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, num sentimento de esperança e de derrocada das condições subdesenvolvidas da nação expostas durante o filme, são, na película de Nelson, apresentadas de forma negativa. A saída dos revolucionários Alfredo e Mariana do palco principal da ação em direção ao mar e à ilha não faz dos elementos da natureza, ou da política, ou da distância percorrida, dados positivos dentro do sistema alegórico, mas fonte para uma moldura irreal, quando não carregada de ironia, observada pelos outros personagens distanciados e em oposição à utopia revolucionária. Há uma assistência, agora, para a derrota de um projeto de libertação, em oposição à caminhada solitária de Manuel e Rosa, mesmo que ela seja identificada como amoral e apolítica. Há também a recusa da ambigüidade do projeto glauberiano contido em Deus e o diabo, da denúncia já antecipada, aliás, da falência do foquismo como política revolucionária dos grupos de esquerda, cuja fonte está menos na morte de Paulo Martins nas areias de Eldorado, como quis a crítica da época ao relacionar Terra em transe e Fome de amor, e mais na impossibilidade de florescimento da alegoria libertária terceiromundista do vaqueiro Manuel. A marca dominante em Fome de amor indica o desencanto sobre os caminhos revolucionários violentos, a guerrilha rural ou urbana.

O encaminhamento anticapitalista da produção de Fome de amor exprimia tanto um estilo pessoal e político de concepção de cinema de Nelson Pereira dos Santos, quanto um desejo geral de recusa de um sistema racional que vinha sendo imposto com mais força a partir da criação do INC. O artesanato da “política dos autores” cinemanovistas e do Cinema Marginal era uma via de negação do processo de industrialização gerado pelo período do “milagre econômico”, numa aposta que resultou no esvaziamento das salas dos cinemas. Como escreveu Arthur Autran, alguns cineastas e ideólogos cinemanovistas como Glauber Rocha, Maurice Capovilla e Gustavo Dahl, nas primeiras horas do movimento preconizaram uma política autoral contrapondo-se à indústria cinematográfica, porque nela se encontrava a “mentira e a exploração” capitalistas, como Glauber tinha declarado no manifesto “Estética da fome”, de 1965 (Sá Neto, 2004, p.29-34).

Nelson contribuiu também para o aprofundamento da utilização de recursos estilísticos como a ausência ou limitação do roteiro a linhas indicativas de ação, deixando para o som-guia e a mesa de montagem a concretização das “deixas” dadas no set de filmagem. A liberdade de filmagem e a improvisação de Fome de amor abriram caminho para experiências radicais como Câncer (1968), de Glauber Rocha, até o seu esgotamento e falência, cujo marco podemos sentir em A Queda (1978), de Ruy Guerra, já no período de supremacia da Embrafilme.

O processo de alegorização do Cinema Novo, sensível em O Desafio, aguçado em Terra em transe, apenas para ficarmos no núcleo de películas que estamos enfocando, foi extremamente útil para derrotar o cerceamento da expressão política pelo Estado autoritário. Ao lançarem mão de diversas ações, algumas claras outras mais obscuras, do despistamento e da ambigüidade para a construção de suas narrativas, diretores como Paulo César Saraceni, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Luís Sérgio Person buscaram transmitir o seu pensamento sobre a situação política, dando um testemunho sobre o período vivido. O fechamento político depois do Ato Institucional n.5 (dezembro de 1968) empurrou a sistemática por caminhos cada vez mais cerrados (Jardim de guerra, Pindorama e Os Deuses e os mortos, para citar alguns exemplos pouco explorados), aprofundando o fosso entre o Cinema Novo e o público até que uma nova onda de reaproximação, conduzida pelos cineastas do próprio Cinema Novo no poder central, estabelecesse um retorno às formas clássicas de construção, destronando o cinema altamente intelectualizado antes vigente. No momento atual assistimos à supremacia do roteiro e das fórmulas hollywoodianas/televisivas, mas sem a vitória do capitalismo na “indústria” cinematográfica.

Fome de amor é uma homenagem textual e uma recusa ideológica do cinema de Glauber Rocha. Há um uso bem sucedido das estruturas alegóricas, fundindo a proposta política com um fraseado estilístico moderno, contudo impondo um viés diferenciado sobre os caminhos do intelectual diante da alegoria maior da nação. Trata-se da configuração de um Nelson Pereira dos Santos como um homem do seu tempo e de permanência para além dele.

 

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Site www.mnemocine.com.br/bancodeteses.

Site www.vale.edu/amstud/inforev/practice.html.

Site www.filosofia.org/hem/dep/cri/ri12014.html.

Vídeo Business, 1(8), mar.1988.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1993.

 

 



 

 


[i].Citando: “[...] quando Glauber fez Terra em Transe, inseriu seu trabalho num conjunto de filmes muito particulares que optavam pela abordagem direta da questão do intelectual face ao golpe e à revolução”.

[ii].Embora o livro de Xavier aparecesse somente em 1993, a sua versão acadêmica datava de dez anos antes. Outros trabalhos universitários sobre Terra em transe incluem Rogério Medeiros, Mito e realidade social no cinema de Glauber Rocha (1981); Alexandre Agabiti Fernandez, Delírios do obscurantismo: diálogos com Terra em transe (1991); Júlio César Lobo, Muito romântico ou Poesia e política no filme Terra em transe (1993); José Gatti, Dialogism and syncretism in the films of Glauber Rocha (1995); Rubens Machado Júnior, Estudo sobre a organização do espaço em Terra em transe (1997) e Noel dos Santos Carvalho, Cinema Novo: imagens do populismo (1999). Sobre O Desafio temos o trabalho de Noel Carvalho, que também escreveu sobre O Bravo guerreiro, acrescentando-se o de Mônica Brincalempe Campos, O Desafio e as vicissitudes político-culturais das esquerdas no pós-64 (1995) e Leandro Rocha Saraiva, Antes da revolução e O Desafio: crise do intelectual e discurso livre indireto (2002). O único trabalho acadêmico sobre Fome de amor é o de Regina Glória Nunes Andrade, A Cena iluminada (1988) que analisa a personagem feminina em dez filmes do Cinema Novo. Fonte: www.mnemocine.com.br/bancodeteses.

[iii].A série da Manchete contém dez títulos do diretor produzidos até 1980, excetuando-se Boca de ouro, Mandacaru vermelho e Quem é Beta?

[iv].Tomando o subtítulo, “Você nunca tomou banho de sol inteiramente nua?”, e um “liberado sem cortes” na mesma ordem de idéias, o anúncio de lançamento veiculado na imprensa carioca trabalhava a imaginação do espectador contra a questão política e a favor de um voyeurismo erótico.

[v].A ausência de uma consagração pode ser vista no seguinte trecho de Marcelo Ridenti em que a vinculação com o povo dá o tom para uma carreira positiva: “Estão na filmografia de Nelson Pereira: a introdução nas telas da vida do homem simples do povo favelado (Rio 40 graus, realização de 1954-55, e Rio, Zona Norte, 1957); a presença do povo camponês migrante do Nordeste (Mandacaru Vermelho, 1960, e Vidas Secas, 1962-63); a busca histórica do indígena, das origens brasileiras (Como era gostoso o meu francês, 1970); as raízes negras da sabedoria popular, num projeto de descolonização cultural (Amuleto de Ogum, 1973-74, Tenda dos milagres, 1975, e Jubiabá, 1985-86); a cultura de artistas populares (A estrada da vida, 1979); a resistência popular à ditadura do Estado Novo (Memórias do cárcere, 1983) [...]”.

[vi].Graças ao projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro, 1964-1988, os pareceres estão facilmente acessíveis no site www.memoriacinebr.com.br. As citações seguintes são desta fonte.

[vii].O Jornal do Brasil, no dia 18 de maio, anunciou que era “quase certa” a proibição pelo diretor do Serviço de Censura, Manuel Felipe Leão.

[viii].Coriolano, falante e extrovertido, tornou-se um dos maiores símbolos da Censura da época. Ele foi o primeiro a escrever sobre o filme em 8/5/1968, mas o seu parecer não está apensado ao processo. Autor do livro Censura e liberdade de expressão. Sobre as carreiras dos censores ver Kushnir.

[ix].A partida, na primeira semana de abril de 1967, foi devidamente anotada pela coluna social de Léa Maria, fazendo menção ao convite do governo norte-americano para conferências e participação no programa de TV “VIP”. Ele retornou ao Rio em 8 de junho daquele ano.

[x].Na seção “O Filme em Questão” o crítico deu bola preta para o filme.

[xi].Com o tempo, as entrevistas de Nelson deslocaram o sentido político para o ângulo formal. Declarações mais antigas como a realizada em1972 para Federico de Cárdenas e Max Tessier afirmavam que, em Nova York, ele tinha se dado conta da falsidade da posição revolucionária vista e sentida “de fora” do país. Fome de amor seria, desse modo, uma “autocrítica”, palavra cara aos comunistas, de um intelectual burguês com pretensões revolucionárias..

[xii].Figueiredo reclamou que não recebeu o valor contratual devido, abrindo uma queixa na Justiça.

[xiii].Notas sobre a produção publicadas pelo Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo ressaltam a adaptação ou mesmo o roteiro a quatro mãos. A publicidade da produtora Herbert Richers indicava o roteiro de Santos e Ripper. Nelson declarou a Cárdenas e Tessier a existência de um “esboço de roteiro”, deixando em aberto a questão da autoria.

[xiv].A fala de Mariana é tomada de costas para o espectador, como voz interior. O artigo de Mao chama-se On Practice: on the relation between knowledge and practice. between knowing and doing, disponível no site www.yale.edu/amstud/inforev/practice.html. Há ligeiras diferenças entre esta tradução e a do livro lido por Mariana, que não foi localizado na bibliografia sobre Mao.

[xv].A sugestão foi desmentida em 1969 quando a Marinha desbaratou rapidamente a “Guerrilha de Angra dos Reis”, liderada por uma dezena de integrantes do Movimento de Ação Revolucionária-MAR. (Gorender, p.125).

[xvi].O trecho de Mao: “[...] Then a sudden change... A leap takes place in the process of knowing in man’s mind, and concepts are formed. Concepts are no more longer represents the phenomena, the separate aspects and the external relations of things; they grasp the essence, the totality and the internal relations.”

[xvii].A primeira referência à Cuba apareceu na biografia de Alfredo contada por Felipe. Mariana lê revistas aparentemente políticas e aparentemente fornecidas por Felipe ou Ula. Nunca saberemos quais são os títulos.

[xviii].A frase de Ernesto Guevara está no texto para a revista Tricontinental, abril de 1967, Crear dos, tres... muchos Viet-Nans, es la consigna, localizada em www.filosofia.org/hem/dep/cri/ri12014.htm.

[xix].Esta frase, que não é de Guevara, foi identificada por Nelson como trecho de uma carta do Che à reunião da Olas.

[xx].Foi impossível estabelecer o discurso completo de Mariana, já que ele está misturado com sons de música (popular e eletrônica), falas e risos de outros personagens.