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A Atlântida de 1950 A 1960

O início da década de 50 marcou para a chanchada brasileira uma enorme reviravolta. Embora a Atlântida tenha se consagrado na década anterior como uma das mais fortes indústrias cinematográficas do país, ainda assim as produções eram um tanto desleixadas.

 

Os estúdios estavam mal acomodados, os equipamentos sem a manutenção necessária e os atores recebiam quantias ínfimas pelo árduo trabalho de interpretar em condições precárias. No fim da década 40, mais precisamente no ano 47, o sucesso das chanchadas trouxeram para a Atlântida uma série de novos investidores, interessados principalmente em participar dos lucros da empresa, então ainda sob a administração dos irmãos Burle e Moacyr Fenelon. Entra em cena nesta altura um personagem que será fundamental na consolidação das produções da Atlântida na década de 50: Luís Severiano Ribeiro Jr.. Severiano entrou juntamente com vários outros empresários nos investimentos em produções, que a ele principalmente interessavam por seu domínio em pelo menos 40% das salas de exibição no Brasil. Assim, ele poderia participar dos lucros de uma forma muito maior. A grande surpresa veio, ainda em 1947, quando noticiaram que Severiano havia comprado uma grande quantia de ações da Atlântida, tornando-se acionista majoritário e, consequentemente, dono da companhia.

A crítica de cinema, que então condenavam todas as chanchadas pelo seu estilo e pelo pouco capricho nas produções, sentiu-se, neste último aspecto, aliviada. Sendo o dono da companhia o detentor de uma forte cadeia de salas exibidoras, os lucros não seriam desviados e assim finalmente a Atlântida produziria filmes de alta qualidade técnica. Mas isso infelizmente não aconteceu. Severiano era um homem prático, de senso comercial, e, enquanto houvesse público para as chanchadas, estas não precisariam mudar. E assim continuaram as chanchadas de baixo custo e a mesmíssima equipe.


A entrada na década de 50 é que irá pôr um fim a esta acomodação. Primeiro, com a criação em São Paulo da Vera Cruz, companhia cinematográfica criada por Franco Zampari e Assis Chateaubriant com o objetivo de lutar contra a produçào barata, cinema de ocasião e investir fundo num altíssimo nível técnico e estético. Para tanto, centenas de profissionais de cinema de toda a Europa se agruparam a convite dos empresários da companhia. Estava declarada uma guerra, onde a crítica apoiava de longe a produção hollywoodiana da Vera Cruz. Segundo, o advento da televisão, que retirou uma quantidade grande de espectadores de cinema, principalmente dos filmes nacionais.

Com este panorama, a Atlântida só teve uma saída. Alterar radicalmente o nível técnico da produção, e, além disso, explorar novos filões, aprimorando a tradicional fórmula da chanchada.

O novo filão estava na temática. Agora, não era apenas uma história simples e números musicais intercalando-a, com o único pretexto de ambientar a cena no carnaval. Embora a fórmula básica fosse a mesma, houve uma elaboração maior no roteiro, uma óbvia referência paródica à política getulista e, uma das grandes sacadas da Atlântida: a sátira aos filmes americanos épicos ou simplesmente de grande sucesso.

Não se discute que a década de 50 foi onde a Atlântida produziu seus melhores e mais bem acabados filmes. Watson Macedo, então principal diretor da companhia, ajudou a consolidar uma das mais famosas duplas do cinema brasileiro: Oscarito e Grande Otelo. Grande Otelo já havia participado da primeira produção da Atlântida, "Moleque Tião" (1943), dirigido por Burle. Oscarito era um artista de circo, que começou no cinema em papéis menores e foi, pouco a pouco, galgando fama através de seu enorme talento, sobretudo de improvisador e comediante. Os dois filmes dirigidos por Macedo, "Aviso aos Navegantes" (1950) e "Aí vem o Barão" (1951), que justamente colocaram a dupla Oscarito/Otelo no esquema do estrelato cinematográfico brasileiro, foram também seus últimos na Atlântida. Seu descontentamento com a nova administração da companhia por Severiano o fez sair e tornar-se produtor independente.

Talvez o que melhor caracterize a nova postura da Atlântida frente à guerra das produções hollywoodianas entre Rio e São Paulo seja este esquema de estrelato ao qual Oscarito e Grande Otelo estavam involuntariamente ligados. Todas as novas produções começaram a girar em torno de personagens carismáticos, encarnados por atores consagrados no meio teatral ou mesmo cinematográfico. Nas chanchadas constituiu-se uma estrutura de narrativa que manteve um padrão em toda a vida útil da Atlântida, o estereótipo do mocinho, do vilão, da mocinha e dos ajudantes ingênuos do mocinho.

O sistema de estrelato era um dos melhores chamarizes para o público. Pode ser feita uma analogia com a novela atual. Existe uma grande produtora (Globo, por exemplo), que lança sempre uma mesma fórmula para diferentes histórias, de maneira que a estrutura não se modifique. Assim, ela explora determinados atores para papéis de caráter definido. Em cada novela que este ator participe, seu papel será semelhante. Assim era a Atlântida. Os ajudantes ingênuos do mocinho estavam a cargo de Oscarito e Grande Otelo, o mocinho variava entre Cyll Farney e Anselmo Duarte, a mocinha em geral era Eliana Macedo (sobrinha de Watson) e o vilão quase sempre era José Lewgoy.

"Carnaval Atlântida" foi uma produção que marcou a história da companhia. Dirigida por José Carlos Burle em 1952, "Carnaval Atlântida" é uma paródia sobre a própria chanchada, definindo-a como opção num país em que a superprodução é inviável. A história gira em torno de uma produtora de filmes que quer fazer um longa-metragem sobre a guerra de tróia. Contratam um especialista em história grega, professor Xenofontes (Oscarito), e ele conclui ser um projeto inexequível. O produtor, Cecílio B. de Milho (referência óbvia), desiste da idéia e tudo termina com Helena de Tróia pulando carnaval. A metáfora deste filme foi a impulsão para todas as demais produções: A impossibilidade de se levar no país uma produção séria. Interpreto isso de forma pessoal como uma enorme propaganda contra a Vera Cruz.

A produção de "Carnaval Atlântida" foi um grande sucesso que desencadeou uma série de outros filmes já montados sobre a fórmula da nova fase da chanchada. Recursos técnicos elaborados, personagens com características bem definidas, o aproveitamento de atores em alta cotação entre o público, e, principalmente, a sátira, como elemento condutor da trama. Surgiram então obras-primas do cinema brasileiro, "Nem Sansão nem Dalila" (1954) e "Matar ou Correr" (1954), obras que apresentam uma visão política muito sofisticada, satirizando o governo getulista ao mesmo tempo que parodiam superproduções americanas, "Sansão e Dalila" de Cecil B. de Mille e "Matar ou Morrer", de Fred Zinnemann. Outra grande surpresa desta fase da Atlântida foi a descoberta de Carlos Manga, que dirigiu justamente as paródias brasileiras com extremo bom senso. Na verdade, Manga era praticamente um iniciante quando teve a oportunidade de dirigir trabalhos tão sérios. Mas havia sido indicado por Cyll Farney, e, tendo participado de várias produções anteriores nas mais diversas funções, confiaram-lhe a que faltava, diretor.

Manga foi um dos mais destacados diretores da Atlântida, por ter uma enorme sensibilidade de tratar os enredos, virtualmente iguais, de uma forma sempre interessante. Aliás a estrutura narrativa em que a chanchada estava sempre baseada era muito simples: Existe um herói que, por qualquer motivo, deve alcançar uma meta, que é auxiliada pela sorte e por seus próprios méritos. Ligado a isso existe um vilão, que procura impedir o herói de concretizar seu objetivo e os ajudantes do herói, uma moça e gente mais humilde mas de bom coração, como Oscarito. Invariavelmente os vilões acabavam na cadeia e o herói cumpria seu objetivo.

O sucesso destas chanchadas abriram caminho para uma série de outras estrelas e outros diretores. Explorava-se a personalidade específica de determinados atores, como Dercy Gonçalves, Zé Trindade e Ankito (uma variação de Oscarito).

A primeira metade da década de 50 foi marcada por este auge da Companhia Cinematográfica Atlântida, que, em todos os sentidos, havia tornado possível a produção de cinema no Brasil por pelo menos 10 anos. A filmografia desta época é extensa, e inclui alguns filmes "sérios", ou pelo menos, que procuravam sair do esquema da chanchada, entre eles "Amei um Bicheiro" (1952). "De Vento em popa" (1957), "Esse Milhào é Meu" (1958) e "O Homem do Sputnik" (1959) foram as últimas grandes produções da Atlântida com as sobras do estilo sofisticado a que alcançou o filmusical brasileiro.

O que aconteceu com a chanchada da Atlântida no fim da década de 50? Os gêneros "comédias ligeiras e musicais" começaram a envelhecer, principalmente pela repetição exagerada de uma mesma linguagem que agora parecia ultrapassada. Houveram motivos fortes para que isso acontecesse, no próprio contexto político em que Brasil se encontrava. Começava a surgir uma consciência maior à respeito dos vários problemas que afetam o cinema: forma-se a idéia de que não bastava a viabilização de um cinema industrial, com bons equipamentos, técnicos e instalações modernas (o que nem era exatamente o caso da Atlântida) para se conseguir uma estética culturalmente forte e economicamente possível, sem a alteração dos limites impostos no mercado pela dominação estrangeira. Este processo levou a uma descoberta e reflexão sobre o significado cultural do nosso cinema, que ultrapassava a concepção do filmusical da Atlântida.

Ainda havia o neo-realismo italiano, que causou um forte impacto sobre os intelectuais de diversas áreas, incentivando a produção daquilo que seria uma antecipação do cinema novo, muito mais preocupado com a denúncia social e com o cinema de expressão. Completamente oposto à aquilo que ainda vigorava na Atlântida. A política foi, entre outras coisas, uma das principais responsáveis por esta diferença de pensamento. Tratava-se do "50 anos em 5" de Juscelino Kubitschek, que abriu o país para empresas multinacionais, capital e cultura estrangeiros. Dentro desta perspectiva de industrialização crescente, a consciência política tornou-se acentuada entre estudantes e a população das grandes cidades, de modo que o cinema da chanchada começava a se tornar inexoravelmente anacrônico.

A televisão tornou-se muito mais popular no fim dos anos 50. Com um cinema nas telas de contexto social e político nunca antes vistos, todo o esquema de produção sobre o qual se sustentava a Atlântida começou a ruir e, os artistas cômicos, diretores e equipe técnica não tiveram outra saída se não assumir cargos nas empresas emissoras de televisão, no início a rede Tupi. Se não fosse a televisão, provavelmente muitos astros cômicos que hoje são destacados (e que começaram no cinema, entre eles Jô Soares, Costinha e Chico Anysio), provavelmente não teriam ido muito longe, porque o cinema novo explodiu na década de 60 ofuscando quase que totalmente o brilho daquilo que foi um cinema divertido e original de sabor muito mais brasileiro.



BIBLIOGRAFIA:

AUGUSTO, Sérgio - Este Mundo é um Pandeiro - Companhia das Letras
CATANI, Alfredo M. - A Chanchada e o Musical Brasileiro - Coleção Tudo é História - Editora Brasiliense
VIEIRA, João Luiz - "A Chanchada e o cinema carioca" in Historia do Cinema Brasileiro - Art Editora


*Filipe Salles é fotógrafo, cineasta e músico; é professor de fotografia na FAAP e mestrando em Comunicação e Semiótica na PUC/SP.