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O Cinema Mudo em Quatro Livros

A produção historiográfica sobre o início do Cinema no Brasil
Os cursos universitários de cinema têm quase meio século. Não seria um exagero afirmarmos que a produção universitária de teses e dissertações começou pelo princípio, ou seja, o cinema mudo, com o sólido grupo criado à volta de Paulo Emílio Salles Gomes. Um programa foi estabelecido na década de 1960 por Paulo Emílio, Maria Rita Galvão, Jean Claude e Lucila Ribeiro Bernardet, Ismail Xavier e Carlos Roberto de Souza, continuando a dar frutos nas seguintes (1).

A produção historiográfica desse grupo diferenciava-se dos historiadores que a precederam, F. Silva Nobre, Alex Viany ou Vicente de Paula Araújo, por se pautar basicamente pela linha aportada por Paulo Emílio: a pesquisa detalhada na imprensa diária ou especializada, a utilização extensa do testemunho dos contemporâneos e o viés sobre a produção de longas-metragens de ficção. Num país carente de coleções ou arquivos cinematográficos, a proposta de Paulo Emílio era coerente, opondo-se à experiência de Alex Viany, autor de uma história de concepção panorâmica e evolutiva, empreendida com pouco método e pesquisa, fatores que não a impediram de se transformar num clássico (2). A submissão à abordagem pauloemiliana propiciou também a aglutinação de documentos, informações, textos e outros materiais de pesquisa que até os dias de hoje continuam a ser explorados. Foi um grupo que amealhou uma grande massa documental como a compensar a penúria vivida nos anos anteriores.

Aceitando-se a "alegoria biológica" de Luis Alonso García para a historiografia européia e norte-americana, ou seja, o desenvolvimento por "idades" compreendendo a dos primeiros biógrafos (o parto), os primeiros cronistas (infância), os eruditos clássicos (adolescência) e os acadêmicos modernos (maturidade) (3), há que se reconhecer a ocorrência, no Brasil, de uma espécie de atropelamento entre a "infância" e a "maturidade". Se considerarmos Alex Viany ou Vicente de Paula Araújo dentro da classificação dos nossos primeiros cronistas, historiografia que vicejou nos países desenvolvidos entre 1920-40 com autores de língua francesa do porte de Léon Moussinac (1925) e Bardèche e Brasillach (1935), e de língua inglesa, com o pioneiro Terry Ramsaye (1926) ou Lewis Jacobs (1939), vemos que no Brasil a "maturidade", alcançada com a produção acadêmica, corria em trilhos muito próximos da "infância". Introdução ao cinema brasileiro, de Viany, foi publicado em 1959, e o livro de Vicente de Paula, A bela época do cinema brasileiro, somente em 1976 (4), mas já subsidiando as pesquisas de Paulo Emílio em 1962-63.

Nesse início de década, a Universidade já produzia seus primeiros trabalhos com os textos de história do cinema brasileiro escritos por Paulo Emílio para a Universidade de Brasília e, mais tarde, com a publicação do livro 70 anos de cinema brasileiro (1966), que não é um livro acadêmico, porém embebido desta vontade. Nada nos impede também de aceitar os primeiros trabalhos universitários como imbuídos de "eruditismo clássico", em que Paulo Emílio novamente seria um bom exemplo, principalmente com Cataguases e Cinearte na formação de Humberto Mauro, abrindo-se uma nova "idade" com as teses da década de 1970 em que Maria Rita Galvão estudou a Cia. Vera Cruz e Ismail Xavier analisou a revista O Fan.

Nas décadas de 1980 e 1990 o leque de estudos sobre o período mudo se abriu para outras preocupações. Entre elas podemos citar as análises de publicações especializadas (A Scena Muda, editada no Rio de Janeiro, e Artes e Artistas, publicada em Salvador); estudos sobre arquitetos e a arquitetura dos cinemas; o cinema educativo e a educação pelo cinema foram outras áreas bastante exploradas, merecendo pesquisas até anos recentes; trabalhos monográficos sobre a estrela e diretora Carmen Santos figuraram ao lado de preocupações mais tradicionais como as pesquisas sobre cinematografias regionais (Paraná, Manaus, Porto Alegre, Salvador, Recife, Campinas ou São Paulo). Poucos destes trabalhos universitários chegaram ao grande público (5).

Outro aspecto que vale ressaltar é a linha de continuidade entre vários destes mestrados com a perspectiva aberta antes, em que os trabalhos universitários sobre arquitetura ou educação se desviam naquilo que lhes é específico, mantendo uma visão "tradicional" quanto ao campo da história do cinema brasileiro. Nesta linha temos, por exemplo, os estudos sobre o emprego do art-déco nos "palácios cinematográficos" ou o interesse do movimento político anarquista pelo cinema como fator de educação do proletariado (6).

Na virada do milênio uma nova fornada de pesquisas sobre o mudo foi defendida. E, ao contrário da maioria dos textos universitários anteriores, eles tiveram uma rápida edição (7), uma agradável surpresa, revivendo aquele interesse editorial que fez com que Paulo Emílio, Ismail Xavier e Maria Rita Galvão fossem publicados com uma certa presteza (os dois primeiros foram os mais afortunados: seus livros saíram depois de dois e três anos da defesa acadêmica; Maria Rita Galvão esperou seis e a "presteza" do qualificativo se explica quando vemos a demora de oito anos para Selda Vale da Costa e dez para Ana Pessoa).

Os trabalhos de Steyer, Matos e Fonseca estão focados sobre as cidades de Porto Alegre, São Luís e Salvador. Os períodos de abrangência são os mesmos em Steyer e Fonseca (da primeira exibição até a chegada do cinema sonoro), enquanto Matos centra-se nos exibidores ambulantes que passaram por São Luís. A fonte básica de pesquisa é a mesma: a imprensa diária e as revistas da época. Ainda que estes pontos sejam comuns podemos definir essas obras como exemplos de uma nova geração de pesquisadores, cuja ligação com as preocupações instauradas por Paulo Emílio desapareceu. De forma a avalizar esta opinião, façamos um confronto com o texto de Selda Vale da Costa.

Eldorado das ilusões está dividido em três partes: o cinema em Manaus, a figura do cineasta pioneiro Silvino Santos (levado ao cinema por Aurélio Michiles com O Cineasta da selva, 1997), fechando o livro com os anexos, isto é, uma ampla apresentação da documentação coletada sobre os cinemas, a produção cinematográfica amazonense, teatros, companhias teatrais, artistas e fotógrafos atuantes na cidade. O recorte temporal cobre da chegada do cinema a Manaus, em 11/4/1897, até o cinema sonoro (1935), em que a data final é um pouco fluída, posto que a exposição da documentação navega por informações que estão um pouco antes (a chegada do sonoro em 1933 ou as companhias líricas até 1930) ou depois (a filmografia amazonense e a de Silvino Santos vão mais longe, chegando aos anos 1960). A fonte utilizada é a imprensa com uma leitura atenta de mais de cem periódicos nacionais e estrangeiros. Essa fome de informações reflete a fragmentação das coleções, cujo exemplo menos incompleto é único, o Jornal do Commércio, de Manaus.

Os objetivos do livro são a análise da produção e da exibição cinematográfica amazonense, com ênfase sobre o cineasta Silvino Santos, e a captação do "universo imaginário da sociedade extrativista, desvendando e compreendendo as ilusões que levaram à criação desse 'Eldorado' no norte do Brasil", em que Manaus aparecia como a "Paris dos trópicos" (Costa, p.2-3). Dentro da tradição pauloemiliana, em particular Humberto Mauro, Cataguases e Cinearte, o cinema configura-se como fenômeno urbano e, antes de tudo, é preciso conhecer e destacar a cidade que o abriga. Para tanto, a autora faz um percurso histórico, destacando a evolução urbana da vila à cidade, que em 1874 já era servida pela navegação de cabotagem internacional, ganhando projeção entre 1880-1910 com o "ciclo da borracha". De 1848 a 1897 preparou-se o cenário para que a "modernidade" se instalasse na cidade de escassas diversões.

A população de Manaus tinha passado de 3.640 hab., em 1848, para cerca de 45 mil em 1897. Entre os sinais de "modernidade" derivados da exploração da borracha estavam o porto flutuante, o Teatro Amazonas e a eletricidade, os dois últimos inaugurados em 1896. Há uma clara relação entre a chegada da eletricidade e o primeiro exibidor ambulante a aportar na cidade em 11/4/1897.

A apresentação no Teatro Amazonas foi um fracasso (o projetor não funcionou), e o exibidor ambulante, que não deixou nome nos jornais da época, desapareceu. A cidade se divertia numa série de lugares públicos como os teatros, clubes, cabarés, circos, corridas de touros, passeios de bonde, carrossel, banhos nos igarapés, piqueniques na cachoeira de Tarumã, completados pelas datas cívico-religiosas em que as festas juninas, novenas, Natal, alternavam-se com outras mais profanas - os chás e o carnaval - , além da trivialidade dos mexericos. A população urbana também conhecia os aparelhos de ilusão ótica como o Cosmorama, Polyorama e lanterna mágica (a descrição deste conjunto de práticas culturais desmente a idéia de que a cidade tivesse escassas formas de divertimento, cuja função instrumental encontra-se no destaque para a chegada do cinema).

Em 1897 foi a vez da projeção cinematográfica, inaugurando a série de apresentações de exibidores ambulantes, cuja trajetória continuaria após a instalação da primeira sala fixa, em 21/5/1907. Entre esses exibidores estavam alguns sobejamente conhecidos: Nicola Parente (1900), Édouard Hervet (1904, 1906, 1907, 1908), empresas como a Imperial Cia. Japonesa Kudara (1902). Entre os anos de 1897 a 1907, a cidade de Manaus assistiu a pelo menos dezessete temporadas, em geral apresentadas na melhor casa de espetáculos, o Teatro Amazonas, a preços de espetáculos teatrais, onde o lugar mais barato custava 1 mil-réis, nas gerais, contra 15 mil-réis nos balcões.

A explicação fornecida para a ocorrência do cinema ambulante lança-se em duas direções. Na primeira, dirigida às condições locais, o cinema não era visto ainda como um investimento lucrativo capaz de impulsionar a construção de casas específicas de exibição (os cinemas). Na segunda, dentro do plano internacional, a autora crê que a "era da indústria cinematográfica, com os todo-poderosos produtores e os trustes do circuito exibidor, só começará, realmente na segunda década do século com o surgimento de Hollywood. Enquanto isso, o cinema era apenas 'uma distração decente e barata', 'um bom passatempo', um 'interessante divertimento' que 'faz rir a valer'... (Costa, p.33).

Dentro da linha aberta por Paulo Emílio, o período dos ambulantes foi analisado por Selda Vale da Costa como um desvio histórico, já que o destino natural estava no exibidor de cinema, desprezando-se as razões intrínsecas ao capitalismo no processo de criação de novos mercados para os produtos industriais europeus ou norte-americanos. Para Paulo Emílio, a falta de condições sanitárias da cidade do Rio de Janeiro impediu a abertura dos cinemas, fato que só aconteceu com a reforma de Pereira Passos e o fornecimento industrial de eletricidade em 1907. Na ausência de algo semelhante para Manaus, os exibidores ambulantes atuavam sobre uma lacuna do comércio local, a impossibilidade de retorno financeiro, e os desacertos da indústria cinematográfica internacional, cujo eixo só seria encontrado por Hollywood na década de 1920.

Para a cidade, ao contrário do Rio de Janeiro ou São Paulo, a primeira sala fixa aberta, o Casino Julieta, foi insuficiente para demarcar uma nova era, uma alteração significativa, o local "onde o cinema construiu seu ninho para não mais levantar vôo" (Costa, p.55). Primeiro, porque foi construído como um teatro, cobrando de seus espectadores preços tão caros quanto o Teatro Amazonas; em segundo, a inauguração se deu com um ambulante, Hervet; por fim, os proprietários tinham projetado o local como café-concerto. Esses fatores, que não eram negativos em si, faziam parte ainda do período ambulante, numa instabilidade que durou até 1909.

Dentro do período de transição, alguns cinemas permaneciam abertos por tempo limitado, casos do Cinema Olympia (13 dias) ou do Radium-Cinema (15 dias). O Teatro Alhambra (1909-13) talvez fosse o sinal mais importante de uma verdadeira passagem para o cinema. O estabelecimento do marco "1907" para a instalação do cinema em Manaus, portanto, vem se juntar a esta tradição que estamos assinalando, e poderia receber um tratamento mais nuançado. Um outro aspecto diz respeito à circulação da mercadoria cinematográfica, concentrada nas mãos de Fontenelle e Cia. (Raimundo Nonato e Jonas da Silva), um monopólio virtual, já que os grandes exibidores/distribuidores do sul do país, Jácomo Rosário Staffa ou Francisco Serrador, estenderam seus tentáculos, no máximo, até Belém do Pará (o Cinema Odeon, quando foi concorrente de Fontenelle, recebia seus filmes de Belém). Uma outra fase se abriu após a Primeira Guerra Mundial, com a invasão do cinema norte-americano que, para Manaus, dividiu seu poderio com as "superproduções da UFA" (Costa, p.101).

A ênfase sobre a UFA é surpreendente e talvez merecesse uma atenção maior da autora, já que única. Antes de encerrar o período mudo, Costa faz uma análise da influência do espetáculo cinematográfico sobre a sociedade, dedicando-se à produção da crítica cinematográfica, a influência sobre as crianças, problema que se abre sobre duas vias: a educação e a censura.

As perguntas que Eldorado das ilusões procura responder refletem o contexto dos estudos de história do cinema abertos por Paulo Emílio. As datações, a coleta da documentação, a importância de Silvino Santos para o contexto manauara estão colados na senda aberta por Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. O trabalho de Selda Costa é acadêmico e, ao mesmo tempo, muito erudito, resultando numa fonte excepcional sobre o cinema em Manaus.
Fábio Augusto Steyer e Raimundo Nonato da Silva Fonseca trabalham o mesmo tema com outras chaves.

A fonte principal continua a mesma. Steyer, que tem graduação em História e Jornalismo, é mais enfático na exploração de como a "imprensa (jornais e revistas) da época percebia o desenvolvimento do cinema, desde os tempos primitivos, no final do século XIX, passando pela hegemonia dos filmes europeus e chegando ao 'star system' norte-americano, na década de 1920, considerando o cinema enquanto arte, linguagem e indústria de entretenimento, passível de diversas interações com a sociedade" (Steyer, 15-16). As distinções encontram-se em outros lugares. Ela pode estar na recusa a uma história feita por jornalistas e "pesquisadores", fechados sobre o assunto como algo específico em si, enquanto as questões trazidas pela interdisciplinaridade podiam enriquecer sobremaneira o trabalho. Raimundo Nonato buscou os sinais de modernização urbana de Salvador, em que o cinema faria parte de uma reforma social mais ampla, o embranquecimento da população, incluindo-se também as práticas de lazer.

A modernização seria marcada pelo discurso médico de "cunho racionalista, influenciado pela 'moderna' antropologia criminal em voga na Europa" (Fonseca, p.24), além da transferência para a cidade baiana dos princípios de reforma urbana iniciados por Haussman, em Paris, e Pereira Passos, no Rio do Janeiro. Os objetivos, vemos logo, nos afastam da tradição anteriormente estabelecida, e até vai um pouco contra ela, já que em Porto Alegre havia uma sólida linha de pesquisa historiográfica sobre o período mudo, porém não acadêmica (Fonseca tem mais respeito pelo icônico Walter da Silveira e o seu A História do cinema vista da província).

Steyer dividiu o seu estudo em duas partes. Na primeira, tempos uma síntese do desenvolvimento do cinema e, na segunda, os múltiplos olhares produzidos pela imprensa. O trajeto inicial talvez fosse dispensável, ou pelo menos poderia ser reduzido, por se apoiar numa bibliografia ultrapassada, onde pontifica Celso Sabadin. A primeira exibição porto-alegrense de cinema com o "Scenomotografo" (sic), em 5/11/1896, trazido pelo ambulante Francisco de Paola e Dewison, é despojada do seu primado pelo destaque dado a Georges Renouleau, que se apresentou em 7/11/1896.

O clássico estabelecimento do primeiro marco é menos importante do que a inversão das datas, certamente fruto de uma disputa gaúcha entre gerações de historiadores. Se aqui estamos no campo da curiosidade regional, as perguntas metodológicas sobre o público espectador deveriam merecer melhor acolhida da academia. Tendo feito o percurso do cinema mundial para o regional, Steyer se indaga porque o cinema, tendo chegado nos Estados Unidos primeiro aos espectadores mais pobres para depois capturar as camadas mais ricas, não rebateu da mesma forma em Porto Alegre. "Os motivos dessas diferenças", escreveu o autor de Cinema, imprensa e sociedade em Porto Alegre, "ainda não foram bem estudados, especialmente em Porto Alegre, e talvez mereçam a atenção de novos pesquisadores, que ainda devem se debruçar sobre o tema" (Steyer, p.56). Um trabalho que vem para distinguir os profissionais da História dos amadores deveria respondes à pergunta, ao invés de se pautar pela repetição de textos de Charles Ford, Georges Sadoul ou Celso Sabadin.

O período ambulante aberto por Francisco de Paola foi seguido por nomes bem conhecidos da parte sul do Brasil: as pelo menos quatorze temporadas realizadas entre 1896 e 1906 contaram com Faure Nicolay, Germano Alves, José Felippi, Cinematógrafo Grand Prix, Star Co. e o infatigável Édoaurd Hervet. A primeira sala fixa foi aberta com o Recreio Ideal, em 21/5/1908, com os mesmos preços de ingresso praticados no Rio e em São Paulo, 1 mil réis e 500 réis. Eles eram acessíveis à população, repetindo o fenômeno visto em outros grandes centros urbanos, diferindo das companhias ambulantes que cobravam o dobro no Teatro São Pedro ou no Teatro Parque (mesmo assim preços bem mais baratos do que os praticados nos teatros do Rio de Janeiro ou de Manaus).

O preço do ingresso parece ser a única razão para o desaparecimento dos ambulantes e a abertura das salas fixas em Porto Alegre. O que deveria ser melhor explicitado é o período de transição entre uma e outra prática. Em 1907, o Rio de Janeiro, por exemplo, recebeu ainda dois ambulantes; Manaus recebeu Édouard Hervet ainda em 1909 e, em Salvador, Raimundo Fonseca notou a permanência de ambulantes até 1913. A brusquidão da passagem portoalegrense permanece uma interrogação. De qualquer forma, entre 1908 e 1910, ocorreu uma alta instabilidade nas salas. "Muitas delas abriam e fechavam suas portas ou trocavam de proprietários, às vezes mudando de endereço, principalmente devido a motivos técnicos, como a precariedade dos aparelhos e dos prédios" (Steyer, p.66). Tal fato também se repetiu em outros lugares e o equipamento de projeção, da Pathé Frères principalmente, já tinha atingido um bom nível técnico. Por certo não estava na projeção as razões para a instabilidade desse momento.

A periodização que se seguiu a 1908 é um pouco difusa. O mesmo deve ser dito quanto à permanência do cinema na categoria de "principal diversão da população". Os "anos 20 marcaram a consolidação efetiva do cinema [...]. O grande desenvolvimento da cinematografia norte-americana e do 'star system' ocasionaram uma 'febre' mundial que também chegou a Porto Alegre, culminando com o surgimento do cinema sonoro, em 1929" (Steyer, p.76). Não há razão para se apegar muito à década de 1920, pois o autor já nos havia alertado sobre a popularidade das projeções do Cine-Teatro Apolo, em 1914 (a pequena sala do Recreio Ideal, em 1908, também deveria permanecer cheia em todas as sessões). Quanto ao star system europeu, cultivado pelos primeiros filmes das produtoras francesas Pathé e Gaumont, Steyer não se detém na análise.

Na segunda parte do livro, o autor toca no problema da modernização urbana para descartá-la como um fator importante para o aparecimento e a consolidação do cinema, ao contrário do Rio de Janeiro ou Salvador, segundo a concepção histórica de Fonseca. A reação do público sobre o que lhe passava diante dos olhos mereceu uma única observação. Na exibição da película Bailes espanhóis, em 1901, os espectadores soltavam "gritos e pilhérias ao palco", reação interpretada pelo autor como de "espanto". "O cinema ainda era visto como uma evolução do 'ilusionismo' e as pessoas impressionadas, às vezes acreditavam estar 'falando com vivos personagens'" (Steyer, p.115). Como o espectador responde até hoje ao que é visto na tela, desde o comentário "erudito" sobre a narrativa, até o susto, grito ou recusa de olhar ou mesmo de assistir a certos gêneros de filmes (filmes de terror), cremos que a observação de 1901 não estava tão deslocada, pelo menos na intensidade apontada por Steyer. A questão da recepção do público merecia uma atenção maior do que o simples "espanto" acadêmico.

O cinema chegou a Salvador em 4/12/1897, trazido por Dionísio Costa. Esse marco foi estabelecido por Sílio Boccanera Jr. na década de 1920. Foi daí que partiu Raimundo Nonato Fonseca no seu "Fazendo fita": cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, para encerrar o seu período de estudo em 19/4/1930, com a exibição na cidade da primeira película sonora, Inocentes de Paris (informação de Walter da Silveira), embora somente em 1934 todos os cinemas estivessem adequados ao novo processo (ainda segundo Walter da Silveira). Estabelecidos os marcos decisivos, o autor empregou um terço do texto para a compreensão da modernidade "enquanto um projeto amplo, de conotações culturais, estéticas, sociais, raciais e políticas cronologicamente imprecisas" (Fonseca, p.22).

O trajeto até a modernização encontrou os seus fundamentos em 1808, com a Corte e as escolas superiores, seguindo pelo Império (projetos de urbanização da cidade de 1840), até o governo J. J. Seabra (1912-14). As propostas de reforma se encaixavam dentro de uma questão mais ampla, o embranquecimento da população urbana, com a transformação das práticas tradicionais de lazer africanizadas por outras consideradas civilizadas. O cinema integra-se a esse esquema geral de transformação (p.84).

Da mesma forma que em Manaus, lastima-se a falta de divertimentos na cidade (p.50). A carência de eletricidade foi a razão para o período ambulante, para os assim chamados "cinematógrafos de lona", incorporados aos circos e variedades de feira, embora os exemplos trazidos sejam mínimos (a maioria das exibições, até a sala fixa, aconteciam no Teatro São João, Politeama ou outros locais tradicionais). A definição de uma data para o primeiro cinema é imprecisa. O número de temporadas realizadas pelos ambulantes é menor que em outras cidades examinadas, porém visto que a pesquisa não se aprofunda no assunto, esta quantidade pode ser maior (o Cassino Castro Alves teria feito exibições entre 1903 e 1906). Entre 1909 e 1914 não havia sessões diárias nos cinemas de Salvador. Somente a partir da década de 1920 (1924?) eles passaram a contar com sessões vespertinas.

Como o autor explicitou nas conclusões, seu empenho maior estava na incorporação do cinema ao "discurso civilizador como um instrumento capaz de civilizar e educar os soteropolitanos, contribuindo, assim, na visão dos modernizadores, para o processo de desafricanização da cidade" (Fonseca, p.198). Apesar de acrescentar uma fonte nova, a correspondência da Intendência Municipal, os resultados parecem inferiores aos praticados sobre outras cidades. Por um lado, pela existência de trabalhos anteriores, o de Sílio Boccanera e Walter da Silveira, reverenciados por Fonseca; por outro, pela tese da reforma urbana, cuja diacronia em relação à implantação do cinema esteve em choque permanente.

A melhor contribuição do livro encontra-se no capítulo sobre o público de Salvador. A divisão entre cinemas "aristocratas" e "populares" foi vista como um fenômeno da década de 1920, com os cinemas reproduzindo as "hierarquias já evidentes em outros espaços de lazer" (Fonseca, p.132): a "moça de família" não freqüentava o Jandaia e uma negra não pertencia ao universo do Ideal. A fissura social, se olharmos o caso do Rio de Janeiro, seria anterior, fato assinalado pelo próprio autor. A transformação pela imprensa dos cinemas populares como locais mal afamados, o Jandaia sobretudo, foi ressaltado por Fonseca. Se aconteciam crimes no local, tal fato não era privilégio do comportamento "errado" dos espectadores "populares", pois nas salas de elite também se davam casos semelhantes.

A assuada, o namoro, o vocabulário errado, a moda ganharam um olhar de simpatia, que poderia ter sido ampliado com uma leitura atenta do circuito cultural brasileiro da década. As revistas de cinema publicadas no Rio de Janeiro, Selecta, Para Todos e Cinearte, ao lado das editadas em Salvador, Artes e Artistas, forneceriam um contexto ampliado para o aparecimento de tipos que tiveram popularidade na imprensa, caso dos almofadinhas.

Seguindo a prática de outros trabalhos, são estudadas as relações do cinema com outras práticas de conhecimento (a cultura, as influências sobre a moral, o patriotismo ou a propaganda com vistas à boa civilidade), mas apoiada em outros autores. Em vários momentos sentimos que a contribuição para a história do cinema baiano e brasileiro poderia ser maior quando o autor resvalou por filmagens locais ou as exibições de filmes produzidos fora da Bahia. Ao descolar-se dos fundamentos da pesquisa pauloemiliana, a nova geração de pesquisadores colocou tais objetivos em segundo plano e, ao contrário de Selda Vale da Costa, raramente encontramos preocupações com o estabelecimento de filmografias ou a exposição de uma documentação ligada ao desenvolvimento do cinema local.

E o cinema invadiu Athenas, de Mário Fábio Belo Matos, concentrou-se no período ambulante, detendo-se sobre o que classificou de um "ciclo completo" para a história do cinema em São Luís (Matos, p.20), aberto em 10/4/1898 e encerrado em 31/12/1909 com a inauguração do Café da Paz. A angulação tinha tido um predecessor, já que Euclides Barbosa Moreira Neto, ainda estudante em 1977, tinha feito uma limitada pesquisa sobre o cinema na cidade, abordando o período de 1898 até 1918, quando foi aberto o Eden, único cinema dos primórdios ainda em funcionamento nos anos 1970 (um ato falho lastimável foi a exclusão do livro de Moreira da bibliografia de Matos) (8).

Tratava-se, portanto, de dar uma interpretação às doze páginas publicadas em 1977, porque as fontes são as mesmas, os três principais jornais da cidade (Pacotilha, Diário do Maranhão e O Federalista). A tarefa de afinar os dois meses de pesquisa para um trabalho de conclusão de curso não era das mais difíceis. Com isso, corrigiu-se informações acumuladas ao acaso, a confusão de Moreira entre o ambulante Kaurt e o "Alethorama" de Moura Quineau, indicado como um único e sem as datas de exibição de 1906. Mas, por outro, desprezou-se a informação original de que a apresentação do "Pantoscópio Automático", em 31/2/1897, seria o primeiro ambulante a se exibir na cidade, em favor do Cronofotógrafo de Georges Demeny, de abril de 1898. O "Pantoscópio Automático" foi lido por Matos como um projetor de fotografias fixas, uma espécie de lanterna mágica aperfeiçoada, segundo a Enciclopedia Ilustrada del Cine (1969), quando provavelmente se tratasse de uma apresentação do Electric Phantoscope, inventado por Thomas Armat e Charles Jenkins, em 1895 (9). Em 1977, sem qualquer bibliografia de apoio, Moreira atirara no escuro e acertara, enquanto Matos, com todos os recursos de vinte anos depois, errou.

São Luís observou quatorze temporadas de ambulantes (quinze se contarmos com o "Pantoscópio Automático"), com alguns de nossos conhecidos: José Felippi, Édouard Hervet ou Fontenelle e Cia.. Caso o autor lesse um pouco mais a bibliografia brasileira, poderia ter feito interessantes incursões sobre os exibidores ambulantes Moura Quineau, por meio de Ary Bezerra Leite, e Fontenelle, com Selda Vale da Costa (10). Essas leituras obrigatórias teriam enriquecido o trabalho centrado nos ambulantes por colocarem questões sobre as origens de alguns deles, o percurso que faziam pelas capitais, as razões que teriam levado Moura Quineau a obter meses de sucesso em Fortaleza e fracassar em São Luís ou simplesmente impedir pequenos erros de avaliação, que não comprometem o trabalho, em absoluto, de que a Empresa Édouard Hervet, depois das exibições de maio de 1904 dirigiu-se para o sul, quando desembarcou em Fortaleza no mesmo mês (Matos, p.101).

Como em Fonseca, o que está em jogo é a modernização. O cinema participa dela de uma forma fetichizada, um reflexo da Exposição de Paris de 1900, uma "janela para o mundo" da tecnologia, a saída do subdesenvolvimento de uma cidade com "poucos divertimentos interessantes, tendo que se contentar quase sempre, com jogos de salão, festas de largo (procissão, quermesses, passeios e variantes), visitas e apresentações de excentricidades, além dos espetáculos de teatro" (Matos, p.37). O eco da "falta de diversões" da população já nos foi apresentada, restando aplicar a fórmula do fetiche tecnológico trazido pelo cinema, fazendo com que São Luís se assemelhasse ao Rio de Janeiro, quando a iluminação pública só chegou em 1918 e o processo de transformação industrial da "Manchester do Norte" se encerrasse em 1895. Na busca de modelos externos aclimatáveis à realidade local, perdeu-se também a exploração da documentação antes esboçada por Moreira, seguidor das preocupações pauloemilianas, que não se recusou a incluir um capítulo sobre os filmes produzidos em São Luís. Por certo a leitura cuidadosa de Matos das mesmas fontes impressas enriqueceria este aspecto, contudo, como vimos em Salvador e Porto Alegre, trata-se de uma perspectiva abandonada pelas novas dissertações acadêmicas.

A manutenção de um interesse vivo e palpitante sobre o cinema mudo brasileiro é uma perspectiva louvável para a Universidade. Os primórdios do cinema é um período áspero de pesquisa, posto que as fontes são mínimas. Os filmes desapareceram; a memória dos contemporâneos são exíguas ou inexistentes. Para o estudo do período, os mestrados atuais, produzidos em tempo cada vez menor, têm-se mostrado um risco. A exiguidade de tempo produz alguns desacertos quanto à pesquisa e a sua exposição que, aliada em geral a uma bibliografia ultrapassada ou de segunda mão, cooperam para a supremacia da aplicação de modelos no lugar da reflexão e da discussão aprofundada do objeto. Para além destas observações gerais, há que se demandar dos cursos de História, Comunicações ou Comunicação Social uma preocupação maior com os métodos e técnicas de pesquisa, ou seja, a hierarquia das fontes, a atualização bibliográfica, a citação correta e a coerência das hipóteses de trabalho. Nesse aspecto, as dissertações recentes analisadas demonstraram falhas que devem ser repensadas em favor da própria sobrevivência da Universidade como espaço de excelência.


Notas

(1) Esse grupo produziu trabalhos centrados na década de 1920 com estudos sobre os ciclos regionais por Paulo Emilio (Cataguases e Cinearte na formação de Humberto Mauro, 1972), Lucila Ribeiro (Cinema pernambucano de 1922 a 1931: primeira abordagem, 1970) e Carlos Roberto (Cinema em Campinas nos anos 20 ou Uma Hollywood brasileira, 1979); Maria Rita estudou o cinema realizado em São Paulo (Crônica do cinema paulistano, 1969) e Ismail Xavier o vanguardismo do Chaplin Club e da revista O Fan, no Rio (À procura da essência do cinema: o caminho da "Avant-Garde" e as iniciações brasileiras, 1975). Com exceção de Carlos Roberto de Souza, que já defendeu o seu mestrado na ECA/USP, as outras foram defendidas na FFLCH/USP.
(2)Viany, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1959; idem, Alhambra/Embrafilme, 1987 e idem, Revan, 1993.
(3) García, Luis Alonso. El extraño caso de la historia universal del cine. Valencia, Ediciones Episteme, 1999
(4) Araújo, Vicente de Paula. A bela época do cinema brasileiro. São Paulo, Perspectiva/SCCT, 1976.
(5) Ver Costa, Selda Vale. Eldorado das ilusões. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1996, e Pessoa, Ana. Carmen Santos: o cinema dos anos 20. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002.
(6) Entre os vários trabalhos em educação e cinema educativo ver Saliba, Maria Eneida Fachini. "Cinema contra cinema": uma paixão de juventude de Canuto Mendes (1922-1931). São Paulo, FFLCH/USP, 2001 (editado pela Annablume/Fapesp em 2003); para o campo da arquitetura, entre outros textos, ver Lima, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do espetáculo. Rio de Janeiro, UFRJ/IFCS, 1997 (editado pela Editora da UFRJ em 2000).
(7) Ver Steyer, Fábio Augusto. Cinema, imprensa e sociedade em Porto Alegre (1896-1930). Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001; Matos, Marcos Fábio Belo. E o cinema invadiu Athenas: a história do cinema ambulante em São Luís (1898-1909). São Luís, Fundação Municipal de Cultura, 2002 e Fonseca, Raimundo Nonato da Silva. "Fazendo fita": cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930. Salvador, EDUFBA, 2002
(8) Moreira, Euclides. Primórdios do cinema em São Luís. São Luís, Universidade Federal do Maranhão/Cineclube Uirá, 1977.
(9) Ver, a propósito, Mannoni, Laurent. A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema São Paulo, Editora Senac/Editora UNESP, 2003, p.418-21 (lançado na França em 1995).
(10) Leite, Ary Bezerra. Fortaleza e a era do cinema: pesquisa histórica, volume 1: 1891-1931. Fortaleza, Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 1995.

* José Inácio de Melo Souza é pesquisador da Cinemateca Brasileira.

Data de publicação: 28/07/2004