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Cinematógraphos: o cinema e a construção da brasilidade moderna na Belle Èpoque

O poeta modernista Guilherme de Almeida escreve, durante a década de vinte deste século, uma coluna diária no jornal paulistano "O Estado de São Paulo", qualificada pelo próprio autor como uma "crônica Cinematográfica".
Com efeito, em tal coluna, intitulada "Cinematógraphos", Guilherme de Almeida, assinando simplesmente "G", aborda um espectro temático plúrimo e multifacético que compreende desde a crônica cotidiana das salas de cinemas paulistanas até as mais refinadas incursões na orbe da reflexão estética atinente à arte da "cena muda", passando pela crítica cinematográfica das fitas em cartaz da cidade e por uma certa "coluna social", em que o poeta nos brinda com aspectos da vida privada das grandes estrelas hollywoodianas da época.

Dessarte, tal material empírico fornece-nos um painel totalizante e acabado do papel desempenhado pelo cinema no processo de configuração cultural cosmopolita da capital paulistana durante a feérica década de vinte. Ele pode ser deslindado sob dois prismas distintos, porém intimamente imbricados, respectivamente pelos seus conteúdos denotativo e conotativo.

Do ponto de vista conotativo a simples existência de uma coluna diária dedicada ao cinema, no maior jornal paulistano de então, já se apresenta sintomática da radicalidade das transformações culturais porque a cidade de São Paulo atravessa na década de vinte deste século. O padrão internacional e altamente refinado da crítica cinematográfica de Guilherme de Almeida sempre atualizadamente informado pelas principais revistas de cinema européias e norte-americanas, indica o cosmopolitismo que nesse período invade a capital bandeirante e a insere entre as grandes metrópoles culturais do mundo.

Por outro lado, a copiosa correspondência endereçada ao cronista-poeta - tratada em seção especial da coluna, a partir de certo momento - funciona como verdadeiro termômetro das demandas culturais e da receptividade com que a população paulistana consome a produção cinematográfica oriunda, já nesse momento, predominantemente de Hollywood, além de fornecer farto material concernente aos novos costumes inaugurados pelo hábito de comparecer às salas de cinema a fim de mergulhar no mundo imagético-onírico da "Cena Muda".

Sob o prisma denotativo, por seu turno, a crônica cinematográfica de Guilherme de Almeida apresenta-nos uma reflexão extremamente lúcida e isenta de ambigüidades acerca da modernidade de modo tal que sua coluna diária no O Estado de São Paulo serve quase como púlpito de onde o poeta defende intransigentemente o cinema enquanto o veículo civilizador por excelência. O seu projeto estético e cultural, a um só tempo nacionalista e modernista, transparece aqui sem qualquer refração.

A concepção modernista de Guilherme de Almeida insere o cinema, arte da cena em movimento, no centro de um projeto estético-artístico que, mais consentâneo com as mudanças que a nova sociedade industrial provocara no rítmo da vida cotidiana privilegia a velocidade, a ação, a juventude e a puerilidade, a esportividade, a aventura, o bom humor e o divertimento, enfim, o "novo" em contraposição aquilo que se afigura genericamente "velho", estático, moroso, triste, reflexivo e, acima de tudo, intelectualizado.

O cinema, de fato, impõe ao espectador, de forma heterônoma um rítmo vertiginoso que obsta a reflexão e a intelecção, e onde não sobra tempo para se insurgir contra o significado tiranicamente perpetrado pela inexorável seqüência das cenas. Teatro e Literatura, artes ancestrais e intelectualizadas, afiguram-se, para o poeta, em defasagem perante as demandas da modernidade permanentemente em movimento, a saber, frente às necessidades de um rítmo urbano-cotidiano extenuante em que o tempo livre é extremamente minguado e deve, portanto, ser preenchido por divertimento e não desperdiçado com reflexão. "Somos platéia, somos público: essa mesma platéia, esse mesmo público que aplaude os filmes americanos justamente porque eles ‘nous apparaissent puerils’ e porque nós gostamos de ‘nous délasser dans cette candeur’ e não de "camaradas que escondem coisas inconfessáveis, duelles de cartola e fraque e outras bobagens doentias, velhas, cansadas, nada pueris... Esporte, saúde: estes, os verdadeiros segredos das coisas que agradam o século". ( O Estado de São Paulo, 09/08/1927) Daí o elogio e a proeminência que o poeta paulistano atribui à produção cinematográfica Hollywoodiana, cujo espírito empreendedor yankee parece mais afinado com a modernidade, principalmente quando se volta para os gêneros de divertimento, como a comédia e a aventura: "Há nisso uma questão de raça. Não é para nós latinos que rebentamos de rir com as malícias gaulesas de Couteline e Capus, ou com a pimenta brava de nossas ba-ta-clânicas - não é para nós, homens gastos, moços-velhos, a ingenuidade, a infantilidade do espírito yankee. Tio Sam é um velho verde... ‘Quem não foi criança em pequeno, tem que o ser depois de velho’ - diz a sabedoria popular da Norte-América. E nós, contraditórios, desmentimos tropicalmente o provérbio setentrional: não somos nem nunca fomos crianças; somos gente grande... No entanto... No entanto, aquele é o que é o verdadeiro espírito; aquele é que é o tão discutido, invejado e inimitável ‘humour’. ‘Humour’ que encontro, fatalmente, sempre, nos porões da ‘Munson Line’. Lembrando-me, por acaso, de momento, quero recordar aqui três piadas típicas do espírito yankee - espírito de quem o cinema é o natural veículo(...)" (O Estado de São Paulo, 30/09/1927).

Guilherme de Almeida saúda, assim, com muito boas vindas a influência cultural norte-americana que enceta e se fazer sentir entre nós via cinema Hollywoodiano. Tece mesmo rasgados elogios ao "american way of life", aos costumes, ao estilo e à moral yankees: "Ignora talvez que, com tais ancestrais, o atual norte-americano é bem um poço de fortes qualidades, de retidão exata, de severos costumes ( V. ‘Lei-Seca’); um povo moço sadio, esportivo, limpo, bem-humorado e ingênuo, incapaz de latinas maldades e malícias... Ignora também que desses bens lhe advém a força e o prestígio no mundo, na vida e na moral de hoje : mundo, vida e moral que ele deixa refletir nos seus filmes - a sua verdadeira arte - aceitos e vitoriosos em toda a terra... " (O Estado de São Paulo, 22/08/1927).

Nesse sentido, o poeta confere superioridade ao gênero cinematográfico, cômico, não poucas vezes referindo-se de forma reprovadora, em sua coluna, aos exibidores que preferem os melodramas e os filmes trágicos: "A citação é de um príncipe vago e tenebroso - o príncipe Trubetskoi : ‘ É uma tragédia não se ter uma tragédia’. A Afirmação é dela mesma uma paródia a esse pensamento já parodiado por Oscar Wilde : ‘Penso que é uma trajédia não se ter uma comédia’. Bravo! De fato, tudo que existe tem um fundo cômico: o essencial é saber achar o fundo cômico das coisas tristes. É preciso aprender a olhar com bom humor para as pequenas desgraças cotidianas: é preciso saber tirar delas um proveito humorístico. Rir - rir como ria e como mandava rir o bom Rabelais, o primeiro homem que descobriu, le propre de l’homme’. ‘Penso que a tragédia está em não se ter uma comédia’. A vós, senhores proprietários de cinemas, este pensamento é agora endereçado. Adotai-o. Fazei dele o vosso lema. Lembrai-vos de que ao entrarmos em vosso cinema, devoramos, ávidos o programa impresso que o porteiro nos oferece, a ver se nele descobrimos a pimentinha vermelha, a cócega nervosa de uma daquelas saudosas comédias de Christie, da Universal, da Mack Sennett, que tanta falta nos tem feito. O que ultimamente nos exibis em matéria de comédia ( anunciado nos jornais, desprezivelmente, sem título nem elenco), é fraco e pobre" ( O Estado de São Paulo,13/08/1927).

A função estética modernista que Guilherme de Almeida atribui ao cinema também contempla certa veneração declarada e tipicamente futurista ao maquinismo, o qual já enceta a aparecer como ambientação fotográfica de certos filmes: "Quando o senhor Marinetti afirmou - em 1909 -, repetindo o senhor Papini, que ‘une automóbile rugissante, qui a l’air de courir sur de la mitraille, est plus belle que la Victorie de Samothrácia’, a humanidade dividiu-se imediatamente em dois grupos: o dos infelizes que hurraram de indignação, e o dos felizes, que continuaram, como antes, indiferentes, sem compreender coisa alguma, sem querer saber de nada... Mas aquela afirmação, apesar de latinamente exagerada, escondia, no fundo, uma simples verdade e as verdades, mais cedo ou mais tarde, têm que ser acreditadas. É fatal. Hoje, por exemplo, vinte e cinco anos depois de lançado o pensamento herético de Papini, já não há quem ponha em dúvida a beleza da máquina. Não é preciso ser engenheiro ou vendedor de engenhos para achar a beleza no eficiente sucedâneo do homem; basta saber ver, basta saber sentir: saber ver com os olhos de hoje, saber sentir com temperamento de hoje. Quem ainda constituir uma cômica exceção, quem duvidar ainda disto ( e, portanto, descer também do cinema), deve ir ao Sant’Anna e ao Royal ver ‘O Homem de Aço’. Mesmo desprezando-se o forte, original trabalho de Milton Sills, esse admirável ‘Silent Lover’, e também a interpretação segura e inteligente de Doris Kenyon, o filme merece ser visto pelo que há de moderna beleza nos cenários mecânicos. Há nesse filme tudo que pode haver de belo na brutal magnificência de uma enorme usina de aço. Com cenários reais, onde a vida moderna, útil e prática é ritmada pelo bracejar poderoso das escavadoras, pelo disparo reto das carretas, pelo gesto lento dos guindastes, pela voracidade rubra dos altos - fornos, pela cadência pesada dos martelos-pilões, com essa paisagem brusca, simétrica e matematicada vida do trabalho, acomoda-se, harmoniza-se um romance impetuoso, violento, numa fornalha de sentimentos exacerbados - paixões e ódios - em que tudo é lindo e forte. Se uma pessoa desse século mecânico e desta cidade industrial não conseguir compreender e não puder sentir a beleza brutal de o "Homem de aço", - deve, imediatamente trocar o seu telefone, a sua máquina de escrever, a sua vitrola e o seu automóvel por uma cama-de-gato, uma caixa de música e um tilbury" (O Estado de São Paulo, 23/07/1927)

Guilherme de Almeida toma partido em defesa do cinema, face a um movimento deflagrado no Rio de Janeiro que acusava a arte da "cena muda" de prejudicar o teatro, nos seguintes termos: "Penso que, realmente, o cinema tem feito grande mal ao teatro, mas um mal involuntário, natural, inevitável mesmo. Um mal que não vem dele, mas das circunstâncias do momento. Um mal do tempo. Um ‘mal du siècle’. O Tempo, os séculos são mais do cinema: rápido, sintético, capaz de reproduzir e concentrar as múltiplas complicadas atividades da vida de hoje.

O tempo, o século não são mais do teatro, ou, pelo menos, do teatro como vem sendo praticado: lânguido, mórbido, cheio de preconceitos, de lugares comuns, contrário, pois, ao espírito sadio, esportivo do momento, inadaptável a época atual, incapaz de refletir a vertigem da nossa vida, de satisfazer ao nosso insaciável, inquieto, constante desejo de ‘algo nuevo’. Contra esse erro do teatro deve começar a reação. Faça-se um teatro moderno, um teatro igual à vida de hoje: não será preciso mais; a renda que ele produzirá há de abafar, tornar insignificante qualquer imposto...".( O Estado de São Paulo, 16/07/1927)

É preciso advertir que o elogio da influência cultural norte-americana não colide absolutamente com o patriotismo de Guilherme de Almeida: na verdade, modernismo e nacionalismo encontram-se intrinsicamente unidos em sua concepção estético-cultural , em que o cinema figura tanto quanto dissiminador, entre nós, dos hábitos e dos costumes, enfim, do estilo civilizado do hemisfério setentrional, e, principalmente, do "modus vivendi" norte-americano quanto divulgador, lá fora, da imagem e da identidade de um Brasil moderno e civilizado, devidamente inserido no fluxo renovador do século. Tal circunstância patenteia-se por exemplo, na campanha promovida pelo poeta, em sua coluna, com o fito de preservar o nome brasileiro de um ator tupiniquim selecionado pela Fox para atuar no cinema Hollywoodiano. Ao esteriótipo do jovem de porte atlético, bem educado e com ares civilizados e aristocráticos, não deve se contrapor a identidade nacional brasileira: " Olympio Guilherme - o feliz brasileiro que a Fox em boa hora escolheu para nos representar em seus estúdios - escreveu-nos uma carta delicada e fina desmentindo a notícia que nós e outros jornais publicamos, sobre a escolha de um novo nome para a sua vida artística (...) . Conhecemos pessoalmente Olympio Guilherme. Sabemos da sua inteligência desembaraçada e viva; do seu físico sadio, moço, insinuante; da sua educação, das suas maneiras de " gentleman"; da sua decidida e forte inclinação artística. Olympio Guilherme tem, pois, todas as qualidades que possam exigir um astro cinematográfico, tem todos os elementos de vitória para a sua futura carreira. Só não tem um nome: um nome que só por si - escreve-nos ele - diga ao mundo inteiro que sou ‘brasileiro" (O Estado de São Paulo, 24/08/1927).

Definitivamente, Guilherme de Almeida qualifica o cinema como veículo de comunicação de massas civilizador e modernizador dos costumes, das tradições dos hábitos, enfim, do "modus vivendi" brasileiro. A moral e a religião tradicionais, eivadas pelo rigorismo cristão Ibérico, também devem ser atingidas pela nova cultura, mas consentânea com a modernidade florescente. Logo, afiguram-se inadmissíveis para o poeta os excessos moralistas perpetrados pela censura local, motivo ensejador de acerbadas críticas de sua parte em suas crônicas cinematográficas: "O primeiro erro de que se acusa a censura cinematográfica de São Paulo, é o critério intolerante, por isso mesmo mais religioso do que moral, que tem ditado certos violentos cortes em muitíssimos e inofensíveis filmes. Esse critério - parece-nos - não tem , não pode ter neste século e neste país, nenhuma razão de ser. Já não existe nesta terra livre nenhuma religião oficial. São Paulo, além de essencialmente agrícola é também essencialmente cosmopolita. As pessoas, que enchem uma sala de cinema são de raças e crenças diversas : Há aí católicos, como há protestantes, ortodoxos, muçulmanos, judeus, positivistas, espíritas, ateus... São incontáveis os filmes americanos que escarnecem com o espírito dos Maometanos e dos seus costumes religiosos; do hipócrita ‘carolismo’ protestante ( tagarelices, maledicências à porta dos templos) etc. Se a nossa censura tivesse um caráter religioso geral, independente, superior, seria forçada a sacrificar também todos esses inocentes pretextos para um sadio bom humor, que, a seus olhos, ofenderiam essas religiões e seus adeptos. Mas, não. A censura limita-se a condenar, a por no índice, unilateralmente, apenas as raras coisas que no seu acanhado entender, lhe parecem anticatólicas". (O Estado de São Paulo, 16/09/1927). "Longamente têm ecoado nesta coluna as queixas de todo o mundo contra as arbitrariedades da censura cinematográfica paulista. Um dos argumentos que aqui apareceram foi este: vindo os filmes norte-americanos para o Brasil, já devidamente revistos por uma censura austeríssima, zelosíssima, do bom nome e da propaganda dos Estados Unidos no estrangeiro, qualquer corte de um nosso revisor seria exorbitante, excessivo, quase ridículo. Agora, folheando um dos melhores magazines de Hollywood, deparamos com um amplo estudo "a vida em Cinelândia" do qual transcrevemos o capítulo intitulado ‘o maior inimigo do cinema’. Diz o senhor Armando Vargas de la Maza, autor do artigo: Passando agora a outro ponto, falarei do maior inimigo da indústria cinematográfica americana. Refiro-me à censura, cuja a legislação se torna dia-a-dia, mais rígida, chegando a criar para os produtores situações difíceis. Sobre o assunto, dividem-se as opiniões em dois grandes grupos: um, em que se opõe a que as películas sejam mutiladas, por considerar que isso é a mesma coisa que suprimirem-se capítulos de um livro; outro, que se bate pelo direito do revisor de cortar tudo aquilo que julgue prejudicial à comunidade. Cada Estado da União Americana tem o seu censor e, com ele, regulamentos diferentes, alguns dos quais curiosíssimos, como o que rege a aldeia de Pasadena, Cal., onde não se podem exibir fitas em que haja cenas de beijo... Geralmente, os regulamentos contém dispositivos que proíbem a exibição de películas de assunto excessivamente sexual; cenas com detalhes de brutalidades, ou de crimes, desde que revelem a execução dos mesmos; cenas em que se faça uso de explosivos para destruições pavorosas; cenas de multidões agressivas letreiros em que se mencione sem o devido respeito, a palavra ‘Deus’, etc... São tais as exigências de muitos desses regulamentos que os censores de Nova York, por exemplo, de cem mil películas que examinaram em um ano, recusaram cerca de três mil e eliminaram novecentos títulos! Todas as preocupações são poucas e já se têm registrado casos em que um diretor teve que dar a um filme três finais diferentes para agradar ao censor (O Estado de São Paulo, 28/07/1927).

Avulta nas crônicas cinematográficas de Guilherme de Almeida, sobretudo a temática feminina: com efeito, o universo cultural hollywoodiano, já nessa época, representa a fonte inexaurível de padrões de costumes, comportamento, valores, moda, enfim, de estilo de vida feminino. O veículo por excelência de tais padrões são as estrelas de cinema, cuja vida é objeto de grande interesse diria mesmo de veneração e fascínio, pela platéia feminina. Daí a curiosidade que as atrizes norte-americanas de cinema desperta entre as paulistanas que freqüentam as salas de exibição na capital bandeirante durante a década de vinte: "uma pessoa delicada e inteligente escreveu-me, ha tempos: ‘ Por que você não faz , semanalmente na sua seção, uma rápida biografia, um instantâneo psicológico de alguns artistas de cinema? Respondi que não (...). Ora, não seria desgracioso e mal desmanchar ilusões, analisar, materializar, estuprar esse céu silencioso de celulóide, onde gravitam os inatingíveis, pequenos astros trêmulos de Hoolywood? Para que? Um dos motivos porque preferimos hoje o cinema ao teatro é, talvez, justamente esse: as estrelinhas são intangíveis para nós; enquanto que um ator teatral é uma coisa perfeitamente palpável... Nós somos assim, divinamente assim. Temos a inconsciente volúpia do inacessível. Só nos satisfazemos com o insuficiente. Já não fabricamos mistérios e deuses?" (O Estado de São Paulo, 13/07/1927).

Mesmo os padrões estéticos propriamente físicos isto é, concernentes ao corpo humano, sofrem a ingerência dos modismos ditados pelo cinema, o qual, por seu turno, apenas reflete as transformações ensejadas por uma crescente preocupação com a saúde e com as práticas esportivas: "uma revista americana de cinema estuda, com uma curiosa documentação fotográfica, a transformação que sofreu, nesses últimos trinta anos, o corpo das mulheres e, consequentemente o gosto dos homens... Entre velhas fotografias de camarim, do século XIX - com mulheres opulentas de corpos esmagadores ,cheios de lantejoulas, de cabelos, de pernas garrafas de champange e de meias altíssimas, postados em "graciosos ademanis" sobre cenários de uma falsidade grotesca (bambinelas, veludos adamascados, passamanarias e galões); - entre esses retratos que todos os nossos tios solteirões tinham escondidos nas suas gavetas de camisas engomadas, cheirrosas a "vetiver", o "magasine" exibe, para confrontro, três siluetas atuais: Dolores Postello, Gilda Gray e Marie Prevert. O contraste é brutal. Ali volumes; aqui linhas. Ali, rotundidades inúteis, exuberâncias incomodativas; aqiu, traços simples, nítidos, esportivos, nervosos. Ali, masurka, aqui "black-bottom". Quem são aquelas grandes, importantes, não microbianas pessoas do século de Pasteur, tão diferentes destas criaturas do século de Edson? Uma é Irene Verona (apertada num corset de cetim, altos coturnos, um espadim na mão, parece uma amazona de circo)(...) Todas elas, gordíssimas e abundantíssimas, fizeram furor no seu divertido e enfeitado fim -de -século. Pergunte aos porteiros dos teatros ou ao seu papá - aconselha a revista yankee - quantos ramilhetes catitas, dentro dos cartuchos de papel rendado, eles não receberam, na portinhola de " fiacre", dos belos "leões" empomadados, frisados, cheirosos a Jicky, cosméticos e eles de Orisa... Hoje, nós estranhamos aquelas excessivas superabundâncias: achamo-las todas parecidas com esses cromos lustrosos de folhinha, esses anúncios espalhafatosos de cerveja, em que há sempre uma ‘diva’ montada sobre uma garrafa... E pensamos logo em "champagnadas" soturnas com danças em cima de mesas e madrugadas azedas embaixo das mesas. O esporte, as danças modernas, a condenação pela moda do espartilho de barbatanas e dos saltos altos - tudo isso havia de esperar a metamorfose porque passaram os corpos desses ídolos reincarnados agora na figura quebradiça, estilizada, quase irreal das frágeis figurinhas de hoje. Aquelas eram ‘belas’; estas são ‘lindas’. E nós, nós homens, continamos os mesmos, nem belos nem lindos, calçudos e incolores, na eterna atitude masculina: esperando. Esperamos coisas incríveis e inimagináveis, que futuramente possam ainda acontecer com esses corpos, esses delicados corpos que são... que são a nossa alma". (O Estado de São Paulo,28/09/1927).

Guilherme de Almeida chega a nos oferecer um esboço do protótipo cultural e estético da moça jovem da década de vinte, segundo os cânones ditados por Hollywood: "imagino que você seja - minha cara leitora - um pequenino tipo destes tempos: um espírito inquieto dentro de um vestido inquietante. A gente, quando fala nas mulherzinhas de hoje, fica com uma vontade louca de citar as estatuetas de Tanagara. Mas se você soubesse o horror que são, na realidade, fora de qualquer literatura, essas Myrrhinas de argila... Assim, eu imagino bem simplesmente que você seja apenas uma absoluta ‘Young girl in the teens’... Quero dizer: - que você sabe dar aos seus ‘tweeds’ matinais uma geométrica atitude de esporte; que as suas luvas, durante o dia, têm esse ar nítido das moderníssimas coisas de ‘energette uses’, que você não acredita mais na utilidade da cabeleira dourada de Lady Godiva, e que, por isso, a sua cabecinha bem ‘boyish’ não preocupa mais a sua alminha bem dirigida; que você ja fingiu beber por uma tarde, uma chícara de chá no Ritz; que o ‘black -bottom’ exerce, com naturalidade, com os seus nervos uma influência benéfica... E que, com tusso isso, com todas essas aparências, esses hábitos, que a sua titia solteirona teima em qualificar de ‘levianos e masculinos’, você ainda é bem mulherinha, bem inocente, bem aquela ‘peccadille’ colegial das cóleras de ‘ notre- mère’, e que você gosta de vestir de noite, qualquer crèpe-cetim de um ‘baby-blue’ inofensivo de ‘ nursery ‘, e sabe então dizer ‘ il pleut ‘ de uma maneira tão especial que ‘l’on dirait quíl pleut des anges’... Entretanto, contudo isso, você me confessa um absurdo que eu me recuso a aceitar; você não gosta de cinema. Se isto fosse verdade - minha mentirosa leitora - todas aquelas coisas tão ‘present day’, tão lindas, tão finas que existem em você, desapareceriam com o vestido ‘coleur du temps’ da pastorinha ‘Peau d’Anne’. Será verdade mesmo isso? e será sincero isto que você me pede : ‘ensine-me por favor o que devo fazer para gostar de cinema’ ? ! Eu não sei acreditar em certas coisas. E principalmente, não sei aconselhar. Uma pessoa que tivesse essas duas ciências diria a você que fosse muito, que fosse sempre ao cinema, que levasse todas as revistas cinematográficas do mundo, que se correspondesse muito com a gente de Hollywood etc. Mas eu não poderia querer que você gostasse de cinema assim, por hábito, por vício. Não. Eu quereria que você gostasse por gosto, nada mais. E isso será impossível? Não é . A única coisa que posso fazer para não desobedecer à sua ordem é pedir a você que vá a todos os teatros possíveis. Vá, assista a tudo quanto se possa passar num palco: Tragédia, Dramas, Comédias, Operetas, até Operas! Faça isso com convicção e constância. Você verá o que acontece." (O Estado de São Paulo, 18/07/1927).

Mas é sobretudo a moda das atrizes de cinema o traço cultural que mais influi nos costumes das paulistanas: "Tomamos a liberdade de imaginar ser de uma modista a voz que ontem nos prendeu ao telefone por espaço de quarenta minutos. Fazia uma reclamação. Acusava os exibidores de nos apresentarem fitas velhíssimas: de há quatro ou cinco anos. Não era sobre os assuntos dos filmes, ou sobre a sua técnica, ou sobre os seus intérpretes que a terrível acusadora baseava o seu libelo: mas exclusivamente sobre os vestidos das estrelas. Profunda em matéria de moda, a longinqua voz asseverou-nos que tinha visto vestidos de 1920, 1921,1922 etc., em filmes recentemente exibidos aqui, filmes que não tinham intensões históricas, não pretendiam reconstruir épocas. Há muita gente - disse-nos- que vai ao cinema só para ver moda" (O Estado de São Paulo, 06/09/1927).

Cabe ressaltar, portanto, se desde o início do século XX os cinemas dos centros urbanos brasileiros dedicam-se quase que exclusivamente à apresentação de filmes americanos, é no período pós a I Guerra Mundial e sobretudo a partir dos anos vinte que o cinema americano insere-se na sociedade brasileira como um referencial cultural determinante. Um investimento maciço na moda, nos costumes, no comportamento, é viabilizado pelo cinema e pela publicidade de massa que passam a influir na sensibilidade urbana das populações. A ampliação do público espectador e da influência do cinema em suas vivências cotidianas conjuga-se àquela estabelecida pelas outras formas de expressão cultural, como o rádio e as revistas. É notável, entretanto como os filmes, os astros, as estrelas e os valores de Hollywood multiplicam-se ao infinito e fixam-se como participantes inesquecíveis no cenário cultural brasileiro.