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Notas para uma história do cinema homossexual na era dos regimes totalitários

Enquanto os soldados alemães, com seus 'belos cabelos', suas 'faces bronzeadas' e seus 'olhos de gelo' ampliavam os domínios da Alemanha nazista, o desejo e a prática homossexual eram varridos do território ariano com a mesma truculência eficiente que condenaria os judeus europeus, os doentes mentais e os ciganos.

 

1. INTRODUÇÃO
"(Daniel) não estava com medo, gritava confiantemente àqueles milhares de olhos e pensava 'Nossos Conquistadores!' e estava extremamente feliz. Olhava-os nos olhos, deleitava-se com seus belos cabelos, suas faces bronzeadas com olhos que pareciam lagos de gelo, seus corpos esguios, seus quadris incrivelmente longos e musculosos. Murmurava: 'Como são belos!' (...) Uma sensação deliciosa, insuportável, espalhou-se por todo seu corpo; ele quase não podia ver direito; repetia, ofegante, 'Como se fosse manteiga - estão entrando em Paris como se fosse manteiga'. (...) Ele gostaria de ter sido uma mulher para lhes jogar flores".

Jean Paul Sartre - La Mort dans l'Âme (1949)

Enquanto os soldados alemães, com seus 'belos cabelos', suas 'faces bronzeadas' e seus 'olhos de gelo' ampliavam os domínios da Alemanha nazista, o desejo e a prática homossexual eram varridos do território ariano com a mesma truculência eficiente que condenaria os judeus europeus, os doentes mentais e os ciganos.

A capital alemã fora, até a ascensão de Hitler, não apenas a 'Berlim Imoral' - título de um guia alternativo publicado em 1930: tratava-se da 'Metrópole Gay' da Europa e sede da primeira organização do mundo a combater a intolerância sexual.

No mês de maio de 1897 o médico alemão, judeu e homossexual Magnus Hirschfeld e três amigos criavam, em Berlim, o Comitê Científico Humanitário, um tipo de resposta à prisão de Oscar Wilde, ocorrida na Inglaterra, dois anos antes. Wilde fora condenado após um escandaloso affair que envolveu o nome do Lorde Alfred Douglas. Diante do juíz, o escritor inglês diria uma célebre frase, cuja expressão até hoje identifica o amor homossexual: "o amor que não ousa dizer seu nome... é belo, extraordinário, e constitui a mais nobre forma de afeto... por ele é que me vejo sentado neste banco... o mundo furta-se à ele e não o entende" (apud Costa, 1992:47).

No entanto, 'o amor que não ousa dizer seu nome' seria intensamente vivido em Berlim, conhecendo seu apogeu nos anos 20 até sua completa marginalização a partir da chegada de Hitler e dos nazistas ao poder. O aparecimento do Wissenschaftlich-humanitäre Komitee-WhK não era, em absoluto, um fato isolado. Especialmente durante a República de Weimar, a liberalidade da vida sexual na metrópole germânica acabará convertendo-se num mito, tão antológico pelo seu grau de depravação quanto pelo seu glamour. Como diria o escritor inglês (e gay) Christopher Isherwood
(1) :"Berlim meant boys" ("Berlim significava rapazes").

O cenário lesbiano berlinense, detalhado por Adèle Meyer no livro Lila Nächte, faria a Nova Iorque dos anos 70 parecer qualitativa e quantitativamente inadequada, diz Richard Dyer (1990). Interessados podiam adquirir guias específicos (inclusive dirigidos para turistas 'heterossexuais'), que detalhavam a rica vida noturna gay e lésbica. Haviam locais de encontros para casais homossexuais, revistas, romances e até mesmo um teatro: o Theather des Heros (1921-1924). Diversas organizações gays e lésbicas mantinham ligações com outros movimentos contemporâneos, como o feminista e os chamados 'Lebensreformbewegungen' (estilo de vida), a exemplo de vegetarianos, nudistas e pacifistas. No campo da política estes núcleos estiveram particularmente próximos do socialismo, mas não deixaram de flertar, em alguns momentos, com o próprio nazismo (Dyer, 1990:9).


2 O 'AMOR QUE NÃO OUSA DIZER SEU NOME' NAS TELAS DO CINEMA


"Essa hostilidade dos inferiores [os assassinos, os carrascos fascistas, os linchadores], outrora cuidadosamente cultivada e alimentada pelos superiores laicos e espirituais, à vida que neles se atrofiou e com a qual se relacionam, homossexual e paranoicamente, pelo homicídio, essa hostilidade foi sempre um instrumento indispensável para a arte de governar. A hostilidade dos escravizados à vida é uma força inexaurível da esfera noturna da história. (...) Os que na Alemanha louvavam o corpo, os ginastas e os excursionistas, sempre tiveram com o homicídio a mais íntima afinidade, assim como os amantes da natureza com a caça"
Adorno; Horkheimer-Interesse pelo Corpo/Dialética do Esclarecimento (1985)


"Nem sempre os homens morrerão em silêncio (...) Se a fome leva alguns à letargia e ao desânimo irremediável, ela conduz outros temperamentos à nervosa instabilidade da histeria e a um louco desespero". A previsão sombria feita pelo economista J.M. Keynes, acerca das conseqüências do Tratado de Versalhes para a derrotada Alemanha, concretizou-se em pouco mais de uma década
(2). A histeria e o desespero - somada à humilhação - iria gerar uma força destrutiva sem precedentes na história da humanidade. A República de Weimar nasce ao término da Primeira Grande Guerra e finda com a ascensão dos nazistas ao poder (pelo voto eleitoral, lembre-se).

Instabilidade política, efervescência cultural e liberalidade sexual: não por acaso, as duas obras explicitamente homossexuais da história do cinema mundial nasceriam nos primórdios e no ocaso de Weimar. Entre estes dois marcos, a cinematografia alemã contabilizou uma vasta lista de abordagens gays e lésbicas secundárias; senão efetivas, abertas a uma interpretação homossexual, como a obra de F.W. Murnau, cineasta gay, diretor de Nosferatu e A Última Gargalhada que notabilizou o grande ator alemão - também gay - Emmil Jannings. No entanto, nenhuma obra foi tão clara e diretamente centrada na temática como Anders als die Andern - Diferente dos Outros (1919) - e Mädchen in Uniform - Senhoritas em Uniforme (1931).

Tampouco, as demais abordagens mostraram tamanha simpatia à causa homoerótica: muitas enfocaram situações ou personagens de forma depreciativa e estereotipada, para além da recorrência do que chamaremos de 'lógica do crime e castigo'. Ainda hoje, assistimos a filmes que não romperam com a 'solução trágica' (de fato, punitiva) para 'resolver a problemática homossexual'
(3)- uma tradição da qual mesmo os filmes Anders e Senhoritas não deixam de ser exemplos pioneiros. De qualquer forma, exceto pela cinematografia alemã, serão poucas as imagens em torno da homossexualidade na produção mundial do período.

Em território germânico, diversas obras - de forma secundária - já se ocupavam de uma nascente 'visibilidade' da temática homossexual. Michael (1924) narra a trágica história de amor entre um pintor e seu modelo e protegido; Der Fall des Generalstabd-Oberst Redl (1931) gira em torno do escândalo sexual que envolveu um coronel do império austro-húngaro e, ao menos um dos diversos filmes que resgataram a memória de Frederico, o Grande, intitulado Fridericus-Rex-Zyklus (1922) fez menção à sua orientação sexual (que os filmes sobre Ludwig II ignoravam).
Dyer também lembra que uma personagem lésbica em A Caixa de Pandora (1928), de Georg Wilhelm Pabst, e um personagem gay em Sexo Algemado são centrais para o enredo de ambos os filmes, produzidos em 1928. De fato, uma seqüência do já clássico filme de Pabst mostra a personagem Lulu (Louise Brooks) dançando com a Condessa Geschwitz (Alice Roberts) sob o olhar nada satisfeito de um dos seus inúmeros admiradores. Estas imagens são consideradas como a cena lesbiana inaugural da história do cinema. O frisson em torno da Condessa interpretada por Roberts, não se deve apenas ao fato de ter sido a primeira personagem homossexual claramente desenvolvida pelo medium (Murray, 1996:170). Ela também entrou para o imaginário 'GLS' por contracenar com Brooks, um dos maiores ícone (homos)sexuais do cinema mudo. A mítica atriz norte-americana, que resumiu magistralmente a natureza de Hollywood ("pestiferous disease"; i.é, doença pestilenta) filmou ainda com Pabst Diário de uma Perdida (1929) que também apresenta o que os Gay and Lesbian Film Studies costumam chamar de 'tensão homoerótica'
(4).

Em dois dos filmes alemães de Fritz Lang, em torno do célebre vilão "Mabuse", personagens gays fazem parte do que Dyer (1990:07) chama de "general ambience of decadence"
(5): são eles Mabuse, o Jogador (1922) e O Testamento do Dr. Mabuse (1933). Outras obras mantiveram as referências mais ambíguas, como A Mocidade de um Homem (1919), sobre um hermafrodita - presumivelmente gay; La Garçonne (1925), baseada num livro explicitamente lésbico, mas abrandado para as telas e Das Bildnis des Dorian Gray (1917), aberto - como o romance homônimo de Wilde - à interpretações homoeróticas.

Acrescente-se a este rol, toda uma cinematografia que - se não ofereceu imagens mais ou menos explícitas acerca da homossexualidade - notabilizou-se pelo seu apelo gay e lésbico: nas histórias de travestismo, as estrelas femininas passavam a maior parte do tempo, como notou Dyer (1990:08), disfarçadas de homens e envolvidas (amorosamente) com uma mulher. Tal trama, quase sempre 'inocente', incluiu títulos como Jugend und Tollheit (1912); Exzellenz Unterrock (1920); Dona Juana (1927) e O Violonista de Florença (1927). Uma variante desta temática manteria sua popularidade sob o regime nazista: Oito Garotas num Barco e Ich für Dich, Du für Mich (1934) evocaram a intensidade e força dos vínculos femininos. A psique masculina seria celebrada em O Caminho para a Força e a Beleza (1925), cujos dez primeiros minutos encenam uma arena grega: jovens atletas, semi-nus, treinam lutas; outros, reunidos em círculos, ouvem seus mestres.

Estas obras são possíveis num contexto em que a cinema germânico apresentava uma abertura geral em termos do tratamento da sexualidade. Os chamados 'Aufklärungsfilm' (filmes de esclarecimento) tomavam para si a tarefa de abordar problemáticas sociais; na verdade - majoritariamente - questões sexuais. Dois clássicos do período, A Caixa de Pandora e O Anjo Azul testemunharam o poder da (bis)sexualidade feminina, encarnado em atrizes de irresistível apelo como Louise Brooks e Marlene Dietrich. (Enquanto isso, uma também sensual - e certamente, bem menos ambígua - Leni Riefenstahl chamava a atenção do público masculino e tornava-se objeto de desejo do líder nacional-socialista, Adolf Hitler). Uma inequívoca pornografia 'heterossexual' também encontrava enorme receptividade.

A campanha para a abolição do Parágrafo 175 não chegou a ter êxito completo, apesar dos vários livros publicados - entre os quais o Anuário para Tipos Sexuais Intermediários e do abaixo-assinado em prol dos direitos de homossexuais. Mais de seis mil assinaturas foram coletadas, incluindo as de médicos e personalidades da época, como August Babel, líder do Partido Social-Democrata. Todavia, entre fins da década de 20 e início dos anos 30, os esforços em prol da tolerância sexual darão lugar à retomada da mais violenta repressão - à esquerda e à direita. Na União Soviética liderada por Stalin, a concepção bolchevique de uma 'revolução sexual' dá lugar à defesa de um padrão familiar rigorosamente tradicional (senão burguês). A prática homossexual é vista como uma 'perversão fascista'.

Os verdadeiros fascistas julgarão o homossexualismo ou 'qualquer desvio da sexualidade procriativa intramarital' - como um ato de 'bolchevismo sexual' (Fry& MacRae, 1983:87-90). Em maio de 1933, sob o comando de Joseph Goebbels, Ministro da Cultura e da Propaganda, tem início em Berlim a 'queima de livros' considerados 'não-alemães' ou 'pouco-germânicos'. O Instituto comandado por Hirschfeld seria um dos primeiros alvos de nazistas e entusiásticos estudantes berlinenses.

"Apesar da esquerda alegar que os nazistas eram em grande parte homossexuais, a posição hitlerista era claramente contra esta forma de sexualidade. Quando, em 29 de junho de 1934, uma disputa pelo poder no seio do nazismo ocasionou o assassinato de Ernst Röhm e outros líderes da SA., conhecidos pelas suas práticas homossexuais, acabaram os últimos resquícios de qualquer tolerância da homossexualidade na Alemanha"
(Fry & MacRae, 1983:90).

De forma mais radical, no entanto, para milhares de vítimas anônimas (homens, em sua maioria), o regime hitlerista significou - a exemplo do caso judeu - uma irrevogável condenação à morte. A exemplo de outras 'perversidades', o 'bolchevismo (homo)sexual' seria varrido da Alemanha, que Hitler sonhou transformar na mais bela e poderosa capital do mundo ocidental.


3 O DESTINO DO 'TERCEIRO SEXO' NO TERCEIRO REICH



'É claro que, em nossas sociedades, o extermínio dos homossexuais, como o dos judeus e dos ciganos, em nome da pureza racial, é, no momento, impensável; mas a desqualificação moral, por todos os meios, substitui a exclusão pelo triângulo rosa e o Lager. (...)Farei notar que, depois da guerra, os sobreviventes do triângulo rosa foram os únicos a não ter benefícios das reparações que foram dadas aos outros deportados. É uma omissão terrivelmente significativa"...

Pier Paolo Pasolini (6)- As Últimas Palavras do Herege


Anders als die Andern (1919) e Mädchen in Uniform (1931) são, respectivamente, os primeiros filmes gay e lesbiano produzidos pelo cinema mundial. Entre as datas de sua produção, Berlim mostrara ser mais do que a 'capital homossexual' da Europa: ainda que tenha começado tardiamente, o cinema germânico viveria seu apogeu exatamente sob a efervescência sócio-cultural e artística da República de Weimar. Ambos os filmes foram banidos pelo regime nazista e muitos de seus participantes - cineastas, consultores, atores e atrizes acabaram fugindo do país, ameaçados pela política homofóbica e eliminacionista do III Reich
(7).

Este foi o caso de Erika Mann, filha do escritor Thomas Mann. A atriz (segundo suas próprias palavras "amplamente lésbica por inclinação"), que já participara de Senhoritas em Uniforme montou, em 1935, um cabaré satirizando os nazistas. Foi ameaçada com a perda da cidadania e ao ser declarada 'inimiga pública do Terceiro Reich', acabou arranjando um casamento de conveniência para conseguir o passaporte inglês. Os detalhes da história são deliciosos: Erika pediu ao escritor gay Christopher Isherwood que a desposasse. Ele se negou, com medo de que seu amante alemão sofresse represálias. Mas Isherwood propôs que o poeta gay W.H. Auden assumisse a tarefa. O candidato responderia com um telegrama que dizia apenas "deliciado".

Após o casamento, Auden quase não teve contato com Erika, por quem acabou, de fato, ficando encantado. Nos EUA, os dois escritores ingleses visitaram a família Mann e posaram para uma foto encomendada pelo jornal Times. O fotógrafo perguntou qual a relação de Isherwood com os Mann e Thomas, prontamente, respondeu em alemão "cafetão da família". Todos, exceto o fotógrafo, entenderam a expressão. (Garber, 1997:420-1).

Differente dos Outros é, conforme a expressão de Dyer (1990) "arqueologia". Da obra original só foram preservados 20 a 30 minutos de projeção numa cópia de má qualidade que escapou dos nazistas por ter sido apresentada, durante um curto período, numa União Soviética então liberal em questões sexuais. A época de seu lançamento, o filme ocupou um dos maiores cinemas de Berlim; mereceu ampla cobertura da imprensa, com críticas em geral favoráveis e foi um sucesso de público. Mas a polêmica foi imediata: a polícia proibiu sua exibição em Viena, Munique e Stuttgart e, apenas um ano após sua estréia, era banido pela censura germânica.

O Dr. Hirschfeld, 'consultor médico' oficial da obra (provável co-roteirista) e um dos personagens da história (representando a si próprio) faria, em 1927, uma segunda versão de Anders, intitulada Gesetze der Liebe ou The Laws of Love, cujas cópias foram destruídas durante o ataque nazista ao Instituto (Murray:1996:385). O relato criado para defender a causa do 'Terceiro Sexo' e a supressão do famigerado Parágrafo 175 era, de fato, uma ousadia para a época, ainda que também tenha repisado alguns estereótipos e preconceitos em torno ligados à homossexualidade masculina.


4 EM TORNO DE UMA DELICADEZA MALDITA

Em 1930, Marlene Dietrich protagonizava no filme Morocco dirigido por Josef von Sternberg nos Estados Unidos, uma cena emblemática para a história do homoerotismo no cinema. Vestida de fraque e cartola, a musa do cinema atira uma flor para uma mulher da platéia e, em seguida, a beija nos lábios, durante um número musical no cabaré marroquino
(8). Um ano depois, na Alemanha que Dietrich abandonaria definitivamente, o filme Senhoritas em Uniforme invadia as telas com uma ardente e inequívoca história de amor entre duas jovens mulheres, numa obra celebrada não apenas pela militância lesbiana, mas pelo movimento feminista contemporâneo.

O tema central do filme - o amor entre mulheres - é solenemente ignorado pelas duas obras referenciais sobre o cinema (e o Expressionismo) alemão, De Caligari a Hitler. Uma História Psicológica do Cinema Alemão, e A Tela Demoníaca (1988) . Kracauer prefere ler Senhoritas de um ponto de vista estritamente político e, sem dúvida, tradicional. Lotte Eisner realça sua singularidade enquanto um 'trabalho feminino'. Se ambos os enfoques são válidos, o lesbianismo evidente do filme não é incidental: de várias maneiras é justamente o que possibilita a afirmação de seu anti-autoritarismo e feminilidade (Dyer, 1990:27-8). Inspirada numa peça teatral da poeta lésbica Christa Winsloe, dirigida por Leontine Sagan e com um elenco exclusivamente feminino,

Senhoritas será o primeiro de uma longa lista de filmes de temática lesbiana situados em colégios internos.

Mädchen retrata a vida num internato e expõe (este é único ponto que interessa à Kracauer) "os devastadores efeitos do prussianismo [autoritarismo] sobre uma sensível jovem". A diretora da escola encarna a figura da autoridade. De "natureza terna e imaginativa", a novata Manuela (Hertha Thiele) "implora por compreensão e encontra dura eficiência". Apenas uma professora se mostra simpática: Fräulein von Bernburg, interpretada pela atriz Dorothea Wieck. "Manuela percebe a afeição não declarada da Senhorita von Bernburg por ela e responde com uma paixão que envolve seu reprimido desejo de amor" (Kracauer, 1988, p. 265).

"Depois de um espetáculo teatral em homenagem à diretora esta paixão reprimida explode". Manuela, "num estado de frenesi" rompe os limites da norma: "deixa escapar seus íntimos sentimentos pela amada professora e desmaia". Contra uma ordem da escandalizada diretora, von Bernburg conversa com Manuela, mas só consegue aumentar a angústia da menina. "[Ela] se acredita abandonada pela mulher que idolatra e tenta o suicídio. Está prestes a se jogar do alto da escadaria mas é contida pelas colegas" (1988:265). De fato, escapa à Kracauer que o gesto é contido inclusive por Fräulein von Bernburg, que assim assume uma clara posição, finalmente subversiva (na expressão um tanto piegas de Dyer, "in the name of love"). Um pouco antes deste clímax, Fräulein enfrentara a autoritária Diretora com um discurso irretocável em prol do amor lésbico: "O que você chama de pecado eu chamo de o grande espírito do amor que possui milhares de formas" (Dyer, 1990:29).

"É preciso que eu faça com que tudo aquilo que me aconteceu tenha acontecido para o meu próprio bem. A cama dura, a comida repulsiva, as cordas ásperas que transformamos em estopa até que nossos dedos fiquem amortecidos de dor, as tarefas servis com que devemos começar e encerrar cada dia, as ordens dadas sempre num tom áspero que parece necessário à rotina, o uniforme horrível que faz do nosso sofrimento algo ridículo de se olhar, o silêncio, a solidão, a vergonha - cada uma dessas coisas eu me vi obrigado a transformar numa experiência espiritual. Não há um só ato que avilte o corpo que eu não deva tentar transformar numa forma de espiritualização da alma" (1982:63).

Esta passagem foi escrita por uma célebre vítima do preconceito e da intolerância sexual - este racismo disfarçado que, como notara Pasolini, nunca deixou de latejar "sob a camuflagem das reformas medíocres". Oscar Wilde teve a vida pessoal (e a produção artística) irremediavelmente abalada pela condenação por 'crimes de natureza sexual'. Ele escreveria, na prisão de Reading, sua obra póstuma De Profundis; de fato, uma carta - ainda apaixonada - à Lorde Douglas. A convicção (ou a esperança) sugerida pelo escritor inglês jamais pode ser compartilhada pelas milhares de vítimas anônimas que pereceram - sob maus tratos e punições infinitamente mais cruéis - em nome da 'saudável' pureza e perfeição ('heterossexual') da 'raça eleita', liderada por Adolf Hitle.

 

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Data de publicação: 01/06/2001