O audiovisual como documento histórico:

Na década de 30 deste século, Walter Benjamim, partindo de um referencial marxista para pensar as transformações que o desenvolvimento tecnológico impunha à vida cotidiana, ressaltava que a forma de percepção das coletividades humanas se transformava ao mesmo tempo que seu modo de existência, sendo ela própria e os meios pelos quais se manifestava condicionados natural e historicamente (1).

Benjamim referia-se, então, às obras engendradas a partir da reprodutibilidade técnica, que começavam a ganhar status de obras de arte, tais como a fotografia, as gravações sonoras e, especialmente, o cinema. Assim conseguiu identificar, pontualmente, como o fascismo e o nazismo valeriam-se das vantagens das novas tecnologias para realizarem-se politicamente, gerando guerra e destruição da própria humanidade e de seus princípios mais consagrados desde a Revolução Francesa.

O filósofo morreu, vítima das atrocidades que criticava, deixando um legado muito mais poderoso e mobilizador do que poderiam supor seus carrascos: pensamentos revolucionários que inspiraram e inspiram tantos profissionais que preocupam-se com a plena utilização dessas técnicas, cada vez extraordinariamente mais avançadas, em benefício da própria humanidade e do uso de sua razão crítica.


No pós-guerra, a reprodutibilidade técnica já chegava às universidades como uma forma inovadora e extremamente "fidedigna" de se estudar a realidade social. Nos Estados Unidos dos anos 40, o gravador tornava-se instrumento de trabalho imprescindível para registrar as vozes de ex-combatentes e de outras personalidades tidas como de relevância histórica para futuras gerações. O produto obtido através da gravação - seja sonoro ou audiovisual - era tomado como "lugar de revelação" e de acesso à verdade, anteriormente impossível de atingir por outros meios. Isto, que Ismail Xavier, escrevendo sobre cinema, apontou como tendo um "poder revelatório como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de acidente mas de uma estratégia"(2). Nesse sentido, o que o estudioso obtinha como documento era fabricado dentro dos parâmetros do desenvolvimento de uma nova percepção exigida pela burguesia para incrementar suas estrátegias de dominação social.

Obviamente, o audiovisual ainda não era entendido como "mais que um instrumento sofisticado intervindo no simples domínio da comunicação" (3). Sem dúvida, já caracterizava um sistema diferente de apreensão, de elaboração e de comunicação, abrindo perspectivas observacionais da realidade nunca antes vislumbradas, o que a apresentava como múltipla e não mais única. Porém, as interpretações que proporcionava adequavam-se apenas a alguns parâmetros da sociedade que iniciava sua experimentação.

Algum tempo depois, Marc Ferro, um dos historiadores pioneiros no emprego do filme como fonte documental, conseguiria enxergá-lo como documento, não no sentido de imagem objetiva da realidade, mas sim no status de revelador ideológico, político, social e cultural de uma determinada cultura e de seus interesses, nem sempre retratados de modo explícito, entretanto, passíveis de serem observados nas sutilezas e entrelinhas das imagens expostas num filme:
"Resta estudar o filme, associá-lo ao mundo que o produz. A hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História; o postulado? Que aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a História." (4)

Ferro referiu-se aqui ao estudo dos filmes de ficção. O resultado do encontro entre o olhar produzido pela objetiva da camêra e o acontecimento fabricado para ser captado por este olhar, é uma imagem que tornou-se um documento. No estudo desse documento não é posto de lado a existência do recorte. Não existe a confiança no poder explicativo da imagem isolada, pois o historiador neste caso, ao contrário do espectador desavisado, não participa do processo de simulação: sua função é desvendá-lo. Expondo suas entranhas, o historiador procura entender que tipo de percepção a coletividade absorve/revela sobre seu modo de existência, seguindo a pista dada pelas reflexões benjamimianas.

Diferente de Benjamim, entretanto, Ferro acreditava que o filme deveria ser abordado não como uma obra de arte, mas sim como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas, pois ele valeria por aquilo que testemunhou (5). Acreditamos, todavia, que não é possível excluir o caráter de obra de arte que o filme ou qualquer outro tipo de produção audiovisual possui para realizar um estudo histórico: "... com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida (...) Mas, no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra prática: a política."(6)

Mais que isso, a técnica de produção de imagens como obra de arte é que permite sua difusão massiva. O filme, por exemplo, pelo seu próprio custo produtivo é uma criação artística que pertence à coletividade e é especialmente feita para ela. E, será que um estudo histórico do filme ou de outras produções audiovisuais não faria sentido exatamente porque estes também são fatos estéticos, que servem ao desfrute? A eficácia deles não viria precisamente disto?

Ferro pareceu estar ciente de que é indispensável analisar no filme principalmente a narrativa, o cenário, o texto, e as relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime. Procurou, dessa forma, compreender não somente a obra como também a realidade histórica que ela representa (7). Para este autor, desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam ou glorificam (8). Contudo, Ferro não se deteve mais cuidadosamente no fato de que é precisamente essa aparência de representação que, quando apropriada pelos espectadores identificados com o olhar da câmera, inclusive, à revelia dos que a produziram, torna-se um elemento concreto do processo histórico (9).

E por que os historiadores, seguindo o caminho aberto por outros profissionais da área de humanidades, não conseguiriam tornar-se também realizadores, fazendo com que o audiovisual fosse ainda mais ativo como agente de uma tomada de consciência social? Parodiando o antropólogo-cineasta David MacDougall (10), que dirige suas indagações aos colegas de seu métier, está na hora de nós, historiadores, nos questionarmos quanto ao que esperamos aprender com o audiovisual e o que ele pode nos transmitir. O que é que as imagens podem exprimir tanto ou mais que as palavras e em que podem enriquecer o saber histórico? MacDougall cita o exemplo de um dos mais famosos e conceituados antropólogos-cineastas, Jean Rouch (11) - exemplo que serve muito bem aos historiadores - para atestar a existência de bastante material de pesquisa em nossa própria sociedade, em geral negligenciado por ser considerado matéria-prima típica de outras áreas de estudos humanos, como a sociologia, a antropologia e a ciência política. Nesse contexto, onde fica o estudo e até mesmo a "fabricação" de imagens de uma história contemporânea por parte dos historiadores? Será que o inexplorado e o desconhecido presentes no interior da nossa realidade social não deveriam fazer parte do campo de trabalho do profissional de História através de imagens, além de escritos? E não podemos pensar em tratar seriamente daqueles temas que supomos conhecer tão bem através do discurso das imagens, sem tratá-las como mera ilustração?

A sociedade, então, não seria apenas um objeto de análise provindo das mãos dos diretores e fotógrafos militantes (12). Os historiadores e os espectadores poderiam participar ativamente do espetáculo intervindo na realidade com a experiência acumulada e proporcionada pelas imagens. Talvez atingíssemos plenamente o que Ferro preconizou como sendo a passagem dos filmes de militantes para os filmes militantes, englobando também outras formas de produção e difusão de imagens.

Isso implicaria, contudo, novos posicionamentos teóricos e metodológicos para os historiadores, como se sucedeu com os antropólogos. O objeto de pesquisa tornou-se sujeito e passou a exprimir-se enquanto sujeito, formulando questões ao investigador, tornando-o também um elemento do campo de observação (13). Nesse sentido, parece que os historiadores orais foram os primeiros a dialogar com a antropologia, compartilhando o entendimento do cinema e do audiovisual em geral, como instrumentos de observação, de transcrição e de interpretação de realidades sociais, além das funções já empregadas em termos de ilustração e difusão de pesquisas.

Mesmo assim, para o historiador - assim como para outros especialistas - é difícil medir ou avaliar a ação exercida pelo audiovisual. Ferro afirma que essa intervenção se exerce por meio de um certo número de modos de ação que tornam as imagens eficazes, operatórias. Sem dúvida, essa capacidade está ligada à sociedade que produz as imagens e àquela que as recepciona. Além do ajustamento de dificuldades não propriamente audiovisuais - tais como condições de produção, formas de comercialização, seleção de gêneros, referências a significados culturais, etc. - o audiovisual dispõe de certo número de modos de expressão que não são uma simples transcrição da escrita literária, mas que têm sua especificidade. Dessa forma, seria ilusório imaginar que a prática dessa linguagem é, ainda que inconscientemente, inocente (14). Os historiadores procurariam estar perfeitamente cônscios das possibilidades e dos limites da linguagem audiovisual para conseguir tirar o máximo de proveito das ferramentas que esta lhe oferece. Acima de tudo, tirar proveito da emoção com que o meio audiovisual consegue envolver o espectador. Neste caso, também vale para os historiadores a constatação de um antropólogo: "Ficção e realidade se misturam e a liberdade inocente dos antropólogos-cineastas lhes permite atravessar os espelhos diante dos quais os cineastas profissionais param, observando petrificados (15)."

Ferro afirma que o historiador também deve se ater aos procedimentos aparentemente utilizados para exprimir duração, ou ainda a figuras de estilo que, por exemplo, transcrevem deslocamentos no espaço, pois estes podem, sem intenção do cineasta, revelar zonas ideológicas e sociais das quais ele não tinha necessariamente consciência, ou que ele acreditava ter rejeitado (16). Ismail Xavier explicita melhor este tema: "No cinema, as relações entre visível e invisível, a interação entre o dado imediato e sua significação tornam-se mais intrincadas. A sucessão de imagens criadas pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações se engendram menos por força de isolamentos (...), mas por força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade invejável. É sabido que a combinação de imagens cria significados não presentes em cada uma isoladamente (17)."

Outra questão importante para o historiador é situar o audiovisual no contexto histórico em que foi produzido e nos diferentes contextos históricos em que é recebido, pois as imagens podem ser lidas de maneira diferente e mesmo inversa, em dois momentos de sua história (18). Outra vez, Xavier detalha pressupostos fundamentais ao falar de cinema:"... ganha toda ênfase a importância da pergunta que o observador dirige à imagem em função da sua própria circunstância e interesse. Afinal, na condição de espectador de um filme de ficção, estou no papel de quem aceita o jogo do faz-de-conta, de quem sabe estar diante de representações e, portanto, não vê cabimento em discutir questões de legitimidade ou autenticidade no nível da testemunha de tribunal. Aceito e até acho benvindo o artifício do diretor que muda o significado de um gesto - o essencial é a imagem ser convincente dentro dos propósitos do filme que procura instaurar um mundo imaginário (19)."

Ferro afirma que, para o olhar do historiador, o imaginário é tanto história, quanto História (20). O filme e outros tipos de produção de imagens são alimentados e alimentam esse mesmo imaginário que queremos captar, traduzir. É sabido que a leitura da imagem não é imediata, pois provém de todo um universo mediado pelo olhar produtor e receptor das imagens.Segundo Lynn Hunt, os historiadores da quarta geração da Escola dos Annales, como Roger Chartier e Jacques Revel, rejeitaram a caracterização de mentalités como parte do chamado terceiro nível de experiência histórica. Para eles, este não é de modo algum um nível, mas um determinante básico da realidade histórica. Como afirmou Chartier, "a relação assim estabelecida não é de dependência das estruturas mentais quanto a suas determinações materiais. As próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social." Logo, as relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural e produção cultural - o que não pode ser dedutivamente explicado por referência a uma dimensão extracultural da experiência (21).

Nesse sentido, Chartier enfatizou que os historiadores não deveriam substituir uma teoria redutiva da cultura enquanto reflexo da realidade social por um pressuposto igualmente redutivo de que os rituais e outras formas de ação simbólica simplesmente expressam um significado central, coerente e comunal (22). Cabe, então, aos historiadores perceberem que o filme pensa a realidade, muitas vezes sem ser um reflexo exato dela, mesmo sendo um documentário.
Ao nos determos sobre a especificidade do filme documentário, Bill Nichols é referência significativa para o estudioso do audiovisual e, particularmente, para o historiador. Nichols apresenta o documentário como o mais bem elaborado discurso da sobriedade: "Documentary film has a kinship with those other nonfictional systems that together make up what we may call the discourses of sobriety. Science, economics, politics, foreign policy, education, religion, welfare - these systems assume they have instrumental power; they can and should alter the world itself, they can effect action and entail consequences. Their discourse has an air of sobriety since it is seldom receptive to "make-believe" characters, events, or entire worlds (unless they serve as pragmatically useful simulations of the 'real' one). Discourses of sobriety are sobering because they regard their relation to the real as direct, immediate, transparent. Through the power exerts itself. Through them, things are made to happen. They are the vehicles of domination and conscience, power and knowledge, desire and will. Documentary, despite is kinship, has never been accepted as a full equal (23)."

Nichols afirma que, essencialmente, o documentário aparece como um pálido reflexo do discurso instrumental dominante na nossa sociedade. Os filmes de ficção "refletem" nossa cultura, e essa imagem "espelhada" é fundamental, determinando a própria definição do que é o cinema. O documentário também pode vir a fazer isso, mas freqüentemente "distorce" o reflexo.

No documentário, a narrativa assume importância extrema: mais do que um mecanismo para contar uma história, como ocorre nos filmes de ficção, trata-se de um meio que convence em torno do não-imaginário, do que emana da vida real. E, muitas vezes, a estrutura narrativa é a organização básica do documentário(24). A ideologia está presente na narrativa oferecendo representações em forma de imagens, conceitos, mapas cognitivos, visões de mundo como propostas de estruturas principais e pontuações da nossa experiência. Tanto as ideologias quanto as imagens são inescapáveis (25).

O documentário, como outros discursos sobre o real, guarda um resquício de responsabilidade para descrever e interpretar o mundo da experiência coletiva, uma responsabilidade que não é um pequeno problema dentro da totalidade. Estes discursos sobre leis, família, educação, economia, política, estado e nação são construções atuais da realidade social (26). Para fazer esta formulação, Nichols cita Dziga Vertov, que escreveu ser o filme um processo ativo de construção social, incluindo a construção de pontos-de-vistas de uma conciência materialista-histórica. Também evoca Benjamim, para concordar que a imagem está a serviço da ideologia dominante como espetáculo e distração guardando no tempo e no espaço o potencial explosivo das massas dentro da ordem e do desejado. John Berger, com Modos de Ver, também nutre tais reflexões: não estamos diante de uma mera documentação, mas sim de um processo ativo de fabricação, não de objetos físicos, mas sim de valores e significados, conceitos e orientações para o ambiente que nos cerca (27).

A História entra aqui como o assunto básico do documentário, sendo o controle seu elemento-chave. Mas como a história não está sob controle total do documentarista, este solicita a companhia de outros profissionais para auxiliá-lo: cientistas sociais, físicos, políticos, empresários, engenheiros e, até mesmo, revolucionários (28).

Uma motivação primária é o realismo: o objeto está presente no texto por causa de sua função no mundo histórico(29). E, por fim, a noção de "lição histórica" como um aspecto central do documentário e como uma manifestação de sua filiação ao discurso da sobriedade, muda nossas expectativas quanto à subjetividade e à objetividade (30).

Nessa direção, A. Grimshaw afirma que Vertov experimentou com uma câmera móvil num mundo em movimento, explorando as mudanças de relacionamentos entre subjetividade e objetividade, porque o olho da câmera via a si mesmo enquanto, simultaneamente, observava o mundo, olhando tanto de dentro quanto de fora (31).

Acreditamos ser este o realizador cuja obra é a referência mais emblemática do trabalho instigante que o historiador pode fazer com imagens, pois nos mostra claramente que através da prática audiovisual a percepção humana encontrou a própria intimidade da elaboração como um espaço de aparência que, por si só, também é análise: "Diante do aparato construtor de imagens, minha interação é de outra ordem: envolve um olho que não vejo e não me vê, que é olho porque substitui o meu, porque me conduz de bom grado ao seu lugar para eu enxergar mais... ou talvez menos. Dado inalienável de minha experiência, o olhar fabricado é constante oferta de pontos de vista. Enxergar efetivamente mais, sem recusá-lo, implica discutir os termos deste olhar. Observar com ele o mundo mas colocá-lo também em foco, recusando a condição de total identificação com o aparato. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao que, fora do campo, torna visível (32)."

Talvez também aí resida a perfectibilidade do cinema como documento histórico, da qual Benjamim nos fala como sendo seu atributo decisivo como obra de arte. "O filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de seqüências de imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha - imagens, aliás, que poderiam, desde o início da filmagem, ter sido corrigidas sem qualquer restrição. (...) O filme é, pois, a mais perfectível das obras de arte (33)."

Se nos filmes de ficção, Benjamim já assinalava a importância do intérprete cinematográfico, que tinha a especificidade de não representar diante de um público, mas de um aparelho, no caso do documentário o papel do "sujeito filmado" é muito mais complexo. A perfectibilidade do filme dialoga com a imperfectibilidade dos "intérpretes", personagens reais do mundo existente. É certo que a população aliena-se diariamente no trabalho, diante de máquinas. Mas com a câmera nas mãos do historiador (ou do antropólogo, do sociólogo etc...) as massas ganham rostos, histórias, emoções, afirmam sua humanidade diante de uma máquina. Uma humanidade ausente do dia-a-dia das relações mais íntimas, tal qual os camponeses sicilianos retratados por Giuseppe Tornatore, no filme O Homem das Estrelas... Será que mais do que o rótulo por vezes pejorativo de "fábrica de ilusões" o aparelho da reprodutibilidade técnica por excelência pode estar à serviço da história da própria humanidade por suas próprias palavras, de seus sentimentos por suas próprias expressões? "Com a representação do homem pelo aparelho, a auto-alienação humana encontrou uma aplicação altamente criadora (34)".

Ao escrever sobre a fotografia, Barthes privilegiou entender as imagens a partir do ponto de vista de quem as observam, independente de serem estes os produtores das imagens. As análises advindas daí estão impregnadas de subjetividade. A valorização da subjetividade da interpretação diante da "objetividade" dada pela materialidade do documento é crucial para uma reflexão a ser exercida (35).

Pensando honestamente, os historiadores contemporâneos, antropólogos, sociólogos, enfim, humanistas que trabalhem com o recurso audiovisual, se vêem mais que obrigados a sair dos muros da academia para dentro da sociedade: o que conta não é apenas suas vontades de "estarem lá"; hoje, os sujeitos (ex-"objetos") de pesquisa fazem sua exigência de serem filmados. Muitos discutiram e tentaram avaliar a indução operada pelo estudioso sobre seus "informantes". Mas, atualmente, o pesquisador depara-se com "colaboradores", que também exercem pressão, conscientemente, sobre os fatos documentados sobre si próprios: "Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmada (36)."

O que Benjamim dizia na década de 30, a partir da apreciação dos filmes russos (37), chega no final do século como ordem-do-dia para os que pretendem trabalhar em torno do conhecimento da realidade social, dos caminhos e descaminhos da humanidade, da democratização da arte, do saber e da comunicação. Por trás da reivindicação do direito de ser filmado está a aspiração por novas condições sociais, muitas vezes assumindo o tom de denúncia como primeiro passo. Benjamim, radicalizando em sintonia com seu tempo histórico e seu referencial marxista, exigia a expropriação do capital cinematográfico como ação prioritária do proletariado. O cinema corresponderia à arte reveladora dos perigos existenciais mais intensos aos quais o homem contemporâneo está sujeito, porque promoveria a transformação da percepção, que deve ser observada historicamente por todos que combatem a ordem social vigente e, especialmente, pelos profissionais da História.

Sem dúvida, os historiadores devem-se valer das possibilidades de abordagem audiovisual trazidas pela prática antropológica: "cinema de observação ou cinema de participação; presença afirmada do realizador-antropólogo ou bem um ensaio de objetivação da observação; intervenção sobre o desenrolar dos eventos ou registro à distância; descrição simultânea dos discursos ou desenvolvimento pedagógico posterior com a ajuda de comentários, legendas ou mesmo cartões explicativos; constituição de equipes de filmagem compreendendo ou não profissionais da imagem além dos profissionais da antropologia; constituição ou reconstituição da realidade observada ou bem um e outro (38)."

A busca é pela visualização dos condicionamentos técnicos, éticos e históricos que determinam uma produção documental, entendendo seus limites, expondo suas intenções e, ao mesmo tempo, explorando toda a liberdade que a percepção audiovisual nos oferece. Neste campo, qualquer passo é significativo: "os usos diferenciados de sons em relação à imagem; a natureza da intervenção dos comentários; as interpretações induzidas pelo ângulo escolhido, a duração dos planos, o rigor dos movimentos dos operadores em relação ao movimento observado; a escuta direta da expressão autóctone ou o fato de lhe instigar através da entrevista; a mudança do ponto de vista, simultâneo e diferenciado (interpretação fora da situação na montagem), do realizador-antropólogo; enfim, o debate eventual entre o cineasta e seu antropólogo, quando a equipe é assim constituída (39)."

Acima de tudo, o documentarista não deve esquecer que é através da distração oferecida pela arte que a percepção dos indivíduos mobiliza-se ou não, apropria-se ou não das representações culturais inscritas nas questões históricas propostas pelo documentário. Se transpusermos as noções de apropriação das representações culturais propostas por Chartier para a leitura das imagens em seu sentido histórico, talvez seja possível entender a verdadeira complexidade desse documento diferenciado, agente transformador da expressão artística e comunicativa das representação sociais e culturais. A noção de apropriação, compreendida em termos mais sociológicos do que fenomenológicos, tornaria viável avaliar as diferenças na partilha cultural, na invenção criativa que se encontra no âmago do processo de recepção (40). Para tanto, necessitamos de um exame da relação muito estreita entre três pólos: o próprio conteúdo (o audiovisual), o objeto que comunica o conteúdo (sua forma) e o ato que o apreende (a ação e a reação do espectador) (41).

Mais do que examinar estes pólos, tentar equacioná-los numa produção documental de imagens que envolva historiadores e realizadores de outras áreas, pode ser uma pista de como o olhar da imagem - audiovisual, cinematográfica, fotográfica, virtual... - é história e faz história...


(1) Benjamim, W. "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" (1935/1936), Walter Benjamim - Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. S. P., Brasiliense, 1985 (pp. 165-196), p 169. P. Francastel também escreveu sobre como a representação de um determinado espaço plástico está associada às formas de percepção, de sensibilidade estética, de determinados contextos históricos. Estudou como as técnicas se desenvolvem dentro dessa idéia e de como isso ocorre demorada e desordenadamente, num movimento mais abrangente do que os marcos biográficos ou no máximo de movimentos culturais consagrados pela historiografia. P. Francastel, Pintura e Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
(2) Xavier, I. "Cinema: Revelação e Engano". O Olhar. (A. Novaes, org.) São Paulo, Cia. das Letras, 1988, p. 367.
(3) Piault, Marc-Henri. "Antropologia e Cinema" (mimeo, pp. 62-69), p. 62.
(4) Marc Ferro. "O Filme. Uma contra-análise da sociedade?", Le Goff, J & Nora, P. (orgs.) História: novos objetos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p. 203.
(5) Ibid.
(6) Benjamim, W., op. cit., p. 171-72.
(7) Ferro, M., op. cit., p. 203.
(8) Ferro, M. Cinema e História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 13
(9) Chartier, R. A história cultural. p. 19
(10) MacDougall, D. "Mas, afinal, existe realmente uma antropologia visual?" (mimeo, pp. 71-6), p. 73.
(11) A respeito da produção fílmica de J. Rouch, Anna Grimshaw escreveu: "... he sought to integrate his own complex subjectivity into his anthropological explorations of social life."; Grimshaw, A. "The Eye in the Door. Anthropology, Film and the Exploration of Interior Space", mimeo, p. 21.
(12) Ferro, M. Cinema e História, op. cit., p. 15.
(13) Piault, M.-H., loc. cit., pp. 62-3.
(14) Ferro, M., op. cit., p. 16
(15) Piault, M.-H., loc. cit., p. 64.
(16) Ferro, M., op. cit., p. 16.
(17) Xavier, I. loc. cit., p. 368.
(18) Ferro, M. op. cit., p. 18
(19) Xavier, I. loc. cit., p. 369.
(20) Ibid., p. 77
(21) Hunt, L. (org) A nova história cultural, p. 9
(22) Ibid., p. 18
(23) Nichols, Bill, Representing Reality. Bloomington/Indianapolis, Indiana University Press, 1991, pp. 3-4.
(24) Ibid., p. 6.
(25) Ibid., p. 8.
(26) Ibid., p. 10.
(27) Ibid., p. 11.
(28) Ibid., p. 14.
(29) Ibid., p. 26.
(30) Ibid., p. 29.
(31) Grimshaw, A. loc. cit., p. 20.
(32) Xavier, I., loc. cit., p. 382.
(33) Benjamim, W., op. cit., p. 174.
(34) Ibid., p. 180.
(35) Barthes, R. A Câmara Clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
(36) Ibid., p. 183.
(37) Ibid.: "Muitos dos atores que aparecem nos filmes russos não são atores em nosso sentido, e sim pessoas que se auto-representam, principalmente no processo de trabalho. Na Europa Ocidental, a exploração capitalista do cinema impede a concretização da aspiração legítima do homem moderno de ver-se reproduzido. De resto, ela também é bloqueada pelo desemprego, que exclui grandes massas do processo produtivo, no qual deveria materializar-se, em primeira instância, essa aspiração. Nessas circunstâncias, a indústria cinematográfica tem todo interesse em estimular a participação das massas através de concepções ilusórias e especulações ambivalentes. Seu êxito maior é com as mulheres.", p. 184.
(38) Piault, M-H. loc. cit., p. 68-9.
(39) Ibid., p. 69.
(40) Chartier, R. "Textos, impressão, leituras", Hunt, L. op. cit., pp. 232-33.
(41) Ibid., pp. 220-21.


* Andrea Paula dos Santos Produtora e pesquisadora de documentários; é bacharel e licenciada em História, mestre em História Social e doutoranda em História Econômica FFLCH/USP.